Já antes referi o "Tratado em que se contam muito por extenso as cousas da China com suas particularidades e assim do reino de Ormuz composto por El R. Padre Frei Gaspar da Cruz da Ordem de S. Domingos".
A obra do missionário dominicano foi a primeira monografia impressa na Europa sobre o Celeste Império. Para além de sistematizar um conjunto de notícias que haviam sido recolhidas pelos navegantes portugueses ao longo de várias décadas de intensos contactos luso-chineses, transmitia também os resultados das indagações levadas a cabo pelo autor em Cantão, por ocasião de uma breve visita efectuada àquela metrópole.
Frei Gaspar da Cruz foi um dos muitos religiosos portugueses que no século XVI passaram pelo Oriente mas foi ímpar no relato que fez das suas viagens
Em 1548 ruma à Índia com outros companheiros e estabelece residências em Goa, Chaul e Cochim; visita Ceilão e parte para Malaca, onde em 1554 funda um convento da Ordem de S. Domingos; passa depois ao Cambodja em 1555-1556 (existe lá um monumento em sua homenagem) e, através do Laos, chega à China em 1556, primeiro Lampacao (uma ilha muito perto de Macau; ver mapa holandês de 1753 abaixo) e depois Cantão, tendo depois obtido autorização dos mandarins para se deslocar a Kuangtung. Entre 1557 e 1559 viaja de novo rumo a Malaca e em 1560 integra um grupo de dominicanos com destino a Ormuz para pregar o Evangelho. Em 1564 está em Goa donde acaba por partir com destino a Lisboa.
Nos anos seguintes, aproveitando elementos colhidos durante as suas deambulações asiáticas, dedicou-se à composição de um extenso Tratado das cousas da China até que contrai a peste vindo a morrer em Setúbal em 1570. Nesse mesmo ano seria publicado em Évora o seu Tratado pelo impressor André de Burgos.
Em 2010 esta obra foi reeditada em versão modernizada e em formato de bolso.Frei Gaspar da Cruz apresenta uma imagem extraordinariamente positiva da China e dos chineses, que, no seu modo de ver, superam todos os outros povos asiáticos "em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e governo, e em abundância de possessões e riquezas".
A obra tem múltiplas informações... inclui por exemplo, o primeiro relato detalhado sobre a técnica de fabrico da cerâmica pelos chineses que remonta à dinastia Tang (618-906).
Alguns excertos:
(...)
É a China terra quase toda mui bem aproveitada, porque, como a terra seja muito povoada, a gente muito em demasia e os homens gastadores – e tratando-se muito bem no comer e beber e vestir e no demais serviço de suas casas, principalmente, que são muito comedores -, cada um trabalha de buscar vida e todos buscam diversos modos e maneiras de ganhar de comer e como sustentarem seus grandes gastos. Faz ajuda muito a isto ser a gente ociosa nesta terra muito aborrecida e mui odiosa aos demais, e quem o não trabalhar não no comerá, porque comummente não há quem dê esmola a pobre. Pelo que se acertava algum pobre de pedir esmola a algum português e o português lha dava, riam-se os chinas dele, e zombando diziam: “Para que dás esmola a este que é velhaco? Vão ganhar!”
Somente alguns chocarreiros recebem prémio, [quando] subindo-se nalgum alto ajuntam gente e põem-se a contar patranhas para que lhe[s] dêem alguma coisa. Os padres e seus sacerdotes dos seus ídolos comummente são aborrecidos e desestimados, pelos terem por gente perdida e ociosa, donde os regedores não lhe[s] perdoam, mas por qualquer leve culpa lhe[s] dão muito açoite. Pelo que açoitando uma vez um regedor, diante [de] um português, um sacerdote seu, e o português dizendo-lhe porque tratava tão mal os seus padres e os tinham em tão pouco estima, respondeu-lhe: “Estes são velhacos ociosos e perdidos”.
(...)
Foram-se um dia uns portugueses nobres mostrar em Cantão um banquete que fazia um mercador rico e honrado, o qual foi para folgar de ver. A casa em que se dava era sobradada e muito linda, com muito galantes janelas e adufas, e toda era um brinco. Estavam as mesas postas em três lanços da casa, para cada convidado uma mesa muito linda e sua cadeira dourada ou prateada, e cada mesa tinha em fronte um frontal de damasco até ao chão. Nas mesas não havia toalhas nem guardanapos, assim porque as mesas são muito lindas, como porque comem tão limpamente que não têm necessidade destas coisas. Estava a fruta posta logo na borda de cada uma das mesas, toda posta em ordem, a qual era castanhas assadas e esburgadas, e nozes limpas e [d]escascadas, e cana-de-açucar limpa e feita em talhadas, e a fruta que acima dissemos que chamam líchias, grandes e pequenas, mas eram passadas. Toda esta fruta estava posta em castelinhos bem feitos, atravessada com pauzinhos muito limpos. Pelo que todas as mesas em roda, com estes castelinhos, ficavam como ornadas. Logo após a fruta estavam todas as iguarias postas em bacios finos de porcelana, todas muito bem aparadas e mui limpamente cortadas, e tudo posto em boa ordem. E ainda que iam ordens de bacios por cima doutros, todos estavam postos polidamente, de maneira que o que estava à mesa podia comer do que quisesse sem ser necessário tirar bacio nem mudá-lo.
E logo estavam dois pauzinhos dourados muito galantes para comer com eles metidos entre os dedos; usam deles a modo de tenazes, de maneira que nada do que está à mesa tocam com a mão. E ainda que comam uma porcelana de arroz com aqueles paus, a comem sem lhe[s] cair grão. E porque comem muito limpamente sem tocar com a mão no comer, não têm necessidade de toalhas sem de guardanapos. À mesa lhe[s] vem tudo cortado e mui bem preparado. Tinham também uma porcelana muito pequena dourada, que leva um bocado de vinho, e só para isto há servidor à mesa. Bebem tão pouco porque a cada bocado de comer há-de ir bocado de beber, e por isso é tão pequena a vasilha.
Há alguns chinas que criam unhas muito compridas, de meio palmo até palmo, as quais trazem muito limpas, e estas unhas lhe[s] servem em lugar dos paus para comer.
A obra do missionário dominicano foi a primeira monografia impressa na Europa sobre o Celeste Império. Para além de sistematizar um conjunto de notícias que haviam sido recolhidas pelos navegantes portugueses ao longo de várias décadas de intensos contactos luso-chineses, transmitia também os resultados das indagações levadas a cabo pelo autor em Cantão, por ocasião de uma breve visita efectuada àquela metrópole.
Frei Gaspar da Cruz foi um dos muitos religiosos portugueses que no século XVI passaram pelo Oriente mas foi ímpar no relato que fez das suas viagens
Em 1548 ruma à Índia com outros companheiros e estabelece residências em Goa, Chaul e Cochim; visita Ceilão e parte para Malaca, onde em 1554 funda um convento da Ordem de S. Domingos; passa depois ao Cambodja em 1555-1556 (existe lá um monumento em sua homenagem) e, através do Laos, chega à China em 1556, primeiro Lampacao (uma ilha muito perto de Macau; ver mapa holandês de 1753 abaixo) e depois Cantão, tendo depois obtido autorização dos mandarins para se deslocar a Kuangtung. Entre 1557 e 1559 viaja de novo rumo a Malaca e em 1560 integra um grupo de dominicanos com destino a Ormuz para pregar o Evangelho. Em 1564 está em Goa donde acaba por partir com destino a Lisboa.
Nos anos seguintes, aproveitando elementos colhidos durante as suas deambulações asiáticas, dedicou-se à composição de um extenso Tratado das cousas da China até que contrai a peste vindo a morrer em Setúbal em 1570. Nesse mesmo ano seria publicado em Évora o seu Tratado pelo impressor André de Burgos.
Em 2010 esta obra foi reeditada em versão modernizada e em formato de bolso.Frei Gaspar da Cruz apresenta uma imagem extraordinariamente positiva da China e dos chineses, que, no seu modo de ver, superam todos os outros povos asiáticos "em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e governo, e em abundância de possessões e riquezas".
A obra tem múltiplas informações... inclui por exemplo, o primeiro relato detalhado sobre a técnica de fabrico da cerâmica pelos chineses que remonta à dinastia Tang (618-906).
Alguns excertos:
(...)
É a China terra quase toda mui bem aproveitada, porque, como a terra seja muito povoada, a gente muito em demasia e os homens gastadores – e tratando-se muito bem no comer e beber e vestir e no demais serviço de suas casas, principalmente, que são muito comedores -, cada um trabalha de buscar vida e todos buscam diversos modos e maneiras de ganhar de comer e como sustentarem seus grandes gastos. Faz ajuda muito a isto ser a gente ociosa nesta terra muito aborrecida e mui odiosa aos demais, e quem o não trabalhar não no comerá, porque comummente não há quem dê esmola a pobre. Pelo que se acertava algum pobre de pedir esmola a algum português e o português lha dava, riam-se os chinas dele, e zombando diziam: “Para que dás esmola a este que é velhaco? Vão ganhar!”
Somente alguns chocarreiros recebem prémio, [quando] subindo-se nalgum alto ajuntam gente e põem-se a contar patranhas para que lhe[s] dêem alguma coisa. Os padres e seus sacerdotes dos seus ídolos comummente são aborrecidos e desestimados, pelos terem por gente perdida e ociosa, donde os regedores não lhe[s] perdoam, mas por qualquer leve culpa lhe[s] dão muito açoite. Pelo que açoitando uma vez um regedor, diante [de] um português, um sacerdote seu, e o português dizendo-lhe porque tratava tão mal os seus padres e os tinham em tão pouco estima, respondeu-lhe: “Estes são velhacos ociosos e perdidos”.
(...)
Foram-se um dia uns portugueses nobres mostrar em Cantão um banquete que fazia um mercador rico e honrado, o qual foi para folgar de ver. A casa em que se dava era sobradada e muito linda, com muito galantes janelas e adufas, e toda era um brinco. Estavam as mesas postas em três lanços da casa, para cada convidado uma mesa muito linda e sua cadeira dourada ou prateada, e cada mesa tinha em fronte um frontal de damasco até ao chão. Nas mesas não havia toalhas nem guardanapos, assim porque as mesas são muito lindas, como porque comem tão limpamente que não têm necessidade destas coisas. Estava a fruta posta logo na borda de cada uma das mesas, toda posta em ordem, a qual era castanhas assadas e esburgadas, e nozes limpas e [d]escascadas, e cana-de-açucar limpa e feita em talhadas, e a fruta que acima dissemos que chamam líchias, grandes e pequenas, mas eram passadas. Toda esta fruta estava posta em castelinhos bem feitos, atravessada com pauzinhos muito limpos. Pelo que todas as mesas em roda, com estes castelinhos, ficavam como ornadas. Logo após a fruta estavam todas as iguarias postas em bacios finos de porcelana, todas muito bem aparadas e mui limpamente cortadas, e tudo posto em boa ordem. E ainda que iam ordens de bacios por cima doutros, todos estavam postos polidamente, de maneira que o que estava à mesa podia comer do que quisesse sem ser necessário tirar bacio nem mudá-lo.
E logo estavam dois pauzinhos dourados muito galantes para comer com eles metidos entre os dedos; usam deles a modo de tenazes, de maneira que nada do que está à mesa tocam com a mão. E ainda que comam uma porcelana de arroz com aqueles paus, a comem sem lhe[s] cair grão. E porque comem muito limpamente sem tocar com a mão no comer, não têm necessidade de toalhas sem de guardanapos. À mesa lhe[s] vem tudo cortado e mui bem preparado. Tinham também uma porcelana muito pequena dourada, que leva um bocado de vinho, e só para isto há servidor à mesa. Bebem tão pouco porque a cada bocado de comer há-de ir bocado de beber, e por isso é tão pequena a vasilha.
Há alguns chinas que criam unhas muito compridas, de meio palmo até palmo, as quais trazem muito limpas, e estas unhas lhe[s] servem em lugar dos paus para comer.
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