No final do séc. XV, os navegadores portugueses estabeleceram as rotas marítimas regulares entre o Atlântico e o Índico. A chegada dos portugueses ao Pacífico e ao Extremo Oriente, no séc. XVI, foi o prólogo dos contactos entre duas civilizações: a oriental e a ocidental.
“Foi um grande progresso histórico que as comunicações motivadas pelos interesses colonizadores e comerciais se estenderam ao domínio cultural. Quando Cristóvão Colombo deu o primeiro passo, ninguém conseguiu antever a trajectória da história universal daí por diante. Naquela altura, uma nova cultura marcada pelo humanismo e racionalismo crescia na Europa e acabava de entrar na era pós-medieval. Acompanhado pela expansão colonialista, o capitalismo nascente ostentava ao mundo a sua vitalidade. Entretanto, dominavam na China a cultura política e a cultura ética apregoadas pela doutrina confucionista. Aparentemente a incoerência total das duas civilizações malograria qualquer tentativa de diálogo.
Mas, o séc. XVI anunciou com antecipação o encontro inevitável do Oriente com o Ocidente, para o qual a história se apressava a fazer os preparativos. Várias navegações marítimas, nomeadamente do chinês Zhenghe e dos europeus Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães e Vasco da Gama, contribuíram incontestavelmente para a diversificação dos pontos do encontro das civilizações oriental e ocidental.” 1
No decorrer do encontro do Oriente com o Ocidente, na época moderna, muitas ciências naturais desvincularam-se da filosofia natural para se afirmarem independentes. Na transição da geografia clássica para a geografia nova do Ocidente, no séc. XIX, a geografia, ciência que se debruça simultaneamente sobre as grandes áreas, humana e natural, exercia uma influência cada vez maior na evolução da civilização humana. Neste aspecto, os mapas geográficos antigos de Macau, do séc. XVIII ao séc. XX, conservados por Tam Siu Cheong, coleccionador de Hong Kong, constituem excelentes argumentos. As primeiras cartas referentes a Macau publicadas no Ocidente evidenciam o pragmatismo que norteava a produção cartográfica.
A título de exemplo, a Carta do Roteiro Marítimo da Entrada em Guangdong e Macau (Nº5), ilustração dum livro publicado na Grã-Bretanha em 1738, descreve minuciosamente a rota marítima para Guangzhou (Cantão) a partir do Mar do Sul da China, passando por Macau e Humen, e possuindo também a marcação da variação da profundidade das águas ao longo da via, o que reflecte a perfeição das técnicas topográficas e cartográficas daquela altura. `A esquerda desta grande carta encontra-se um mapa da cidade de Guangzhou onde se localiza claramente o Rio das Pérolas e a cidade em si.Uma outra carta hidrográfica relativa a Macau e constante do livro acima mencionado, Carte de L’Entrée de Macao (Nº11-3), cuja autoria se atribui aos franceses, mostra diversos caminhos marítimos. Tendo em conta que Macau era a única cidade aberta aos estrangeiros, a carta privilegia os pormenores sobre o mar. É de referir a indicação nesta carta dos graus de profundidade das águas da antiga via aquática de Shizimen (Porta da Cruz), muito mais detalhada do que a península de Macau, o qual fica ao sul, dado que era ancoradouro e passagem obrigatória dos navios comerciais ocidentais que entravam e saíam de Macau. É um mapa de interesse prático para a navegação marítima. Tal como atrás referido, as primeiras cartas geográficas de Macau publicadas no Ocidente caracterizam-se pelo valor da sua utilidade prática.
Uma outra gravura (Nº11-1) do mesmo livro, Plan de La Ville de Macao, apresenta a descrição pormenorizada sobre a península de Macau nos finais do séc. XVIII: a cidade cristã, onde viviam os portugueses, estendia-se deste o portão da muralha na Rua do Campo, a norte; ao sopé da Colina da Penha, a sul. As casas distribuíam-se densamente por toda esta área, ao sul da Colina da Penha, incluindo a Colina da Barra. Subsistia a paisagem natural ao sul da Colina da Penha, em que campos e aldeias se entrelaçavam. Ao norte do portão da muralha, na Rua do Campo, ficava a área onde os chineses se aglomeravam. Campos cultivados bem ordenados ocupavam a parte central desta área fora da cidade. A Ilha Verde, que emergia do mar, parecia isolada. A antiga Porta do Cerco em Lianhuajin de Shati constituía um símbolo importante na definição do território de Macau. A descrição da carta, acima referida, coincide com os registos antigos datados aproximadamente da mesma altura, segundo os quais: “Hou Keang ou Ou San situa-se a 120 li a este e a sudeste da cidade. Macau fica a leste de Hou Keang; as águas marítimas de Shizimen circundam-no pelo sul; a oeste está Hengqin (Wang Kam) e ao norte fica a colina da Ilha Verde.”2 A península de Macau em Town and Harbour of Macao (Nº24), mapa manuscrito, elaborado pelos ingleses, em 1869, traduzem algumas mudanças sensíveis: a primeira, o desaparecimento da muralha na Rua do Campo, que foi demolida pelos portugueses; segunda, a cidade cristã administrada pelos portugueses expandiu-se para o norte, transcendendo a fronteira assinalada pela antiga muralha. Na sequência do “Caso de Ferreira do Amaral” de 1894, os portugueses não apenas recusaram o pagamento do foro do chão que o Distrito de Xiangshan (Heong San) tinha arrecadado durante mais de duzentos e setenta anos, como também destruíram a muralha e alargaram a sua cidade para o norte. Há ainda um outro mapa da península de Macau, em The Portuguese Settlement Macao (Nº27), uma gravura publicada em 1894, no qual, no cima e à esquerda apareçe a inscrição de “Fundado em 1557”. Este mapa revela-nos efectivamente que depois de se terem estabelecido na península de Macau, os portugueses ocuparam algumas aldeias, danificaram alguns campos cultivados e abriram novas estradas. Figuram neste mapa as ruas da antiga cidade, as antigas igrejas como a de S. Francisco, as Ruínas de S. Paulo, a Fortaleza antiga construída no tempo da dinastia Ming e o Palacete de Santa Sancha (residência do Governador de Macau). Encontram-se ainda marcados a Fortaleza da Colina de Mong Há, que de facto foi construída nos finais da dinastia Qing, e o Palácio da Flora. Uma leitura cuidadosa permite descobrir que a construção da Estrada de Adolfo Loureiro se encontrava concluída, e a Estrada de Coelho do Amaral, a Estrada da Bela Vista e o Istmo Ferreira do Amaral já estavam configurados e arborizados. É um mapa de grande importância que reproduz a península de Macau dos finais da dinastia Qing. “No séc. XVI, havia ranchos de forasteiros, variáveis em número e desconhecidos dos chineses, que frequentavam o litoral do sul da China. As visitas dessa gente tendiam a intensificar-se. Eram sobretudo europeus que seguiam Marco Polo na peregrinação à China.” “A corte da dinastia Ming, da China, não sabia nada das mudanças ocorridas no longínquo Ocidente. A Renascença, a reforma religiosa e as ciências experimentais tinham dado um grande impulso para a entrada da Europa Ocidental na idade moderna. Em consequência dos descobrimentos, floresciam de repente viagens marítimas que facultavam a ligação das duas semiesferas do globo.” 3
Os ocidentais aplicavam as ciências e as técnicas modernas por eles trazidas para registar e estudar o Oriente. “Entre as ciências da idade moderna, a geografia cultiva uma área de estudo muito abrangente. A geografia moderna nascida no séc. XIX afastou-se passo a passo da posição semi-científica e semi-literária da geografia arcaica, ao absorver frutos das outras ciências modernas para afirmar o seu próprio modelo e metodologia.” 4 É de referir que nesta mostra de mapas antigos estão ainda patentes Chinesische Küste de 1834 (Nº17), Karte des Hafens von Canton mit Macao de 1804 (Nº18) e Carte de la Riviere de Canton de 1844 (Nº22) desenhados pelos alemães, Sketch of the Taypa and Macau de 1780 (Nº10), Canton River and Adjacent Islands from the Latest Surveys de 1844 (Nº21) e Canton and Its Approaches, Macau and Hong Kong de 1880 (Nº25) desenhados pelos ingleses, e Carte de L’Entrée de La Riviere de Canton de 1760 (Nº8) dos franceses e a Planta da Península de Macau, de 1760, publicada pelo Governo de Macau, entre outros. Todos estes mapas antigos, quer sejam de transporte, quer sejam militares, quer sejam turísticos, reflectem o nível de conhecimentos e de estudo profundo dos cartógrafos ocidentais em relação à fisionomia da natureza geográfica do Oriente, que se traduzem na descrição e explicação das aparências dos objectos observados. Na exposição encontram-se também mapas antigos publicados na China, sendo de salientar os Altas de Guangdong, publicados no quinto ano do reinado do imperador Tongzhi (1866) da dinastia Qing, que tocam em regiões como Xiangshan, Xinmi, Xinhui, Shunde, Heshan e outras regiões. Aparece no volume XI dos altas o Mapa de Xiangshan, em que Macau está representado com a marcação de determinados sítios como Porta do Cerco, Ilha Verde, Jitou, Taipa, Jiu’ao, Guoluli e Shizimen. Apesar da longa história da produção cartográfica chinesa e da longa tradição dos estudos geográficos chineses, a localização geográfica, relativamente fechada, do país, afectou os chineses em termos da concepção geográfica. A China situa-se no extremo oriente do continente asiático, contígua ao Pacífico no leste, com terras estéreis no noroeste e florestas e vales no sudoeste: “Entre o céu em cima e a terra por baixo, fica o Império do Meio (China), ocupando o centro e rodeado pelos territórios estrangeiros.”5
Enquanto a geografia ocidental conhecia o rápido desenvolvimento na idade moderna, a geografia chinesa permanecia estagnada. Com a chegada do jesuíta Matteo Ricci no final da dinastia Ming e posteriormente de Julius Aleni, Nicolaus Longobardi, Didacus de Pantoja e Ferdinand Verbiest, foram introduzidos na China novos conhecimentos geográficos ocidentais. Apesar disso, conceitos como “céu redondo e terra quadrada” e “céu redondo e terra plana” continuavam enraizados nos pensamentos dos chineses. A evolução das concepções dos chineses sobre o espaço geográfico arrastava-se de forma significativa, facto esse bem provado nos Altas de Guangdong. Segundo Tan Qixiang, geógrafo conceituado contemporâneo, “Os estudos geográficos na dinastia Qing são o resumo das experiências antigas e o início dum novo capítulo.” 6Macau traçou uma trajectória singular na sua história. Nesta cidade em que coexistem as duas civilizações oriental e ocidental, a civilização moderna ocidental encontrou a plataforma de entrada no Oriente e provocou impacto profundo. Através da produção cartográfica podemos avaliar não só a superioridade ou inferioridade em termos técnicos, como também o nível da exploração das regras do ambiente geográfico e sua evolução nos seres humanos e mesmo o nível de conhecimentos destes sobre a natureza e sobre si próprios. Os mapas mostrados nesta exposição, antigos ou modernos, chineses ou estrangeiros, proporcionam-nos certamente uma nova oportunidade de estudar e conhecer a história de Macau.
Texto de Chan Vai Hang, Presidente do Instituto de História de Macau Imagens: Mapas dos séculos XVIII e XIX
Texto de Chan Vai Hang, Presidente do Instituto de História de Macau Imagens: Mapas dos séculos XVIII e XIX
Notas: 1. Chen Lemin, Cronologia dos Contactos Luso-Chineses no Séc. XVI, Editora de Educação de Liaoning, 2000, p.34. 2. Reinado de Qianlong, Registos Gerais do Distrito de Xiangshan Vol. I, Águas e Montanhas. 3. Chen Lemin, Cronologia dos Contactos Luso-Chineses no Séc. XVI, Editora de Educação de Liaoning, 2000, p.1. 4. Zou Zhenhuan, Geografia Ocidental na China nos Finais da Dinastia Qing, Editora de Publicações Antigas de Shanghai, 2000, p.34. 5. Shi Jie, Sobre a China, in Antologia do Sr. Shi, edição de Chen Zhi’e, Livraria da China, 1984, p.116. Citando Geografia Ocidental na China nos Finais da Dinastia Qing, p.40. 6. Tan Qixiang, Colecção de Trabalhos da Dinastia Qing sobre a Geografia, Tomo I, Editora Popular de Zhejiang, p.2. Citando Geografia Ocidental na China nos Finais da Dinastia Qing, p.309.
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