quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

"A Estética da Cidade" por MSM em 1915

“As obras públicas nesta colónia têm tido por objectivo principal o embelezamento da cidade. Nisto têm sido dispendidas nos últimos dez anos algumas centenas de milhares de patacas. De facto, a cidade, sob certos respeitos, está melhor do que antes do começo desse período. Todavia deve reconhecer-se que, sob o ponto de vista estético, nada se tem adiantado. Um passeio pelas ruas da cidade revela completa ausência de sentimento artístico tanto nas obras dos particulares como nas obras do Estado.
Dantes, ainda havia bom número de prédios, principalmente no estilo chinês, em que se podia notar, se não requinte de arte, pelo menos qualidades de bom gosto. Havia também alguns edifícios em estilo europeu que, embora não fossem grandiosos, eram de aparência decente, agradável. Havia mesmo alguns em que se via reproduzida, tão longe de Portugal, a feição das antigas casas portuguesas: pátio, escadaria externa de granito, salão e ao lado o quarto.
Tudo ou quase tudo isso foi abaixo; e o que em vez disso (que era alguma coisa de interessante e característico) se construiu, é uma fancaria que repugna ao mais elementar senso estético. Alguma coisa que ainda há de bom, alguma coisa decente que resta, foi o que escapou ao camartelo demolidor. 
Veio primeiramente, com ares de importância, um arremedo de estilo ‘renascença’ – a maior parte destas fachadas em arcaria, construídas com materiais impróprios e com um acabamento de barraca de feira. Tinham ainda assim as primeiras construções linhas correctas; pouco a pouco, porém, nem correcção de linhas, nem materiais adequados, nem sofrível acabamento: a mais banal fancaria.
O estilo chinês não degenerou menos. Para se darem ares de europeizados, os proprietários chineses foram abandonando pouco a pouco o seu antigo estilo, construindo habitações que nem são europeias nem chinesas. Há ainda quem se lembre da completa separação em que viviam dantes os europeus ou macaístas e os chineses. Podiam estes ter criado um novo estilo arquitectónico ou ter ao menos fundido harmoniosamente os elementos do estilo chinês com algum dos tipos ou estilos europeus. Não fizeram, porém, nada disso; fizeram o que aí se vê: construções sem arte, sem gosto, sem comodidades.  Não lhes era, de resto, fácil encontrar satisfatória solução. Dos europeus, que não sabiam construir nem manifestavam senso artístico no que construíam, não lhes podia vir exemplo nem educação. Por si, pouco ou nada podiam fazer, pois que na China nunca foi permitido alterar o tipo ancestral de construção e não tinham, por isso, em si os estímulos que sempre são necessários ao desenvolvimento artístico ou à criação de novas formas.
Este descalabro podia tê-lo evitado o Estado, dando o exemplo e ministrando a necessária instrução. Mas o Estado, que pela sua Direcção de Obras Públicas para si nunca conseguiu obter coisa que fosse digna de ver-se, nenhuma acção, a não ser negativa, exerceu sobre o espírito público. Edifícios do Estado, os de melhor construção e de melhor aparência, foram adquiridos de particulares.

A Direcção das Obras Públicas e um Conselho, por ironia denominado Técnico, tem exercido a atribuição de aprovar ou rejeitar os projectos de construções e de fiscalizar a execução de toda essa moderna fancaria predial que a cidade apresenta a quem a visita. Triste papel ambos têm feito!
Cadeirinhas na Praia Grande ca. 1900/1910
Em países adiantados não se procede assim. Ninguém é obrigado a fazer obras primas ou mesmo obras de arte; mas a ninguém é permitido levantar edificações que ofendam o senso estético do público. Exteriormente, nas fachadas que olham para as ruas, exige-se pelo menos correcção de linhas, emprego de materiais adequados ao tipo da construção e acabamento correspondente à importância da obra.
Interiormente, respeitados os preceitos da higiene, tolera-se que construa cada qual como pode ou como quer. Nesta parte governa somente o gosto, o interesse ou a conveniência do proprietário. Exteriormente, não; exteriormente o prédio é, até certo ponto, público e deve, por isso, ser construído de modo que não ofenda o senso estético comum.
Em todos os países civilizados as cidades são consideradas como valores sociais; e, assim, a sociedade tem o direito de, por intermédio de quem a representa, fiscalizar estes valores. Daí a existência de regulamentos para as construções ou edifícios dos particulares.
O regulamento de Macau é de recente data, mas, sob este ponto de vista, inteiramente deficiente. Poderiam até certo ponto completá-lo as entidades às quais a lei confere as atribuições de aprovar os planos das construções; nada têm feito, porém, a tal respeito. A composição do conselho técnico é tal, que não se ofenderia a maioria dos seus membros se, em vez de técnico, se lhe chamasse acrobático ou musical.
Por isso aí está a cidade desvalorizada, sem meia dúzia de edifícios que sejam dignos de ser vistos. Tem-se dito que entra nos planos da administração pública fazer de Macau uma cidade atraente de modo a ser procurada por turistas. Se assim é, não o parece; ou então conta-se que sejam pretos os turistas…

O mal que está feito, feito está. Daqui em diante, porém, poder-se-ia mudar de orientação. Há novas avenidas a abrir: que ao menos nessas se não tolere a construção de prédios que envergonhem a cidade; e quanto ao pouco de aceitável que resta ainda do muito que se tem demolido, que se não permitam alterações para pior. Bem sabemos que quase ninguém entre nós olha para estas coisas; mas olham os outros, os de fora, os mais civilizados; e não nos pode ser agradável que se diga e se escreva, como de facto se diz e se escreve, que Macau, como cidade, a não ser certas ruínas, nada vale.”
Artigo da autoria de Manuel da Silva Mendes publicado no jornal O Progresso 17.1.1915
Informação incluída num anuário de 1912 testemunho das múltiplas atividades de Manuel da Silva Mendes (1867-1931) em Macau: bacharel (advogado) com escritório no nº 25 da rua da Estrada da Flora; reitor interino do Liceu; professor do Liceu (português e latim); director do Curso Commercial anexado ao Liceu; membro do Conselho de Instrução Pública.

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