segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Um tufão em 1599

Mapa de 1598
“No ano de 1599, aos 28 do mês de Julho quando eu estava na cidade de Macau, vi mais de 10 ou 12 casas arruinadas pela água e pela força do tufão que nas ilhas Filipinas é chamado pelos castelhados «huracán». As casas são feitas de terra misturada com cal viva; são fortificações de tantas a tantas braças com tabiques de pedra murados a cal, sendo as paredes estucadas com cal por dentro e por fora, e cobertas de telhas em tudo ao modo da Espanha. Depois de ter soprado com tanta fúria, que não se podia andar pelas ruas nem sequer mostrar lá a cara, o vento parou, tendo passado por todos os rumos da rosa dos ventos, e continuou durante dois dias. além de muitos danos, e naus que fez desviar por toda a costa e portos de China, fez também perder no porto de Amacao uma nau que tinha vindo do Reino do Sião, carregada de lenha chamada comummente pau brasil, que eles neste país chamam «sapan»; da qual nau conseguiram com muita dificuldade escapar-se os marinheiros siameses com as suas mulheres, que segundo o seu costume levam consigo quando fazem longas viagens… “

Edição alemã
As palavras são de Francisco Carletti nos “Arrazoamentos da minha viagem à volta do mundo” e constituem porventura o primeiro relato de um tufão em Macau. O estabelecimento dos portugueses no território não tinha ainda 50 anos.
A tradução deste excerto é da autoria do prof. Edgar Knowlton Jr (1890-1978), catedrático jubilado de Línguas Europeias na Universidade de Hawai) e pode ser encontrada no livro "Macau através dos séculos", Macau, Imprensa Nacional, 1977, do padre Manuel Teixeira.
Francesco Carletti (1573-1636), era um mercador florentino, comerciante de escravos (em Cabo Verde) e viajante. Esteve em Macau de 15 de Março de 1598 a 28 de Julho de 1599, vindo do Japão, acompanhado pelo pai, António, que acabaria por morrer  no território. Terá sido ele a trazer o cacau das Américas para África. Durante oito anos compilou as suas impressões da viagem à volta do mundo iniciada em Espanha em 1594. Entre 1608 e 1615 escreve o livro “Ragionamenti di Francesco Carletti Fiorentino sopra le cose da lui vedute ne´ suoi viaggi si dell´ Indie Occidentali, e Orientali Come d´altri Paesi“ editado em 1701.
Sugestão de leitura: a reedição deste livro em 1999, Voyage Autour Du Monde (1594-1606) Paris: Editions Chandeigne.

A propósito de Carletti aqui fica um excerto da autoria do padre Manuel Teixeira. O tema é porcelana chinesa.
(...) Carletti diz que porcelana branca com a borda azul é a mais preciosa que se vê ordinariamente. Por meio dos jesuítas ele comprou a melhor porcelana que podia obter. Não só em Portugal, mas também nalguns países da Europa, havia peças de porcelana. Henrique VIII da Inglaterra possuía uma malga de porcelana prateada. O imperador da Alemanha Carlos V (1500-58) possuía vários pratos com o seu monograma; seu filho, Filipe Ⅱ de Espanha (1522-96) tinha uma colecção de 3000 peças. No Museu Princesschof de Leeuwarden, Holanda, há uma peça com motivos chineses na borda e as armas do rei D. Sebastião de Portugal (1557-87), repetidas quatro vezes. O centro é decorado com a roda budista, cercada de 4 leões a brincar com uma bola. Nota-se que os oitos símbolos budistas que figuram nas porcelanas são: a roda, a concha, o guarda-sol, o dossel, o Iotus, o vaso, dois peixes e o nó sem fim; às vezes aparece também o Bodhidharma. Era tão grande a procura da porcelana que um regulamento do porto de Lisboa de 1522 permitia que um terço da carga do navio fosse porcelana. Isto significava muita porcelana. Assim, por exemplo, a carraca São Tiago, tomada pelos holandeses na costa de Santa Helena em 1602, levava alguns milhares de peças de porcelana. Parte dela pertencia ao Florentino Francisco Carletti que a comprara em Macau por intermédio dos jesuítas. Ele pôde adquirir fina porcelana azul e branca; ele confessa que os jesuítas também lhe forneceram grandes e lindas jarras que ele comprou por cerca de 165 reales espanhóis de prata. Carletti afirma um pouco exageradamente: “há tantas espécies que se poderia encher não um navio, mas uma esquadra”. Havia porcelanas só para uso do rei e estas eram decoradas a ouro; mas as mais lindas e mais comuns eram as porcelanas de azul e branco. Em 25 de Fevereiro de 1603, a carraca Santa Catarina, do comando do Cap. Sebastião Serrão, foi capturada no Estreito de Johore por Jacob Van Heemsherck com um junco de Macau, carregado de provisões para Malaca; a nau que, levava 700 pessoas, entre as quais 100 mulheres e crianças, foi levada para Amesterdão, onde a sua carga de mais de cem mil peças de porcelana foi vendida em leilão rendendo, três milhões e meio de florins. Devido a isso, a porcelana chinesa ficou sendo chamada Holanda Kraakporselein (porcelana de carraca).
Nota: O termo carraca (caracca em italiano e espanhol) carrak (em inglês) deriva do árabe caraquir (navio mercante); há ainda o termo árabe harraca (barco pequeno).

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