sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Macau entre duas crises: 1640-1688

Mapa séc. XVIII
São anos de profunda perturbação, provocada pelo dramático termo do comércio entre Macau e o Japão. Foi este um golpe tão duro que, durante anos e anos a fio, devia ele pairar, como fantasma agoirento, sobre os destinos da pequena república macaense. De tal modo afectou os seus habitantes que, a cada passo, se discutiria a forma de reconquistar a simpatia nipónica. Dir-se-ia que Macau não poderia viver sem o comércio japonês.
O Japão, todavia, não se mostrava interessado na chegada de navios portugueses a Nagasaqui, como antes sucedia. Por um lado, tinha-se já desenvolvido suficientemente a sua própria indústria da seda, podendo dispensar, portanto, a que antes importava da China. Por outro lado, Holandeses e Ingleses forneciam-lhe tudo quanto podia desejar. Mas... não era o comércio português que, em si, repugnava ao Japão. Era o cristianismo de que os Portugueses eram teimosos arautos.
Tinham-se, com efeito, passado os áureos anos da expansão cristã, vividos durante o século XVI. Logo em 1616, a navegação europeia, no Japão, viu-se limitada nos seus movimentos, sendo admitida apenas nos portos de Nagasaqui e de Hirado. Convém
explicar que, desde o início do século XVII, outros europeus havia no Japão. A via do Japão podia considerar-se já uma «rota batida», aberta a qualquer iniciativa europeia. O Cristianismo não se apoiava só em missionários portugueses. Outros havia, igualmente zelosos, vindos sobretudo das Filipinas. Os budistas não tinham dificuldade em chamar a atenção do povo para o carácter estrangeiro da nova religião. Isto, não obstante o número, sempre crescente, de sacerdotes e irmãos japoneses. Em 1624-1625, principiou a perseguição a sério, cortando-se as relações com a Espanha, o México e as Filipinas. Esta medida foi particularmente sentida em Macau, visto saber-se no Japão que Portugal, unido à Espanha, obedecia ao mesmo rei que era reconhecido no México e nas Filipinas. Apesar disto, conseguiram os macaenses iludir as intenções japonesa, e continuaram as ligações comerciais Macau-Nagasaqui.
O crescendo da perseguição aumenta em 1633-1634. Proíbe-se toda a navegação estrangeira, incluída aportuguesa, com raras excepções. Complemento natural desta legislação é o decreto de 22 de Junho de 1636, a insistir não só na proibição da navegação estrangeira, mas a vincar também a proibição de qualquer navegação japonesa. O Japão tinha-se decidido a viver só, por si e em si, sem qualquer contacto com o exterior.
Quanto ao Cristianismo, desceu à clandestinidade e nela se manteria até 1865, quando o p.e Petitjean, das Missões Estrangeiras de Paris, entrou em contacto com japoneses, verdadeiros cristãos. Imagine-se a alegria destes, ao certificarem-se que tais missionários eram efectivamente iguais aos dos do século XVII. Com efeito: veneraram a Mãe de Deus, eram celibatários e obedeciam ao Padre Santo de Roma!
Em fins deste ano de 1636, principia a notar-se alguma agitação na península de Shimabara, ilha de Kyushu. Os seus habitantes, quase todos agricultores, seguiam, em grande maioria, a religião cristã. Haveria certamente motivos de carácter social a apoiar o seu descontentamento, mas o que mais os unia era a religião - o Cristianismo. A revolta, a princípio mal definida, ia toando cada vez mais ameaçadora, para estalar decisiva em fins de 1637. Não havia dúvida: era uma revolta de gente japonesa, mas cristã. Os revoltosos, calculados entre 20 000 a 37 000 homens sem se contarem mulheres e crianças, concentraram-se todos no castelo de Hara. O cerco, por tropas fiéis, durou três meses. Nas escaramuças travadas, os sitiantes, alguns 1000 000 verificaram que os cristãos estavam dispostos a morrer. Assim aconteceria, com efeito. O assalto final iniciou-se a 12 de Abril de 1638, para terminar, em massacre final, três dias depois. Os sitiados haviam, no entanto, vendido bem caras as suas vidas, calculando-se as baixas dos atacantes em cerca de 13 000 homens.
A forma como os cristãos de Shimabara se haviam defendido teve como resultado imediato o abandono de um plano de invasão da ilha de Luzon, nas Filipinas, pelos Japoneses, auxiliados pelos Holandeses. Era plano afagado havia bastante tempo. Agradava, ao mesmo tempo a japoneses e a holandeses. Empresa arriscada, sem dúvida, e de resultados imprevisíveis. Mas o facto impunha-se: se inexperientes camponeses cristãos, talvez 30 000 homens, se haviam defendido de tal forma, enfrentando 100 000 soldados profissionais, como se poderiam defender os cristãos de Luzon?
Outro resultado, quase imediato, da revolta de Shimabara foi o total isolamento do Japão. Os Portugueses seriam as primeiras vítimas desta atitude. Estava mais que provado que «português» era sinónimo de «cristão». Ora, tal credo religioso não convinha ao Japão. A decisão era grave, mesmo para o Japão, pois os comerciantes macaenses deviam bastante dinheiro a capitalistas nipónicos. As autoridades japonesas, porém, passaram por cima desta facto.

Concretizou-se a ameaça logo no ano seguinte, em 1639. Mal imaginava o Capitão Vasco Palha de Almeida, quando, à frente de dois navios comerciais, entrou no porto de Nagasaqui, o que o esperava. Não o deixaram sequer cumprimentar as autoridades. Entregaram-lhe secamente cópia de novo édito de 5 de Julho de 1639, a proclamar que tinha terminado de vez o comércio entre Macau e Nagasaqui. O Japão rejeitava, de vez, o Cristianismo. Os Portugueses não poderiam mais desembarcar em território japonês. Se o fizessem, esperá-los-ia a morte. oi esta a triste notícia que o Comandante Vasco Palha de Almeida teve de comunicar em Macau. É fácil imaginar a consternação provocada por tal anúncio. Que seria da cidade sem o comércio Japonês?
Capítulo "Introdução" do livro de António da Silva Rego, edição de 1977

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Wenceslau de Moraes nasceu há 160 anos

Em Maio celebram-se os 160 anos do nascimento de Wenceslau de Moraes, um dos mais importantes autores portugueses que trataram literariamente assuntos ligados ao Oriente, em especial o Japão.
Na fotobiografia de Wenceslau de Moraes, da autoria de Daniel Pires, edição Fundação Oriente, 1993, esta imagem (da Biblioteca Central da Marinha) está na pág. 64 com a legenda “Oito oficiais em uniforme de Verão. O escritor é o último à direita”.  O livro refere detalha o percurso de Wenceslau de Moraes e as embarcações onde prestou serviço. Refere também, que o escritor passa a pertencer à Escola Naval a 4 de Fevereiro de 1879 e a 12 do mesmo mês é promovido a Segundo-Tenente e que a 16 de Novembro do mesmo ano começa a exercer na canhoneira Quanza, comandada por Carlos Maria da Silva Costa, que por certo deverá estar na imagem.

Wenceslau José de Sousa de Moraes, ou Venceslau de Morais, na ortografia moderna nasceu em Lisboa em 1854. Foi escritor e militar da Marinha Portuguesa tendo prestado serviço em Moçambique, Macau, Timor Português e no Japão.
Viajou pela primeira vez até Macau em 1885 onde se estabelece sendo imediato da capitania do Porto de Macau e professor do Liceu de Macau desde a sua fundação em 1894. Durante a sua estadia no território casa com Vong-Io-Chan (Atchan), mulher chinesa de quem teve dois filhos, e estabeleceu laços de amizade com Camilo Pessanha (veja-se os dois em Macau nas duas últimas imagens deste post).
Em 1889, no exercício das suas funções em Macau, viaja até ao Japão, país que o vai encantar e onde regressará várias vezes nos anos que se seguem. Em 1897, por exemplo, regressa na companhia do Governador de Macau, sendo recebido pelo Imperador Meiji. No ano seguinte muda-se definitivamente para o Japão, tornando-se cônsul em Kobe.
Aí volta a casar e empenha-se na criação literária. Com a morte da mulher, Ó-Yoné, renuncia ao cargo consular em 1913 (era Tenente-coronel/Capitão de fragata) e muda-se para Tokushima, terra natal daquela, e onde W. de Morais se converte ao budismo e acaba por morrer a 1 de Julho de 1929.
Macau, 1895
O resumo da sua vida foi feito pelo próprio numa carta que escreveu em Fevereiro de 1928 a um japonês que lhe tinha solicitado uma biografia... Curiosamente, não refere a passagem pelo Liceu de Macau como professor e colega de Pessanha.
"Sou português. Nasci em Lisboa no dia 30 de Maio de 1854. Estudei o curso de marinha e dediquei-me a official da marinha de guerra. Em tal qualidade fiz numerosas viagens, visitando as costas da África, da Ásia, da América, etc. Estive cerca de cinco annos na China, tendo ocasião de vir ao Japão a bordo de uma canhoneira de guerra e visitando Nagasaki, Kobe e Yokoama.
Em 1893, 1894, 1895 e 1896 voltei ao Japão, por curtas demoras, ao serviço do Governo de Macao, onde eu estava comissionado na capitania do porto de Macao. Em 1896, regressei a Macao, demorando-me por pouco tempo e voltando ao Japão (Kobe). Em 1899 fui nomeado cônsul de Portugal em Hiogo e Osaka, logar que exerci até 1913.
Em tal data, sentindo-me doente e julgando-me incapaz de exercer um cargo publico, pedi ao Governo portuguez a minha exoneração de official de marinha e de cônsul, que obtive, e retirei-me para a cidade de Tokushima, onde até agora me encontro, por me parecer logar apropriado para descançar de uma carreira trabalhosa e com saúde pouco robusta.
Devo acrescentar que, em Kobe e em Tokushima, escrevi, como mero passatempo, alguns livros sobre costumes japoneses, que foram benevolamente recebidos pelo publico de Portugal."
Placa colocada na fachada da casa onde nasceu em Lisboa
Obras: Traços do Extremo Oriente - Sião, China e Japão (Lisboa, 1895); Dai-Nippon (Lisboa, 1897); Serões no Japão (Lisboa, 1905); O Culto do Chá (Kobe, 1905); Paisagens da China e do Japão (Lisboa, 1906); O Bon-Odori em Tocushima (Lisboa, 1916); Ko-Haru (1917); Fernão Mendes Pinto no Japão (1920); Ó-Yoné e Ko-Haru (Porto, 1923); Relance da História do Japão (Porto, 1924); Os Serões no Japão (Lisboa, 1925); Os Mistérios de um Telhado; Relance da Alma Japonesa (Lisboa, 1926); Relance da Alma Japonesa (1928); Osoroshi (1933); Cartas Íntimas (1944); Notícias do Exílio Nipónico (Macau, 1994).

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Cemitério dos Parses

 
 
Em chinês o cemitério denomina-se “Bai Tou Fen Shang” (白头坟場), ou  “Pak Tou”, que significa “cemitério da cabeça branca”, devido aos turbantes brancos que os Parses usavam. Pela mesma razão a religião dos Parses é também designada por Religião Branca
O cemitério abriga 14 túmulos, tendo sido o 1º erigido em 1829 para o Parse Cursetjee Framjee. O local é disposto em 3 “níveis”, estando os túmulos nos dois níveis superiores: 4 ao 1º nível e os restantes no 2º nível.
Em 1822 foi adquirido um terreno para construir um cemitério para os parses de Bombaim (Índia) que se estabeleceram em Macau. Viria a ser inaugurado em 1829 como se pode verificar na inscrição à entrada "Parsee Cemetery". Devido às ligações com os portugueses, a religião Parse chega a Macau, então terra de mercadores, durante os anos 70 do séc. XVIII. A partir do séc. XIX começaram, gradualmente, a mudar-se para Hong Kong.
Numa carta de uma americana enviada de Macau em 4 de Novembro de 1843 pode ler-se. "De toda essa gente, os que admiro mais são os Parses. Há cá muitíssimos e alguns muito ricos. O seu trajo é muito estranho, mas gracioso e muitos deles são belos e de aparência atlética. São de Bombaim e vivem aqui sem as suas famílias, pois que é contrário à sua religião trazer as esposas do seu país."

Entrada para o cemitério na denominada Estrada dos Parses, perto do Pavilhão Chok Kong, antes do início da Estrada Engenheiro Trigo.
 Nesta imagem de ca. 1890 é visível a entrada para ao cemitério dos Parses. 
No topo da colina da guia, a ermida e o farol.
Numa notícia de Dezembro de 2013 o jornal Hoje Macau destacava o facto do local, propriedade privada, apesar de ser considerado um "sítio classificado", estar ao abandono.
Entre as duas fotos salienta-se o quanto a cota da estrada foi aumentando 'tapando' parte do portão.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mandato de Garcia Leandro: elementos

A instabilidade em Portugal a seguir a 1974 reflectiu-se em Macau e foi seguida atentamente por Pequim, que receava a "influência soviética", disse à Lusa o tenente-general Garcia Leandro, primeiro governador do território após o derrube da ditadura em Lisboa. "Enquanto eu estive em Macau, 51 meses, passaram por Lisboa oito governos, cinco primeiros-ministros e dois presidentes da república (...) Havia muitas leituras. Era um desencontro, porque havia muitas intervenções, mas o que eu fiz foi ter uma abordagem à questão que era assim: não criar problemas a Lisboa e não deixar que Lisboa criasse problemas a mim", frisou. O registo daquele período foi o pretexto para Garcia Leandro escrever "Macau Nos Anos Da Revolução Portuguesa 1974-1979", um livro de 338 páginas editado pela Gradiva, e que o autor diz ser um "imperativo de cidadania".
Telex da agência Lusa da 10-3-2011
Luís Osório na “Tabu” (revista do semanário “Sol”), chama a Garcia Leandro “O homem dos sonhos a cores” e recorda a maneira como foi para a Governador de Macau.
«É seguramente um dos grandes militares da História portuguesa e tem uma particularidade que o distingue da maioria: sonha a cores e lembra-se todos os dias do vê». É assim que Luís Osório começa a falar de Garcia Leandro, antes de contar duas histórias passadas na Guiné, onde esteve como capitão. Na primeira, imagine um grupo de combate português que entra num acampamento inimigo, passa busca ao local, até que, de repente, «o capitão dá de caras com a cartilha João de Deus, igualzinha às das nossas escolas primárias. Chega a comover-se quando nela pega – mas ao começar a folheá-la percebe que há algo que não bate certo. A cada uma das letras correspondia uma palavra que faria corar o poeta e pedagogo. A letra A era a primeira da palavra Arma; à R correspondia Revolução e à C, como calcula Camarada».
A segunda acontece quando um guineense, nativo do Norte do Cacine, pede ao capitão um pouco de arroz para cultivar ao lado da casa, que mais tarde o devolveria. Garcia Leandro cede-lhe o arroz, nunca mais pensa no caso, até ao dia em que aquele que lhe pedira o arroz emprestado aparece para o devolver. «Ele não sabe mas a partir desse instante passou a habitar na terra privada dos sonhos do militar português».
Mais tarde, após o 25 de Abril, os seus dotes diplomáticos foram reconhecidos e foi enviado, por Almeida Santos, à época Ministro das Colónias, a Macau para falar com os chineses. Após o encontro, «o chinês confessou-lhe que a China gostaria de ver como governador um homem paciente e ponderado. Se a premissa fosse cumprida certamente que não haveria problemas».
De regresso a Lisboa fez, como lhe fora pedido um relatório no qual «recomendava que o próximo governador fosse um diplomata ou um juiz experiente e ponderado.»
Mais tarde, um grupo de militares reúne com Almeida Santos, depois deste ter proferido declarações que apontavam para o impensável: «Almeida Santos endoidecera e ia reconduzir Nobre de Carvalho, homem que fora nomeado por Salazar».
Nessa altura, Almeida Santos diz-lhes que já escolheu o futuro Governador de Macau e que o homem indicado era Garcia Leandro que, aos 34 anos, foi o mais jovem Governador de sempre de Macau. «Por lá ficou até 1979 e, ao contrário da opinião de tantos, os chineses não entraram por ali adentro como os indonésios em Timor. O General Garcia Leandro aprendeu aí que a paciência é a virtude mais difícil e também a mais recompensadora. Uma paciência de chinês que continua a usar. Todos os dias.»
Segue-se um artigo de opinião da autoria de Marinho Bastos publicado no jornal Hoje Macau de 14 de Abril 2001.
Garcia Leandro, primeiro Governador de Macau após o 25 de Abril, publicou finalmente um livro em que descreve as dificuldades e episódios vividos numa altura tumultuosa em Portugal e em que personalidades diversas, mas com responsabilidades em Macau, variavam de campo de apoio facilmente, inclusive do gonçalvismo.
Descreve, com certo pormenor, os regressos compulsivos a Portugal de militares e que conduziu de uma forma exemplar e que salvou Macau de uma instabilidade política sem precedentes perante a China, antes de serem reatadas as relações diplomáticas com Portugal.
Num sábado de Julho de 1974, debaixo de um calor infernal, realizava-se o velório no funeral da mãe de Roque Choi, na Igreja de S. Lázaro, onde apareceu Ho Yin. Numa conversa informal, ficou a saber-se que grande parte dos oficiais das Forças Armadas estavam reunidos algures em Macau e tentavam, em cooperação com contactos em Lisboa, demitir Garcia Leandro e nomear um alto-comissário que fechasse a página de Macau. Uma hora depois, a reunião foi detectada nas Oficinas Navais e um grupo de oficiais de patentes superiores recomendaram a Garcia Leandro a ali se dirigir, abortando o que se chegou a chamar um “mini-golpe”. Tal veio a acontecer e ficaram identificados os impulsionadores daquela acção, onde estava implicado o comandante Quitério de Brito, que tinha no dia seguinte uma reunião em Hong Kong com a Mitsubishi, reunião que tinha a haver com as turbinas da CEM, da qual era administrador. Dadas as boas relações existentes com oficiais ingleses da polícia de Hong Kong, foi possível acompanhar a partida de Quitério de Brito para Portugal de uma forma pacífica, a partir de um conhecido hotel de Hong Kong.
Estes incidentes, ligados a um eventual mini-golpe, foram assim afastados de perturbar a vida de Macau, mas a comunidade chinesa seguiu minuciosamente os acontecimentos, ajudando também a ultrapassar uma fase complicada da vida de Macau.
Como escreve Garcia Leandro, o 25 de Novembro em Macau foi antecipado. Na verdade, havia oficiais das Forças Armadas que pretendiam acelerar o dossier Macau, embora a posição chinesa fosse sempre a repetida nas Nações Unidas a Veiga Simão, nosso embaixador na ONU, que Macau seria objecto de negociações bilaterais e devolvida à China, como aliás o foi. Seria a missão de oficiais do MFA, meses antes a Pequim destinada a insistir com a China? A posição da China era conhecida e similar à que a tinha anunciado para Hong Kong.
Um livro denso de uma vivência que aguentou Macau antes de se iniciar a transição conduzida por Almeida Costa e Rocha Vieira, num ambiente que conseguiu assegurar uma viragem histórica, mas que aumentou o mérito do consulado de Garcia Leandro, numa fase anterior e em que os recursos não eram tão abundantes.
Sinopse do livro (texto da editora)
O autor transporta-nos a 1974, à sua vivência de quatro anos pós-Revolução de Abril, num Macau frágil e confuso (com ligação a Portugal e, no plano regional, à China e a Hong Kong), às suas muitas dificuldades políticas, sociais e económicas, ao emaranhado confronto dos interesses que ali se moviam. Cada situação é enquadrada pelos seus antecedentes e, em muitos casos, relatado o respectivo desenvolvimento.
Neste livro explica-se, pela primeira vez, como foi feita a reformulação local do Estado (Estatuto Orgânico) e da Administração e quais os caminhos seguidos no relançamento da economia (a dinâmica dos investimentos, a revisão do contrato dos jogos de fortuna e azar, etc.), no reforço das relações entre comunidades e na resolução dos problemas concretos da população. É-nos dito ainda como Portugal era encarado no Oriente – no Japão, na Malásia, nas Filipinas, na Índia (especialmente em Goa), e também na Austrália e na Indonésia, apresentando-se novos elementos sobre a crise de Timor. Em alguns capítulos somos surpreendidos por episódios envoltos em ambiente de grande tensão. Certos factos desconhecidos são chocantes; outros, comoventes – mas nenhum se esquece.
Garcia Leandro termina falando de uma ética ao serviço do Estado e confessando a sua frustração pelo Portugal de hoje, que, considera, vive uma situação previsível e evitável.
Escrito na primeira pessoa, este livro é um testemunho que nos enriquece e não pode ser perdido, sendo essencial para o estudo da nossa história contemporânea.
«Várias pessoas me fizeram saber que seria bem recebida a sua nomeação. […] Era um homem do MFA, o que, na circunstância, o recomendava. E tinha-se revelado sensato, sereno, inteligente e preparado. Propu-lo. Foi aceite sem reservas e exerceu o cargo com sabedoria verdadeiramente chinesa. Impecavelmente sério, reflectido e prudente, foi um dos Governadores de Macau, após Abril, que menos resistências levantaram. E Macau, sobretudo à época, era tudo menos fácil de governar.»
Almeida Santos sobre Garcia Leandro, in Quase Memórias (2.º volume, p. 425)
José Eduardo Garcia Leandro nasceu em Luanda em 1940, sendo tenente-general do Exército desde 1998. A sua vida profissional dividiu-se entre o antigo Ultramar (Angola de 1962 a 1964 e de 1970 a 1972, Guiné de 1965 a 1967 e Timor de 1968 a 1970, tendo sido Governador de Macau entre 1974 e 1979), as funções de comando e internacionais (conselheiro militar da Delegação de Portugal junto da NATO entre 1987 e 1990, comandante da Componente Militar da Minurso/ONU-1996, director do Instituto de Altos Estudos Militares e do Instituto da Defesa Nacional, e vice-chefe do Estado-Maior do Exército), e o ensino superior (nomeadamente no IAEM e mestrados do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e do IEP/UCP). Actualmente, entre outras acitividades, é membro do Conselho Geral da Universidade Aberta, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, curador e administrador da Fundação Jorge Álvares e académico correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa.
Frases soltas de Garcia Leandro ao JTM sobre o seu período em Macau:
"Quando se pega numa pessoa com 34 anos e se diz agora vai governar aquele território com aquelas dificuldades, é um susto, parece mais agora do que na altura".
"Significou um acto com uma enorme responsabilidade e uma enorme preocupação de fazer bem e não falhar"(...)
"Hoje olho para trás e penso: Isto parece um acto de loucura, terá sido, mas na altura não o senti dessa maneira".(...) "Era novo, senão não tinha resistência para aguentar as dificuldades e o esforço que teve de fazer, até porque não tinha dinheiro"(...)"Houve alguém que me disse que eu tinha criado as estradas e deixado os carros carregados de combustível e que os que vieram depois puseram aquilo a andar. Mas fiz isso, fiz alguma coisa, fiz o meu papel" (...)
"Sabia mais do que a maior parte das pessoas sobre o que se estava a passar"(...) "percebia muito bem quais eram as soluções para o território, que se tinha de envolver mais a população chinesa e macaense nas decisões e nas várias actividades".“O Banco Nacional Ultramarino tinha que ficar sob alçada do governo da região e não como uma sucursal”, explicou, destacando ainda a criação das Forças de Segurança.(...) “Não precisávamos aqui de forças militares para nada, aqui o problema era de segurança interna, não tínhamos uma ameaça externa”.

Em 2012 Garcia Leandro proferiu uma palestra na SHIP sobre “Macau, como Património da Humanidade”.Foi, de facto, a autonomia garantida pelo Estatuto Orgânico, de Fevereiro de 1976, que permitiu a tomada de importantes decisões visando consolidar a singularidade do território. Aquele Estatuto criou órgãos de governo próprios, incluindo uma Assembleia Legislativa semi-eleita e não mais presidida pelo Governador e dotou o território de um alto grau de autonomia legislativa, administrativa, económica e financeira. As Forças Armadas Portuguesas deixaram definitivamente Macau em Dezembro de 1975 e a pataca passou a estar indexada ao dólar de Hong Kong e não ao escudo e a ficar regulada por uma autoridade monetária e cambial local. As medidas de política passaram a ser definidas e aprovadas no território. Em Agosto de 1976, na cerimónia de abertura da Assembleia Legislativa, Ho Yin, na qualidade de representante da Comunidade Chinesa, afirmaria: “A partir de agora é em Macau que se governa Macau.” O Estatuto Orgânico, vigente até 1999, facilitou o relacionamento com as autoridades chinesas e o processo de transição.
Essa conjuntura também propiciou a adopção de medidas seguras e consistentes no domínio da preservação e valorização do património. Ainda em 1976 foi aprovado o Dec. Lei n. ° 34/76/M, que criou a Comissão de Defesa do Património Urbanístico, Paisagístico e Cultural de Macau. Foi um marco decisivo na longa caminhada que culminou na consagração do centro histórico como património da humanidade.
Criou-se, no início da década de 80, a Comissão Coordenadora da Acção Cultural e, logo a seguir, o Instituto Cultural de Macau (Dec. Lei n. ° 43/82/M). Pouco depois, fez-se a reformulação, em 1984, da comissão de defesa do património, que passou a designar-se de Comissão de Defesa do Património Arquitectónico, Paisagístico e Cultural, com poderes alargados. Garcia Leandro recordou esses e outros passos que sucessivos Governadores deram nesta história de sucesso, em que as dificuldades e os obstáculos foram, por vezes, quase intransponíveis. Na parte final da sua comunicação identificou os monumentos classificados incluídos no centro histórico e terminou citando o autor deste artigo, num trabalho publicado na Revista Portuguesa de Estudos Chineses: “Nesses monumentos está espelhada uma História multissecular que caberá às novas gerações respeitar e assumir. A inclusão de Macau na Lista do Património Mundial constituiu também uma homenagem a essa História e representou para as autoridades locais a assunção de uma responsabilidade perante o mundo, de conservação do património deixado aos jovens de hoje, naturalmente apostados na edificação da sociedade do futuro, mas sabendo que não haverá porvir estável sem memória e sem reconhecimento.”

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Os fim dos municípios


A divisão administrativa de Macau compreendia dois concelhos: o de Macau e o das ilhas.
No que às ilhas diz respeito (Taipa e Coloane), desde a sua ocupação pelos portugueses e até 1928 era o Comando Militar da Taipa e Coloane que administrava as ilhas. Após 1928 são criados os concelhos que integram duas freguesias: Nossa Senhora do Carmo (Taipa) e S. Francisco Xavier (Coloane).
Em 1988, a Assembleia Legislativa presidida por Carlos d’ Assumpção aprova o Regime Jurídico dos Municípios, em que reconhece a “longa tradição em Macau” da administração municipal, “cuja expressão mais significativa é o multissecular Leal Senado”, e reforça a autonomia administrativa e financeira dos órgãos. Ficam assim criados o município de Macau e o município das ilhas (Taipa e Coloane).
Tinham atribuições ao nível do urbanismo e construção, salubridade pública, cultura e desporto, e da protecção do “meio ambiente e da qualidade de vida”. Tinham também eleições: a Assembleia Municipal era constituída por 13 membros do município de Macau (três nomeados, cinco eleitos por sufrágio directo e outros tantos por sufrágio indirecto) e por nove membros do município das Ilhas (três nomeados, três eleitos por voto directo e três pela via indirecta). E era a Assembleia Municipal que elegia o vice-presidente e dois vereadores a tempo parcial das Câmaras.
Em 1999 e com a Lei da Reunificação os órgãos municipais foram reorganizados em câmaras e assembleias provisórias sem poder político – e que funcionariam até à constituição de novos órgãos municipais, sendo que teriam de ser extintas até 31 de Dezembro de 2001, para dar lugar ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM).
Década de 1980

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Bandeiras

Bandeira com fundo azul (tal como no caso de outras antigas colónias) contendo ao centro o brasão da colónia/província respectiva enquadrado numa esfera armilar. O de Macau consistia num escudo dividido em três partes. A esquerda com o escudo português para representar a pátria-mãe, em baixo as ondas brancas e verdes representam o oceano; e à direita um dragão amarelo com escudo sobre o fundo azul escuro. Tem em redor uma faixa branca com a inscrição a preto de "Governo de Macau". Note-se a presença da esfera armilar.
Na bandeira do governador encontramos muita da simobologia típica dos estandartes portugueses: esfera armilar, Cruz da Ordem de Cristo, Brasão nacional. Esta era tb a bandeira do gov. de Cabo-Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Timor. A de Angola, Índia e Moçambique só tinha como diferença o facto das listas verdes serem na horizontal.
Dez. 1999 - Gov. Rocha Vieira
A bandeira foi guardada na casa particular do oficial que era seu ajudante-de-campo.
Colocando de lado as polémicas sobre quem tem ou deve ter a última bandeira portuguesa hasteada em Macau, serve este post para tentar explicar cada uma delas. Como o estatuto de colónia ou de província, em  Macau, foi sempre a bandeira portuguesa que prevaleceu. No entanto, coexistiam outras duas: a do "governo" e a do "governador". Esta última - de fundo branco e duas listas verdes - era hasteada nos locais onde o governador estava: por exemplo, no Palácio (como na imagem) ou em eventos oficiais, incluindo de carácter militar
A segunda bandeira de Portugal (presente nas cerimónias oficiais) foi entregue a uma instituição portuguesa - o CCCM -  em Maio de 2000 pelo capitão-de-fragata Vítor Birne. Este oficial da Armada foi o último comandante da Polícia Marítima e Fiscal de Macau e ficou encarregue, pela parte portuguesa, da componente militar da cerimónia de transferência da administração de Macau para a China. Daí o facto de a última bandeira portuguesa hasteada em Macau ter ficado à sua responsabilidade.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Fevereiro 1979: reatamento relações diplomáticas

O reatar das relações diplomáticas entre Portugal e a China aconteceu há 35 anos... Quatro anos depois do 25 de Abril de 1974 e em que "Descolonizar" era um dos três "D's" da revolução dos cravos. Ao contrário do que se passou nas restantes colónias, a China não tinha interesse em que tal acontecesse. Em Setembro de 1974, em entrevista à RTP, o ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos, afirmava que "Macau é um caso especialíssimo. A China Continental sempre entendeu ser Macau um território próprio, e por isso, na agenda da ONU, Macau não figura na lista dos territórios não autónomos".  As declarações são reproduzidas no Notícias de Macau, 21/9/74, citando um despacho da agência de notícias Lusitânia.
A foto de 1993 (W.L.) retrata um restauro da Porta do Cerco que suscitou um lapso entretanto remediado.
Em vez de "A pátria honrai" foi pintado "Honrai a pátria"
Mário Soares, na qualidade de Ministro dos Negócios Estrangeiros do 1.º Governo Provisório, vai à ONU para falar de descolonização, quando recebe um pedido de audiência do embaixador da República Popular da China, que lhe solicitou não incluísse Macau no rol das colónias portuguesas, já que "do ponto de vista da China, Macau sempre fora um território chinês, não havendo pois lugar a descolonização, e que mais tarde os dois países encontrariam uma justa solução para o legado da História". As palavras são de Mário Soares durante uma conferência de imprensa no final de uma visita a Macau em 1993.
Desde a implantação da RPC, em 1949, Portugal não reconheceu o 'novo' regime, pelo que não existiam relações diplomáticas entre os dois países. E assim aconteceu durante mais 30 anos.
O processo de restabelecimento das relações diplomáticas inicia-se em Paris com a chegada do novo embaixador, Coimbra Martins, em 1975, que convida para jantar o seu homólogo chinês na capital francesa, Tseng-Tao. Segundo consta a embaixada não tinha grandes condições para receber convidados mas o embaixador mandou preparar de improviso um pato, partido do pressuposto que os chineses gostavam muito.
Estava dado o primeiro passo para o reatar das relações entre os dois países mas a mudança sucessiva de governos em Portugal fará com que as negociações se prolonguem por mais quatro anos. Em Dezembro de 1978, o Comité Central do Partido Comunista define uma nova política externa de "abertura ao mundo" e três meses depois, a 8 de Fevereiro de 1979, é assinado em Partis o documento que oficializa o reatamento das relações diplomáticas entre Lisboa e Pequim. Então e pela primeira vez na história do território, fica claramente definido que "Macau faz parte do Território chinês e será restituído à China", algo já implícito no ponto 4 do artigo 5º da Constituição Portuguesa de Abril de 1976 (e mais tarde transferido para o art.º 292.º - Estatuto de Macau): "O território de Macau, sob administração portuguesa, rege-se por estatuto adequado à sua situação especial."
Curiosidade: este selo da Libéria a assinalar a transferência de soberania em Macau
A 'troca' de embaixadores ocorre em Setembro de 1979. O acordo desse ano estabeleceu o princípio de que o estatuto do território poderia ser objecto de negociações. Duas décadas depois consumava-se a transferência de soberania cujos principais marcos foram a visita do Presidente Ramalho Eanes a Pequim, em Maio de 1985, durante a qual a parte chinesa exprimiu pela primeira vez a vontade de iniciar negociações com aquele objectivo; a assinatura da Declaração Conjunta, em Abril de 1987; e o processo de transição, que culminou com a cerimónia da transferência em 20 de Dezembro de 1999.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Brasões

o primeiro... utilizado até 1935
Acima, brasão atribuído pelo ministro das Colónias, Armindo Rodrigues Monteiro, a 8 de Maio de 1935.
Pela portaria nº. 8098 de 1935.05.06, a cada um dos oito territórios (colónias) foi atribuído um escudo partido em mantel, cuja sinistra ostentava uma composição heráldica característica do território, enquanto a dextra e a ponta, idênticas nos vários brasões, realçavam a ligação à metrópole.
Assim, eram a dextra, de prata, cinco escudetes, de azul, postos em cruz e carregados cada um com cinco besantes de prata em aspa; e a ponta, de prata, cinco ondas de verde. No que a Macau diz respeito: de azul, um dragão chinês, de ouro, aramdo e linguado de vermelho, carregado com um dos escudetes da dextra.
Este brasão de 1935 vai manter-se até 1951 quando a inscrição no listel passa a ter escrito "Província Portuguesa de Macau" (e os mesmo se passou nas outras províncias) até 1975. A partir de 1975 - caso único - o brasão mantém-se passando a ler-se "Governo de Macau" até 1999. Existiu ainda uma variante só com a palavra "Macau". Estas bandeiras foram pouco utilizadas no Território, prevalecendo o uso da bandeira portuguesa.


 Fachada do BNU em Lisboa: brasões das seis colónias onde o BNU era banco emissor.
Escultura em relevo de Leopoldo de Almeida colocada na sede na rua Augusta em 1964, centenário do  BNU

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

"Jornadas pelo Mundo" do Conde de Arnoso

O conde Arnoso chegou a Macau a 23 de Junho de 1887 juntamente com Tomás de Sousa Rosa, governador entre 1883 e 1886.
"Encontrar terra portuguesa, a mais de 3.600 léguas de distância da nossa querida pátria, é tamanha ventura, que os cinco dias que estivemos em Macau contarão na nossa vida como para o caminhante no deserto contam as horas de descanso passadas à sombra benfazeja das palmeiras dum oásis."
Nas "jornadas" escreve, no que a Macau diz respeito,  sobre de tudo a um pouco: edifícios, jardins, modos de vida, jogo, templos, monumentos, polícia, militares, etc...
(...) "A península de Macau, cercada de ilhas, pequena como é, com a sua várzea fertilíssima e as suas seis colinas dum relevo gracioso é tudo quanto se possa imaginar de mais pitoresco" (...)
“O Palácio do Governo, comprado à família Cercal, é um vasto edifício de bela aparência. Durante algum tempo estiveram nela diversas repartições; mais tarde, durante a última administração, todas se instalaram, com grande comodidade para o serviço público, no antigo Palácio do Governo, um óptimo edifício também, e onde principalmente se admira a sala do tribunal, que era a antiga sala do trono do palácio. (…) Ao lado fica o pequeno Correio estabelecido também durante o governo de Tomás da Rosa. Até então era coisa que não havia na província! Toda a correspondência se enviava, pelo vapor da carreira, ao correio de Hong Kong”.  (...)
"O Quartel de S. Francisco, no extremo da Praia Grande, mandado edificar pelo benemérito governador Coelho do Amaral, espaçoso, bem arejado, em excelentes condições, é ocupado pelo batalhão do Regimento do Ultramar destacado em Macau. Mais acima, no alto de uma pequena colina assenta o Hospital S. Januário, magnífico e elegante estabelecimento que Macau deve, entre outras muitas coisas, à larga iniciativa do conde de S. Januário". 
 
Bernardo Pinheiro Correia de Melo, 1º conde de Arnoso (em 1895), nasceu em Guimarães em 1855 e morreu em V. N. Famalicão em 1911. Baptizado com o nome de Bernardo em memória de seu terceiro avô materno , cursou Matemáticas na Universidade de Coimbra, completando os seus estudos na Escola Politécnica e na Escola do Exército. Seguiu a carreira militar, na Arma de Engenharia. Passou à reforma no posto de General de Brigada em 1908. Entrou ao serviço do Paço como Oficial-Mor da Casa Real e Oficial às Ordens dos Reis D. Luiz I e D. Carlos I. Em 1887 foi designado para Secretário da Embaixada Extraordinária à Corte Imperial de Pequim chefiada pelo Conselheiro General Tomás Rosa tendo sido um dos subscritores do Tratado Luso-Chinês, assinado em Dezembro de 1887. Nessa longa viagem passou pelo Egipto, Singapura, Macau, Hong Kong, Xangai, Tien-Tsin, Pequim, Japão e Estados Unidos. Registou as impressões que foram publicadas em parte na "Revista de Portugal", fundada e dirigida pelo seu amigo Eça de Queirós (1889) e no livro "Jornadas pelo Mundo", editado no Porto, pela Livraria Magalhães & Moniz, em 1895. Dessa viagem pelo Oriente o Conde de Arnoso não só registou magistralmente - na opinião de alguns - a China e Macau do final do século XIXI como também trouxe várias peças de arte, incluindo porcelanas, estatuária em madeira e cabaias de seda. Porventura a cabaia mais conhecida foi a que ofereceu a Eça de Queirós e que hoje pode ser vista na Fundação como o mesmo nome. Eça escreveria "O Mandarim" em 1880. O Conde Arnoso fez ainda parte do célebre grupo "Os Vencidos da Vida."
Numa carta enviada ao seu amigo Bernardo, Eça de queirós agradece o presente. ”Recebi, há pouco, a sumptuosa “cabaia”, e foi hoje revestido com ela, risonho e grave, que provei o chá da Terra das Flores. Com certeza me trouxeste da China um presente esplêndido! Mas tenho medo, amigo, de não ser competente para dignamente usar essa nobre vestimenta de Mandarim erudito! Oh Bernardo, onde tenho eu as qualidades precisas para me poder encafuar com coerência dentro daquelas sedas literárias? Onde tenho eu o austero escrúpulo gramatical, a dogmática pureza de forma, a sólida gravidade dos conceitos, o religioso respeito da tradição, a serena e amável moral, o optimismo clássico de um bom letrado chinês, membro fecundo da Academia Imperial?. Onde tenho eu sobretudo a pança para encher aquelas pregas amplas e mandarinais?. Eu não tenho pança! Nem a mão fina, de unhas ilimitadas, para sair com graça daquelas mangas abundantes e cheias de austeridade. nada tenho para a “cabaia” magnífica! Não podendo, portanto usá-la sobre as costas magras, vou dependurá-las na minha sala…”

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Melo Egídio e as autoridades chinesas

(...) uma das prioridades do Governador Melo Egídio foi o desenvolvimento de relações amistosas com as autoridades chinesas e com os seus representantes tradicionais em Macau. Tendo iniciado funções imediatamente após o estabelecimento de relações diplomáticas de Portugal com a República Popular da China, assumiu como uma das principais preocupações da acção governativa a utilização de Macau como instrumento privilegiado ao serviço da consolidação dessas relações, a par da estabilidade do território, que dependia também do bom entendimento com organizações e personalidades chinesas locais. Assim, procurou manter um diálogo franco e intenso com Ho Yin, figura muito influente da comunidade chinesa local, e com O’ Cheng Peng, responsável pela Agência Nam Kwong, organismo que representava oficiosamente os interesses da China neste território. Foi nestes termos que descreveu os seus contactos com Ho Yin, na entrevista concedida a Fernando Lima e Eduardo Cintra Torres para a série televisiva “Macau entre dois mundos”:
“Falar de Ho Yin é simples, mas também difícil. Era um homem extraordinário. O Senhor Ho Yin, como lhe chamávamos, era bondoso, afável, pacífico, muito fumador, que irradiava simpatia logo ao primeiro contacto. Era um líder por natureza e era implicitamente reconhecido por toda a gente como o chefe da comunidade chinesa de Macau. Quando eu fui para Macau tinham acabado de ser estabelecidas relações diplomáticas com a China. Não estava ainda convenientemente definida a importância de um outro homem de quem fiquei amigo, que também foi muito importante para a China, para Macau e para Portugal, o O’ Cheng Peng. Era uma figura que estabelecia relações como que oficiosas e conversava periodicamente com o Governador de Macau. Antes dele, todo esse contacto era feito com Ho Yin. A partir do aparecimento de O’ Cheng Peng, a importância de Ho Yin não diminuiu socialmente. Continuou a organizar os jantares da Primavera, continuou muito preponderante na comunidade e devíamos-lhe esse apreço, porque era uma figura importante, desempenhou funções relevantíssimas. Era presidente da Associação Comercial de Macau, presidente do Banco Tai Fung, membro permanente da Assembleia Popular Nacional da China e foi, interinamente, presidente da Assembleia Legislativa até à eleição do Dr. Carlos Assumpção. Era um declarado amigo dos portugueses e nas negociações, nos acordos, que por vezes surgiram por conflitos fronteiriços, até mesmo nos acontecimentos do 1,2,3 teve uma influência extraordinária, favorecendo o apaziguamento de hostilidades criadas, sentidas entre os chineses e os portugueses. Contribuiu para desanuviar o ambiente, sempre com a mesma fleuma, a mesma maneira afável de tratar todos os assuntos. Posso dizer sem sombra de dúvida que o Ho Yin era um membro muito respeitado, muito querido da comunidade, no seu todo, chinesa e portuguesa, macaense e portuguesa, mesmo de residentes da metrópole em Macau, que o apreciavam imenso pelo bem que fazia e pelo amor que ele tinha a Portugal”.
 Para assegurar a eficácia do diálogo com essas entidades, Melo Egídio aconselhava-se muito junto de Roque Choi e de Joaquim Morais Alves. Também me envolveu em várias iniciativas neste âmbito, pelo que posso confirmar o interesse genuíno do Governador na manutenção de um relacionamento correcto com os seus interlocutores chineses.
A sua visita oficial à China e o encontro com Deng Xiaoping marcaram-no profundamente. Incentivou depois as deslocações de entidades portuguesas àquele país, à medida que a abertura se concretizava, e as de chineses a Portugal. Em 1980, apoiou uma visita de personalidades da comunidade chinesa de Macau a Portugal, as quais foram recebidas pelo Presidente da República, António Ramalho Eanes. Também acompanhou com entusiasmo a criação das zonas económicas especiais chinesas, acreditando no significado da sua implantação como sinal inteligente de abertura e de mudança. E lia toda a informação que lhe era preparada sobre a China, bem como as traduções da imprensa local elaboradas pelos Serviços de Assuntos Chineses.
No processo de revisão do Estatuto Orgânico de Macau (E.O.M), que não mereceu a sua concordância, teve nos deputados chineses aliados decisivos. A posição por estes assumida inviabilizou essa primeira tentativa de revisão. Aprovado em Fevereiro de 1976, como Lei Constitucional, o E.O.M. devia ser revisto na vigência da primeira legislatura na parte respeitante à composição e ao funcionamento da Assembleia Legislativa. O projecto preparado avançava, porém, com outras modificações de fundo que o Governador recusava liminarmente, apontando sobretudo a forma preconizada de designação do Governador como geradora inevitável de instabilidade política. Escolhido pelo Presidente da República e dele dependente politicamente, defendia-se no projecto de revisão que a nomeação passasse a pertencer ao Primeiro-Ministro. Até ao fim da administração portuguesa esta alteração nunca chegaria a ser feita.
Livro "Glimpse of Glory - Vislumbre de Glória"

O encontro com Zhao Ziyang
Já na qualidade de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Melo Egídio voltou à China, a convite das autoridades chinesas. Nessa visita, foi recebido por outra figura carismática, caída depois em desgraça na sequência dos incidentes de Tiananmen:
“Mais tarde, depois de deixar Macau, era Chefe do Estado-Maior General e voltei à China. Apesar de eu então ter categoria de Primeiro-Ministro, não estava previsto o meu encontro com o Primeiro-Ministro Zhao Ziyang, porque era uma visita de âmbito militar e enquadrava-se no intercâmbio, também muito importante, numa retribuição de uma visita que uma delegação chinesa havia feito a Portugal a convite do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Fui recebido e contactei na China com chefes militares, com várias entidades militares. Visitei muitas instalações, algumas das quais soube que normalmente não eram abertas a visitas de entidades estrangeiras, e tive encontros também com entidades civis, como o Primeiro-Ministro e o Ministro da Defesa. Com o Primeiro-Ministro Zhao Ziyang eu tive realmente uma conversa muito interessante, de cerca de 45 minutos, num ambiente de muita cordialidade. Revelou-se um homem profundamente conhecedor dos problemas a nível mundial e fundamentalmente estratégicos. Disse-me que tinha um grande apreço pelo Presidente da República Portuguesa e que tinha tido apreço pela revolução feita em Portugal. Que considerava Portugal como um país amigo da China e que a situação criada pelo estabelecimento das relações diplomáticas estreitaria laços de amizade entre Portugal e a China e também entre Macau e a China e que considerava que Macau poderia ter um papel relevantíssimo como porta de entrada da China ou elo de ligação entre a China e Portugal, ampliando este conceito até entre a China e o Ocidente, não esquecendo que Portugal estava inserido na União Europeia. Zhao Ziyang era um homem com ideias muito abertas. E tão abertas que depois dos acontecimentos de Tiananmen foi afastado do poder, foi-lhe fixada residência em Pequim, mas é um homem por quem continuo a ter muito apreço. Considero-o inteligente e desassombrado.”
Retirado de funções públicas, Melo Egídio continuou a acompanhar a evolução da China, como membro activo da Liga da Multissecular Amizade Portugal-China e através de diversos organismos ligados a Macau. E até ao fim da vida, em Dezembro passado, foi um promotor sincero e empenhado das relações luso-chinesas.
Artigo de Jorge Rangel, Presidente do IIM, publicado no JTM de 3-1-2012
Excerto de uma entrevista de Marcial Alves publicada no jornal O Dia em 1980 a propósito da passagem do primeiro aniversário de Melo Egídio como governador de Macau (1979-1981).
"...as minhas perspectivas acerca das relações com a República Popular da China são francamente optimistas. Este ano de permanência em Macau tem sido de contactos constantes com a comunidade chinesa e com elementos representativos dessa comunidade que estão também ligados, embora não pelo canal hierárquico oficial, às autoridades de Pequim. Nota-se, a cada passo, muito significativamente, um estreitamento de relações, uma cordialidade, uma confiança e um desejo de colaboração que considero excepcionais. Considero excepcionais e têm-se materializado realmente. A República Popular da China está muito empenhada, com certeza, no desenvolvimento de Macau."
Agradecimentos: Marcial Alves e ao seu blog Rua do Jardim 7