A 28 de Julho de 1620, navegavam de Macau para o Japão, no navio S. Bartolomeu, as seguintes pessoas: Jorge da Silva, Capitão, Fernão de Arias de Morais, Bartolomeu Fragoso, António Gonçalves de Araújo, João Taveira, Manuel Fernandes Ferrão, Luís da Fonseca, Manuel Gomes, João Casado Viana, António Cordeiro, Francisco Pereira, Jácome Francisco de Paiva, António de Almeida, João Pacheco, Francisco Lobo Guerreiro, António Pinto de Oliveira, Jorge Carvalho e João Cavalim da Fonseca.
Às 5 h. da manhã desse dia, depararam com uma nau holandesa que, segundo eles referem, «nos foi seguindo sem nos largar, e por o nosso navio não ser muito ligeiro, se chegou a nós a tiro de bombarda, e logo nos tirou três bombardas, passando os pelouros por cima do Navio, por nos tirarem a dezaparelhar, e tudo nésta maneira fugindo nos sempre délla, por que viamos, que não tinhamos partido igual para podermos velejar, por que do muito aperto, em que nos viamos tudo velejando por ser o vento muito rijo, nos quebrou a verga do traquette, e em quebrando logo se foi chegando o inimigo, e tirou mais bombardas, e capiando nos com huma toalha, que amainassemos a vela grande, que levavamos, e vendo-nos neste tempo em tanto aperto, e necessidade, e sem remedio nenhum mais, que morrermos todos, como já estavamos determinados de nos queimarmos, tratamos de pedir a Virgem Nossa Senhora de Penha da França, que nos acudisse, e fosse nossa intercessora diante do seu Bendito Filho, para que nos livrasse e ajudasse contra os dittos nossos inimigos, promettendo-se todos em huma igual conformidade de lhe darmos hum por cento, de toda a fazenda assim nessa, como de nossas partes, de toda a fazenda que o ditto Navio S. m Barthollomeu levava para o Japão, para se fazer huma Ermida separada para a ditta Senhora, esta em vulto, na Cidade de Macao, e promettida a ditta esmola, logo immediatamente fomos socorridos da ditta Senhora, por que nos fomos sahindo dos dittos inimigos de baixo da sua proa».
A 13 de Maio de 1621, fizeram eles doação da esmola ao Convento de Sto. Agostinho para que ficasse padroeiro e administrador da ermida; se esta não se edificasse, seria nula a doação; os doadores seriam mordomos da ermida em vida. Aceitaram esta doação o prior do convento, Fr. Simão de Sto. António, o procurador Fr. Aurélio Coreto e demais padres, os quais no dia seguinte, 14 de Maio, obtiveram licença de Fr. António do Rosário, O. P., governador do bispado, para edificar a ermida «fora dos limites das Parochias».
vista sobre a Penha na década de 1950 |
O prior de Sto. Agostinho apresentou ao Senado o despacho do governador do bispado e pediu que lhe apontasse lugar «que mais conveniente for para a ditta Ermida em hum dos montes, da banda do baluarte da Barra». Os vereadores despacharam: «Damos a licença pedida pelo R. P. Prior de Sto. Agostinho, na melhor forma, que devemos, no lugar já assignado, não prejudicando aos naturaes, com que Sua Magestade nos manda ter toda a boa correspondencia, por ser necessaria para a conservação desta Cidade. Em Meza de Vereação o escrevy eu Nuno de Mello Cabral, Alferes, e Escrivão da
Camara désta Cidade, do nome de Deos na China, em 29 de Julho do anno do Nascimento de Nosso Senhor JESUS Christo, de 1621 annos.--Rodrigo Sanches de Paredes, Ponciano dÁbreu, Pedro Fernandes de Carvalho, Antonio dÓliveira Aranha, Gonçalo Teixeira Correa, Lourenço de Lis Velho».
Obtidas estas licenças, o prior de S. Agostinho, Fr. Estêvão da Vera Cruz e demais padres edificaram «huma Ermida da invocação de Nossa Senhora da Penha de França situada sobre o monte do baluarte de Nossa Senhora do Bomparto, que para isso estava, havia mais de hu anno dado, e assignados pelos ditos Vereadores, como he publico e notorio, e que aos 29 de Abril de 1622 depois délle Supplicante (Fr. Estêvão) dizer Missa na ditta Ermida, interposta a Authoridade da Justiça, o Tabelião Affonso Garcez em prezença de V. Mercê o metteo de posse da Ermida, e do sitio em que estava com os limites, e agoas vertentes do ditto monte... mandando por as maons pelas paredes, levantar terra, e pedras do ditto Oiteiro, e elle se houve por mettido de posse do ditto Oiteiro».
Como o dinheiro dos doadores não chegasse para a construção da ermida, o convento acudiu com 300 e tantas patacas. Daqui se vê que todo o monte da Penha foi doado pelo Senado aos Agostinhos.
Informa Ljungstedt que este monte se chamava Nilau: «A Este está um monte Nilao, no cume do qual está a ermida de Nossa Senhora da Penha». Deve ter razão, porque este nome foi dado à bica que ficava no sopé desse monte, como se vê dum documento de 22 de Agosto de 1795: «Diz Felipe Correa de Liger Cazado, e m.or nesta Cid.e que como este N. Sen.o tem entre outras hua terra baldia cita a Orta de D. Anna Correa, e Bica de Nilao, que ainda conserva prezentamente hum pousso, que fora feito p.lo Avo do Sup.o, pertende o Sup.e cento e vinte braças de Norte ao Sul, e outras tantas de Leste a Oeste».
A 25 desse mês António José de Gamboa informou que «o Chão baldio, q o Sup.e pede tem lugar que chegue a medida, mas deve ser p.ª a banda da Orta de Antonio Joze da Costa p.ª não embaraçar o Caminho da Fonte de Nilao».
O Senado, a 9-9-1795, concedeu-lhe o terreno pedido. Mais tarde, Nilao foi corrompido em Lilau. Nos documentos atrás citados, diz-se que se pretende levantar a ermida «em hum dos montes, da banda do baluarte da Barra»; e que a ermida foi construída «sobre o monte do baluarte d Nossa Senhora do Bomparto». A colina da Penha recebeu, pois, o seu nome da ermida de N. Sra. da Penha. Parece-nos que a ermida e o forte se construíram na mesma ocasião, pois em 1638 Avalo dizia que o forte de N. Sra. da Penha de França se chamava assim por ter «dentro uma ermida com este nome».
A ermida da Penha tinha um vigário, nomeado de 3 em 3 anos, sendo sempre um frade Agostinho, que ali dizia missa aos sábados, domingos e dias santos. A ermida vivia das esmolas dos fiéis, sobretudo dos navegantes, que, ao desembarcar, ali subiam a cumprir seus votos e promessas feitas durante a viagem.
Após a extinção dos religiosos em 1834, a ermida foi entregue ao Senado; mas, por portaria régia de 12 de Setembro de 1846, foi confiada aos devotos.
Essa portaria, datada de 12-9-1846, é do teor seguinte: «Sua Magestade a Rainha, a quem foi proposto o ofício N.º 26 da Junta da Fazenda da Província de Macau, Timor e Solor, datado de 16 de Junho, submetendo à Régia aprovação a resolução tomada pelo Leal Senado da Cidade de Macau, durante a sua gerência dos negócios da Fazenda Pública, de conceder a requerimento de quarenta moradores devotos da Senhora da Penha o usofruto e administração de uma ermida, que ali há com esta invocação, aos mesmos requerentes, Manda pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, declarar à dita Junta da Fazenda que, atendendo ao cuidado e zelo, com que os referidos devotos tem tratado do arranjo da Ermida. Há por bem aprovar a resolução que o Leal Senado tomou de lhes conceder o seu usofruto e administração. Paço de Mafra, 12 de Setembro de 1846. Luiz da Silva Mouzinho de Albuquerque».
Essa Ermida era propriedade do Convento de Sto. Agostinho. Após a expulsão das Ordens Religiosas ficou o pároco de S. Lourenço incumbido da sua administração no respeitante ao culto; mas ao Leal Senado incumbia a sua superintendência, como gerente da Fazenda; pela portaria de 12-9-1846 foi a Ermida entregue aos devotos, ficando desde então sob a administração e jurisdição da autoridade eclesiástica, a qual nomeava o assistente ou encarregado da Ermida, que era o pároco de S. Lourenço.
Reconstrução
Na fachada da actual igreja da Penha havia uma lápide com esta inscrição:
Edificada em 1622
Reedificada em 1837
Um século mais tarde, em 1935, o bispo de Macau, D. José da Costa Nunes, mandou-a reconstruir desde os fundamentos juntamente com a residência episcopal. A igreja, o adro e a residência foram cercadas dum sólido muro. A igreja foi solenemente inaugurada a 13 de Outubro de 1935 pelo mesmo bispo, sendo a primitiva inscrição substituída pela seguinte:
CONSTRUÍDA EM 1934-1935 EM SUBSTITUIÇÃO DA PRIMITIVA CAPELA EDIFICADA EM 1622 E REEDIFICADA EM 1837
Protectora dos Navegantes
Montalto de Jesus escreve: «Num cume silvestre, os frades agostinhos tinham também a sua ermida, dedicada a Nossa Senhora da Penha de França (Notre Dame de France), protectora dos navegantes, em cuja honra os barcos portugueses davam uma salva ao aproximar-se de Macau, enquanto que em resposta os sinos da ermida tocavam um alegre benvindo; e à capela da Penha a multidão, ao desembarcar, ia com suas famílias, de pés descalços, render acção de graças, depositando ali ofertas pecuniárias, que algumas vezes tomavam a forma de dotações liberais prometidas na hora de grande perigo e aflição no alto mar -- costume este que encontra um paralelo nos marinheiros chineses, que, ao passar pelo pagode Ma-Kok, oferecem sacrifícios à deusa Tien Hong, para que lhes torne propícia a viagem. Macau possuía então muitas galeotas e patachos, que comerciavam com o Japão, Manila, Sião, Malaca e Índia».
Gruta de Nossa Senhora de Lurdes
A iniciativa da construção desta Gruta partiu de D. João Paulino de Azevedo e Castro. José Maria de Castro e sua esposa D. Casimira Fernandes Basto doaram para este fim o terreno que possuíam junto ao adro da Penha. Foi nesse terreno que em 1908 se construiu um arco de cinco metros de altura e outros tantos de largura e sob ele a Gruta com uma estátua de mármore de N. Sra. de Lurdes, oferecida por D. Vittória Spínola Pallavicino, natural de Génova.
Em Janeiro de 1927, foi ali colocado um altar de mármore, oferecido por António Artur dÉça, nonagenário falecido em Lisboa, em 1973. No adro da igreja da Penha foi erecta em 1909 uma estátua da Imaculada de 5 metros, de mármore de Carrara, que domina toda a cidade e sorri aos navios que demandam Macau. No fuste da estátua de N. Senhora de Lourdes, lê-se esta inscrição: Deiparae Immaculatae ad Lourdem coelitus adparenti anno quinquagesimo primo redeunte Urbs Macai pon. cur., que quer dizer: «A cidade de Macau erigiu este monumento à Imaculada Mãe de Deus no primeiro cincoentenário de sua aparição em Lurdes».
A iniciativa partiu do Pe. António Maria Alves, S. J., director das Congregações Marianas e das Filhas de Maria, as quais concorreram com as despesas, promovendo uma subscrição.
A coluna e a base foram trabalhadas em Hong Kong, sob a direcção dos arquitectos Messrs. Brown & James e a estátua feita na Itália.
Confusões
Bento da França, em Subsidios para a História de Macau, p. 62-63, escreve: «Em 1622 edificou-se a ermida de Nossa Senhora da Penha em uma das elevações mais pitorescas de Macau, ermida que ainda hoje existe e cuja imagem é muito venerada pelos marítimos. O auto legal da posse e a primeira missa foram em 28 de Abril de 1622. Esta ermida foi entregue aos religiosos de S Domingos que depois edificaram um convento junto a ella».
Há aqui vários erros: 1) a inauguração não foi a 28 mas a 29 de Abril; 2) não foi entregue aos dominicanos, mas aos agostinhos; 3) nunca foi lá edificado convento algum, mas uma residência para o capelão.
Levy Gomes repete os mesmos erros e ainda lhe acrescenta mais alguns, ao escrever no seu Esboço da História de Macau, p. 103:
«Liberta a cidade, com a derrota e fuga dos holandeses, deu-se posse do governo em 30 de Junho desse ano de 1622, ao Conselho Governativo, constituído pelo governador do bispado, Frei António do Rosário (presidente), e pelos moradores casados, Pedro Fernandes de Carvalho e Agostinho Gomes, que tinham sido providos no exercício da administração de Macau, por alvará do Estado da Índia, de 22 de Abril de 1622.
Foi durante este Governo que se edificou a ermida de invocação de Nossa Senhora da Penha de França, num dos pontos mais elevados e pitorescos de Macau, um autêntico mirante.
Fundada pelos frades de Santo Agostinho, com esmolas dos navegantes e moradores da cidade, foi mais tarde entregue aos dominicanos que, depois, junto a ela, edificaram um convento».
Os erros acrescentados por Gomes são: 1) a ermida foi inaugurada em 29-4-1622 durante o Governo da Capitão-mor Lopo Sarmento de Carvalho e não durante a administração do Conselho Governativo; 2) este não tomou posse a 30 de Junho, mas a 22 deJulho de 1622; deste dia até 15 de Julho de 1623, o Governo de Macau parece ter sido exercido pelo Senado, tendo Pero Fernandes de Carvalho e Agostinho Lobo assumido as funções de capitães da cidade em matéria de defesa, Chapas dos mandarins contra as Obras na Penha, no Bom Jesus e na Ilha Verde
Rodrigo Marim, no «Renascimento de Municipio Macaense», 371, escreve: «Também o corte do monte da Senhora da Penha (Tchu-csai) devia terminar, pois prejudicava, sobremaneira, os fetiches do pagode da Barra e sua serpente.»
Levy Gomes, no Esboço da História de Macau, copia: «Com semelhante pretexto, isto é, para se não interromper a beatífica tranquiladade dos fetiches e serpente do pagode da Barra, se nos mandava interromper o corte da Montanha da Penha».
No pagode da Barra não havia serpentes; estas só são veneradas em Penang, na aldeia de Sungei Kluang, onde há o «Templo das Serpentes» também chamado o «Rochedo de Nuvem Pura». Serpente refere-se ao dragão, que os chineses temiam ofender.
O que se deu foi o seguinte: O mandarim de Heung San requereu ao procurador de Macau que mandasse sustar o corte dum monte junto da ermida da Penha, no sítio denominado Tchu-Tchai, visto os principais moradores chineses se terem queixado de que isso prejudicava o fong-sôi (influência geomântica) do pagode da Barra.
Montalto de Jesus, no Historic Macao, deu a correcta interpretação: «Em 1829, ele (mandarim)mandou parar o corte da colina perto da ermida da Penha, para não prejudicar o fong-sui e o dragão subterrâneo do pagode Makok».
Luís Gonzaga Gomes, nas suas Efemérnides, diz o mesmo: «o mandarim de Heong-Sán pediu ao procurador do Senado que mandasse sustar o corte do monte, sítio conhecido por Tchu-Tchai, próximo da ermida de Nossa Senhora da Penha, em virtude dos principais moradores chineses se terem queixado que isso prejudicava o fông-sôi (influência geomântica) do templo da Barra».
Bento da França, nos Subsídios para a História de Macau, reproduz essa chapa de 1-4-1829, copiada das Efemérides de M. Pereira, e que é do teor seguinte: «O mandarim de Hian-chan, por appelido Len, faz saber ao sr. procurador que lhe consta estarem os europeus cortante o monte no logar chamado Tchu-csai (próximo da ermida de Nossa Senhora da Penha). Os principais moradores chinas de Macau viram que isto prejudicava o fom-xuei (agouro) do pagode da Barra e sua serpente, e pediram ao sr. Procurador que mandasse parar a obra. Para evitar que os europeus continuem em semelhantes abuso, officio ao sr. procurador que, obedecendo promptamente, o impedirá, a fim de evitar consequencias.»
Ora que vem a ser o Fong-sôi?
Os chinas consideram a natureza, não como uma estrutura inanimada, mas como um organismo vivo que respira. Supoem que existe uma cadeia de vida espiritual que liga todas as forças da existência, e que une, como num corpo vivo, tudo quanto subsiste no céu e na terra. Assim como os gregos atribuíram um espírito a cada pedra e a cada árvore e povoavam de sátiros os bosques, e de náiades os mares, assim procedem também os chinas. Fông-sôi baseia-se nesta concepção da natureza fundada em emoções e é constituído por quatro divisões: o hi ou sopro vital, o li ou ordem da natureza, o so ou produção numérica da natureza, e ying, ou formas aparentes da natureza. Tal é o sistema do Fông-sôi.
«O mandarim de Hian-chan, por apelido Pau, fez saber ao sr. procurador que recebeu o seu ofício de resposta, sobre as obras que estão fazendo na ilha Verde; no qual ofício diz o sr. procurador que os portugueses estão, há mais de duzentos anos, na posse pacífica daquela ilha, e que ali plantaram árvores e construíram edifícios e um muro em roda da mesma ilha, parte do qual e alicerces antigos ainda existem, com uma casa e suas serventias.--Ao que tem a responder ele mandarim que desde o princípio da actual dinastia se contam cento e oitenta anos. Como é, pois, que há mais de duzentos tiveram ali edifícios os portugueses? Há muito tempo que a actual dinastia concedeu aos portugueses terem casas em Macau dentro dos muros do limite da porta de S. Paulo (ou de Santo António), pertencendo o terreno fora dos muros ao palácio imperial. Ora a ilha Verde, que está fora de Macau, situada no meio do mar, em distância de alguns lis, nada tem com as habitações europeias. Não se pode, portanto, consentir que seja designada como propriedade europeia, e que ali se fabriquem muros, porque deste modo se transgridem as leis. Recomenda, pois, ele mandarim ao sr. procurador
Texto da autoria do Padre Manuel Teixeira
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