Decorria o ano de 1928. Encontrava-se a prestar serviço em Macau o primeiro-tenente da nossa Marinha de Guerra, Artur Carmona, imediato da Capitania dos Portos e um técnico destro em questões de electricidade. A pedido de um seu camarada de armas, capitão Alberto Arez, que tinha estado em Coloane, o tenente Carmona assumiu o projecto da electrificação da Vila de Coloane. Aproveitando um grupo gerador a petróleo, que estava armazenado numa oficina das Obras Públicas, e com o apoio de instâncias superiores, lançou mãos à obra. Refira-se que a electrificação destinava-se, essencialmente, a edifícios do Estado e instalações militares, ficando o remanescente da energia canalizado para a povoação de Coloane e para a alimentação de um projector de dez mil velas com um alcance de 2,5 quilómetros.
Os postes em tubo de ferro foram construídos nas Oficinas Navais de Macau. Parte do material relativo à instalação interna, de origem portuguesa, foi adquirido junto da Empresa Electro Cerâmica de Vila Nova de Gaia. Tratou-se do primeiro material eléctrico fabricado em Portugal a ser utilizado em Macau. A outra parte veio de Hong Kong. O custo total da electrificação foi de cinco mil patacas, não contando o encargo do projector, no valor de mil patacas.
Nesta obra de engenharia o tenente Carmona teve como principais colaboradores o tenente Daniel Aguiar, que cuidou muito acertadamente da colocação dos postes de ferro, e o primeiro-sargento de Marinha, artífice torpedeiro, Reinaldo Reis, que se encarregou da instalação e das provas. Terminada a obra deu-se a inauguração, com pompa e circunstância, a 7 de Abril de 1928. O Governador de Macau, acompanhado da sua esposa, dignou-se presidir à cerimónia de inauguração da electrificação da Vila de Coloane. Pelas vinte horas, Coloane estava às escuras! E assim devia ser para melhor se sentir a lei dos contrastes. Os convidados rodeavam a casa do motor. Na hora marcada, a esposa do Governador, a senhora dona Maria Ana Accia oli Tamagnini Barbosa, accionou o botão inaugural e... Coloane iluminara-se. O tenente Artur Carmona foi altamente felicitado pelos presentes, sendo mais tarde louvado em portaria. A festa terminou com um brinde de champanhe.
Exercia eu o cargo de Administrador do Posto Administrativo de Coloane, estávamos no auge da crise da Revolução Cultural na China. Os guardas vermelhos oriundos das vizinhanças de Coloane, camuflados de camponeses, visitavam-nos com periodicidade, a fim de se solidarizarem com os habitantes daquela vila nas suas manifestações e contestações. Mas nem por isso a vida administrativa deixava de ter continuidade, apesar dos condicionalismos existentes. Coisa engraçada era o facto das próprias manifestações e contestações serem precedidas de comunicação telefónica que, no entender dos organizadores, substituía perfeitamente a necessária licença administrativa, que nunca lhes foi negada, como é óbvio! E onde está o problema?
As demonstrações eram todas do mesmo género, autenticas cópias das anteriores. Os cortejos percorriam as ruas principais da Vila. Toda a minha gente empunha o seu livrinho vermelho, repetindo passagens dos «pensamentos do Mestre» que os quadros recitavam, ouvindo-se também, alternadamente, gritos sonoros contra os fascistas portugueses. Acusavam o Governador, Nobre de Carvalho, de protelar a assinatura da celebérrima «Nota de Culpa». Tudo isto acompanhado de ensurdecedoras marchas revolucionárias, lançadas por altifalantes colocados nos telhados das casas ao longo de todo o percurso.
Não faltavam também os jornalistas chineses de Macau e de Hong Kong, que vinham propositadamente fazer a reportagem dos acontecimentos. Uma legião de fotógrafos completava a caravana. Coloane estava no mapa.
Pouco mais de uma hora e a Vila regressava ao seu habitual isolamento e à sua adorável insignificância. A festa brava pertencia-nos a partir de então. A «malta» espalhava-se pelos modestos e baratos cafés da Vila, misturando-se com os seus habitantes, os mesmos que minutos antes bradavam contra nós. Bebia-se e conversava-se animada e amigavelmente, como se nada tivesse acontecido. Vamos lá compreender Macau... E onde está o problema? Macau era e é assim mesmo, um rosário de mistérios, um mundo de surpresas e de curiosas contradições.
Entre os projectos concretizados e os ainda em carteira, que tinham por objectivo levantar a moral e o prestígio da Administração, desviando ao mesmo tempo a atenção da população da Vila, a electrificação de Ká-Hó era o principal. A ideia nasceu, inicialmente, de uma rotineira visita de serviço à gafaria, por mim feita ao cair da tarde. Ao passar pela povoação de Ká-Hó, a caminho da leprosaria, uma vez mais senti um certo acanhamento pelo facto dos moradores se encontrarem a jantar à luz de candeeiros a óleo e a petróleo. Daí à resolução de levar luz eléctrica à povoação, foi um passo.
Av. 5 de Outubro |
Conseguida a colaboração do bondoso padre Nicosia, na cedência do gerador particular que alimentava a leprosaria; obtido o financiamento para as obras de electrificação, através do sempre pronto padre Lancelote; e garantidos os serviços gratuitos do electricista e proprietário da firma «Santa», In Pang, pusemos mãos à obra.
Curiosamente, o mais dispendioso eram os postes metálicos para o transporte de energia da gafaria à povoação. Estes acabaram por nos cair do céu, ou melhor, do chão.
Foi-me revelado, por um dos meus guardas auxiliares, da existência de inúmeros postes metálicos algures na montanha. Decidido a visitar o local onde estariam os tais postes, encaminhei-me para a área indicada. Para meu espanto, o referido guarda compareceu acompanhado de mais outros dez colegas, empunhando pás e picaretas. Afinal, os postes estavam enterrados bem fundo no solo.
Feitas as escavações em mais de um local, ficámos na posse da tubagem, que estava em muito boa condição e era em número mais do que suficiente para a obra. Quem teria sido o brincalhão? E porquê? O encarregado pela colocação dos postes metálicos foi o ferreiro da Vila, Au Hong, cujo avô paterno, Au Leng, – segundo ele me contou, – era um negociante de ópio em Macau, que explorava o ramo numa casa que mais tarde serviu de sede à Universidade de «Ut Hoi», à Praça Ponte e Horta. Tempos depois cedeu o negócio a um conterrâneo, de nome Pat Loi Kim, um dos pioneiros das corridas de cães.
Decorridos alguns meses, demos a obra por concluída, sem gastar um único tostão dos cofres do Território, sem auxílio de técnicos especialistas e tão pouco de grupos de trabalho, que só serviam para reuniões sucessivas em valsas estonteantes e que geralmente redundavam em minuetes. Enquanto as obras de electrificação prosseguiam, o Governo planeava, em segredo, uma evacuação geral da guarnição militar de Coloane. A notícia foi-me transmitida directamente pelo então comandante militar das Ilhas, o alferes miliciano de infantaria, Rogério Santos (hoje, doutor Rogério Santos, director clínico do Hospital Conde de São Januário, aposentado e residente em Macau).
Como poderei esquecer a mágoa – raiva, direi até, – que se apoderou de mim ao ouvir tamanha irresponsabilidade e criancice da parte das nossas autoridades, para não lhe chamar outra coisa. Mas não fui apanhado completamente de surpresa. Dias antes havia sido informado pelo intendente Fonseca Ramos, chefe dos Serviços de Administração Civil de Macau, que as negociações com os «Maoistas» se estavam a complicar e, como tal, era de considerar a hipótese de uma atitude drástica por parte dos guardas vermelhos acampados na ilha de Vong Cam, a duas centenas de metros de Coloane. Por outras palavras, uma possível invasão, como represália à demora do Governo em aceitar na totalidade as exigências dos «Maoistas» não estava posta de parte. Ainda assim, fez-me ver que era apenas uma hipótese sem qualquer prova fundamentada. Que tivesse muita calma e continuasse a exercer com dignidade e coragem as minhas funções. Na realidade, o que o intendente Fonseca Ramos quis dizer, mas não disse, foi que abandonar o Posto Administrativo de Coloane estava fora de questão.
Por mim estava tudo bem, pois sempre acreditei que o problema havia de ser passageiro. Sempre considerei que, dando tempo ao tempo, haveríamos de voltar aos beijinhos e aos abraços uns com os outros.
Coloane: início séc. XX |
A evacuação não teve lugar graças à intervenção corajosa do Rogério Santos que fez ver às altas esferas militares que a invasão estava, à partida, condenada a um triste e perigoso fracasso por razões óbvias: Coloane era uma ilha e à sua volta patrulhava a Marinha de Guerra da República Popular da China; além do mais, Coloane não podia ficar entregue à sua sorte. A tropa ficou e foi salvaguardada a honra. Por associação de ideias sou levado nas asas do pensamento até Timor-Leste. Não apareceu, pelos vistos, qualquer oficial com a coragem de convencer o comandante em chefe das nossas forças militares de que Timor não podia ficar entregue à sua sorte. A tropa não ficou, simplesmente debandou. Refugiaram-se todos na ilha de Ataúro e o resto é história.
Era um Domingo. Acabava eu e o meu braço-direito, o guarda de primeira classe da PSP, Guerra, de prestar as honras do içar da bandeira das Quinas, quando me aparece o padre Nicosia a informar que nessa noite, quando fosse accionado o botão de arranque da geradora da gafaria, os moradores de Ká-Hó já podiam jantar à luz de uma lâmpada eléctrica, ao invés da luz de um candeeiro de petróleo ou de uma vela, coisa que vinham fazendo há mais de um século. E assim se inaugurou, sem pompa e circunstância a electrificação da Vila de Ká-Hó.
Leprosaria de Ka-Hó |
Mais tarde, com o «problema de Macau» já solucionado, teve lugar a inauguração oficial com as cerimónias da praxe: queima de panchões, discursos e discursetes, comes e bebes e muitas presenças, o que custou ao erário público mais do que a obra. Apenas uma ausência: a minha, o pai da criança. É que nem faltou a manhosa usurpação da «coroa de louros», por anafado anfitrião, inicialmente pouco aberto à concepção do projecto aqui relembrado.
Embora mencionar tudo isto possa cheirar a auto-elogio, torna-se fundamental que tenhamos a consciência do esforço que se exigiu a todos aqueles isolados numa pequena Vila em hora difícil e grave da História de Macau, esforço que deveria ter recebido diferente tratamento. No dia 16 de Janeiro de 1996, isto é, 29 anos depois dos acontecimentos, reuniram-se para jantar no restaurante do Ténis Civil de Macau os «Cinco Magníficos», nomeadamente In Pang, Albertino Alves de Almeida, o padre Nicosia, Au Hong e o padre Lancelote Rodrigues. Comemoraram a electrificação da vila de Ká-Hó. Eram eles os obreiros do projecto.
Artigo da autoria de Albertino Alves de Almeida publicado no jornal O Clarim
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