Ao observarmos a longa duração da história da vida escolar ou académica constatamos que há incidentes de percurso, às vezes graves, que se devem a causas menores, por exemplo, à fragilidade das relações humanas, ao choque de personalidades, à irreprimível vontade de testar os limites da autoridade ou mesmo à inconfessada ânsia de tomar o poder dentro do microcosmos escolar. A natureza humana é deveras misteriosa. As Escolas são férteis nesse género de situações e o Liceu de Macau não fugia a essa regra.
No início de 1968, no Conselho Disciplinar, de 5 de Janeiro, convocado e presidido pelo Reitor, António Maria da Conceição, foi feita uma preocupada reflexão global sobre a disciplina que seria necessário reforçar e muito, dada a perigosa deriva existente. O Padre Manuel Teixeira, professor de Religião e Moral, lamentava “que algumas alunas se apresentavam no Liceu com vestuário impróprio. Usavam mini-saias ou mini-batas, coisa que devia ser proibida no Liceu para bem da formação moral dos alunos”; a directora do 2º ciclo, professora Ana Maria Amaro disse que “no conselho de turma do 5º ano para classificação de aproveitamento e comportamento dos alunos, no fim do período, foram relatados factos tão anormais de indisciplina que foi resolvido pedir ao senhor Reitor que reunisse o conselho disciplinar”; o Secretário, professor João Ferreira Felício tem uma intervenção apocalíptica, sobre os alunos, “começam por tocar viola e jazz, vem depois a droga, marijuana e sexo e por fim, ai jesus que a criminalidade juvenil é alarmante”; a professora Aida Pina Manique “perguntou finalmente ao senhor Reitor que havia de responder aos professores que com frequência lhe perguntavam o que tinha acontecido aos alunos que riscavam as faltas disciplinares marcadas pelos professores no Livro de Ponto”. Outras intervenções, da médica escolar, Drª. Maria de Lurdes Assumpção, ou da directora do 3º ciclo, também eram reveladoras de graves problemas disciplinares que era urgente pôr cobro. Sentia-se, claramente, o esboroar da autoridade e um afrouxamento da vigilância das normas éticas e morais. O contexto local (sequelas da revolução cultural) e o contexto metropolitano (guerra no ultramar e um regime político autoritário) podem explicar um pouco a pulsão libertária que animava a juventude do Liceu, refractária também aos cristalizados ensinamentos da Igreja.
O Reitor, em vez de puxar pelos galões, optou por expor com clareza o seu pensamento pedagógico: “Não é a primeira vez que dirijo um estabelecimento de ensino, como podem supor. Quando voltei para Macau há pouco menos de 30 anos, vim para dirigir a Escola Comercial Pedro Nolasco, função que exerci durante seis anos consecutivos. Depois, fui também director da Escola Primária Oficial masculina por mais ou menos igual período de tempo. Na direcção dessas duas escolas, segui o mesmo princípio que sempre norteou a minha já longa carreira de professor – considerar a escola uma grande família, em que os colegas eram irmãos e os alunos filhos, a ambos estimando como se de facto á minha família pertencessem. Tratando com franqueza e amizade fraternais os professores e com carinho e tolerância paternais os alunos, consegui sempre consideração, harmonia e leal colaboração da parte do corpo docente e respeito, obediência e amizade da parte dos alunos, com o que a disciplina e o bom andamento dos serviços escolares só tiveram a lucrar, não se tendo verificado jamais, durante esses anos todos, a mínima desarmonia entre director e professores, nem qualquer actos de grave indisciplina ou desrespeito por parte dos alunos”.
Terá o Conselho entendido estas palavras como uma inominável fraqueza do Reitor ? Ou, pelo contrário, terá compreendido essa atitude profundamente educativa, de leal bondade, de humanismo e de compreensão do Outro ?
O Reitor foi dizendo, “por razões que todos conhecem – a acumulação de cargos – não tenho podido prestar à manutenção da disciplina no Liceu a atenção que a mesma requeria. Em breve, porém, com a chegada do novo Chefe dos Serviços de Educação, já poderei dedicar-me mais aos assuntos do Liceu, e então, estou confiado, a disciplina dos alunos melhorará grandemente, pois então já terei tempo com o auxílio de todos de velar por ela”.
Ficou uma pequena dúvida no Conselho, como compaginar a bondade com a autoridade ? Não consta que tivessem lido “Alguns Pensamentos sobre a Educação”, de John Locke, para procurarem uma resposta satisfatória. A imprensa inglesa de Hong Kong noticiava a turbulência do Maio de 68 em França, uma janela de liberdades, e de generalizada contestação de toda e qualquer autoridade, aberta ao mundo. Os elementos mais esclarecidos da comunidade portuguesa de Macau, estavam gratos à Comissão de Censura que impedia a circulação dessas ideias e imagens, porque receavam a atracção da juventude por esse ideário. Trabalho em vão, como se compreende.
Um ano depois, no pachorrento dia 24 de Janeiro de 1969, uma aluna do 5º ano do Liceu [muitos anos depois, minha aluna na Escola Técnica dos Assuntos Chineses e entretanto já falecida] comete a impertinência e a deselegância de escrever na folha do exercício escrito frases inapropriadas, quiçá ofensivas para a dignidade profissional de uma sua professora. Nessa atitude era, diga-se, reincidente. Atendendo à idade, não era uma falha de carácter mas apenas um acto de má educação.
Pela lógica decorrente da legislação escolar e dos bons costumes, a aluna seria inapelavelmente sancionada após um procedimento disciplinar conduzido pela hierarquia do Liceu. E foi justamente isso que sucedeu. A professora em causa apresentou a queixa no dia 31 de Janeiro. Nesse mesmo dia o Reitor pondera a situação e aplica à aluna uma suspensão de oito dias, à luz do Estatuto do Ensino Liceal, assinado por António de Oliveira Salazar em 17 de Dezembro de 1947. Contudo, o Secretário lembrou ao “senhor Reitor que era um acto ilegal, além de que para se aplicar um castigo justo era necessário esclarecer bem e interpretar convenientemente a conduta da aluna”. O Reitor aceita o reparo e nomeia o Secretário para instruir o processo, no dia 10 de Fevereiro. O Secretário, professor João Felício, procura ir mais além, com quesitos estranhos à matéria da participação. A professora teve dúvidas sobre a legalidade dessa inquirição, abusiva e intempestiva, pelo que faz a pergunta ao Reitor. Este, alarmado com o rumo impróprio da investigação, instaura um procedimento disciplinar ao Secretário, que, de acordo com o Estatuto do Funcionalismo Ultramarino, seria acusado de “desobediência e má compreensão dos deveres profissionais”. O processo será arquivado, no dia 6 de Março, porque tinha um registo profissional impoluto ao longo de trinta anos de serviço. Era o princípio do fim da cordialidade no relacionamento interpares e institucional.
Contudo, uma leitura restritiva da legislação permitiu ao Secretário do Liceu, professor João Ferreira Felício, desferir um inaudito e violento ataque ao Reitor do Liceu Nacional Infante D. Henrique, professor António Maria da Conceição. O professor João Ferreira Felício tinha chegado a Macau em 1949 sendo Reitor o professor Alberto Garcia da Silva, e desde então foi nomeado Secretário do Liceu. Macau era governada pelo comandante Albano Rodrigues de Oliveira.
A queixa hierárquica e formal foi entregue no dia 22 de Março à chefe da Repartição Provincial dos Serviços de Educação de Macau, Ricardina Rosa y Alberty Lopes da Silva. Rapidamente foi nomeado o Intendente Administrativo João Calleres Júnior, antigo Administrador das Ilhas, secretariado por Gustavo Edmundo Batalha, para analisar e dirimir o conflito. Esta questão trouxe algum frisson na vida do Liceu, então com pouco mais de 430 alunos, e foi um excelente húmus para alimentar a coscuvilhice da comunidade portuguesa.
A queixa hierárquica e formal foi entregue no dia 22 de Março à chefe da Repartição Provincial dos Serviços de Educação de Macau, Ricardina Rosa y Alberty Lopes da Silva. Rapidamente foi nomeado o Intendente Administrativo João Calleres Júnior, antigo Administrador das Ilhas, secretariado por Gustavo Edmundo Batalha, para analisar e dirimir o conflito. Esta questão trouxe algum frisson na vida do Liceu, então com pouco mais de 430 alunos, e foi um excelente húmus para alimentar a coscuvilhice da comunidade portuguesa.
O professor João Felício, na sua queixa, diz que “perante o descalabro, incluindo o aspecto moral, para o qual o sr. Dr. António Maria da Conceição estava a encaminhando o Liceu nos primeiros meses do seu reitorado, denunciou a acção do Senhor Reitor no que foi secundado pelos directores de ciclo”, sendo, por vezes, contundente, “aprova todas as propostas tendentes a resolver problemas de limpeza, indisciplina dos alunos, indisciplina e desleixo dos empregados, mas não põe em prática nenhuma, incluindo o Regulamento Interno que para ele é letra morta”.
O Reitor, professor António Maria da Conceição, redige uma notável peça argumentativa, demolindo e rebatendo ao longo de vinte e uma páginas, (e honra lhe seja prestada, sem recorrer a argumentos ad hominem), as queixas aduzidas pelo Secretário, professor João Felício. Respigo estas passagens reveladoras: “perante afirmações tão atrevidas e irresponsáveis, reveladoras duma completa ignorância das normas legais reguladoras do assunto, o que se torna absolutamente prejudicial à boa execução das suas funções de secretário”, lembra que na “verdade procurou o signatário no seu relatório, delicada e diplomaticamente, dar ao Sr. Dr. João Ferreira Felício, Secretário do Liceu, umas noções da forma como deveria proceder no exercício das suas funções cominadas na alínea b) do artigo 220 do Estatuto do Ensino Liceal, uma vez que, o queixoso, na sua defesa aos artigos de acusação que lhe foram formulados no supracitado processo disciplinar, deu tantas provas de incompetência e ignorância das normas legais reguladoras da organização de processos”.
Do triunvirato directivo do Liceu, Reitor, Vice-Reitora e Secretário, apenas a Vice-Reitora e professora de Matemática, Fernanda Mota Salvador, se mantinha aparentemente equidistante em relação ao conflito que era deveras ruinoso para a reputação do Liceu, maxime, da imagem da comunidade portuguesa.
No dia 19 de Junho, o Intendente Administrativo João Calleres Júnior apresenta o seu Relatório, no qual avultam estas três conclusões: a primeira, “Parece não haver dúvidas de que a aluna foi bem castigada. Demonstrou mais do que uma vez irreverência, falta de consideração e respeito para com a professora”; a segunda, “É muito estranha a queixa do Sr. Professor Dr. João Ferreira Felício e analisando concretamente chegamos à conclusão que se excedeu nas instruções que recebeu do Reitor para proceder a averiguações contra o comportamento da aluna, colocando a professora no banco dos réus. Da participação ou queixa do professor João Ferreira Felício resultou uma acumulação de faltas que impõe levantamento do respectivo processo disciplinar. Por outro lado, o muito tempo de serviço que tem como Secretário do Liceu criou-lhe hábitos que não convém manter para sossego e boa harmonia do Liceu”; a terceira, “Quanto ao Reitor, Dr. António Maria da Conceição que fez a maior parte da sua vida como professor primário, julgo estar deslocado ; o seu feitio bondoso, a forma como sempre lida com quem quer que seja sem má fé e a sua falta de energia não o indicam para Reitor do Liceu, que tem forçosamente de ser um indivíduo de pulso. Assim, parece que o mesmo deve ser desligado de tais funções”.
Estas miudezas burocráticas e processuais, com picardias à mistura, escondiam algumas questões aparentemente invisíveis. Por um lado, o conflito entre teorias e metodologias, assumindo o professor João Felício um certo vanguardismo de ideias pedagógicas que fazia questão que fossem abundantemente registadas em quase todas as actas das reuniões. Promovia a difusão em Macau de algumas novas orientações para o Ensino Preparatório, aprovadas pelo Ministro da Educação, professor José Hermano Saraiva. Notava-se que mantinha a irresistível ambição de ascender ao cargo de Reitor, um lugar de prestígio como se calcula. Após duas décadas como Secretário de cinco Reitores (Alberto Garcia da Silva, Pedro Guimarães Lobato, José Tertuliano Cabral, Énio Ramalho e António Maria da Conceição), era chegada a sua hora. O seu acrisolado nacionalismo estava bem patente no livro “Portugal Pequenino e Gigante”, editado na Imprensa Nacional de Macau, em 1968.
Por outro lado, o Reitor revelava-se uma personalidade discreta, sensível, que procurava apagar-se perante o colectivo, exercendo o cargo com elevação e bonomia. Jorge Rangel, antigo aluno do Liceu, recorda os protagonistas do modo seguinte: “O Dr. Ferreira Felício, que não preparava as lições e batia nos alunos, o exemplo do que o professor não deve ser, o professor menos simpático que conheci”; “o Dr. António Maria da Conceição, professor de Francês, que adormecia por vezes nas aulas mas que nos deu as bases para um melhor conhecimento duma língua importantíssima na época e a oportunidade de descobrirmos os grandes escritores franceses”.
Em Abril de 1969, na sessão solene das comemorações dos 75 anos do Liceu, António Maria da Conceição profere o seu último discurso na qualidade de Reitor, publicado no jornal “Notícias de Macau”, no dia 22 desse mês. Para serenar o ambiente interno da instituição educativa e também para tranquilizar a comunidade portuguesa, o governador Nobre de Carvalho decide dar por finda a comissão de serviço do Reitor e do Secretário, em Agosto de 1970. Invocava uma urgente conveniência de serviço, um eufemismo que dispensava uma qualquer explicação. No dealbar do novo ano lectivo, a vice-reitora Fernanda Mota Salvador foi interinamente provida como Reitora do Liceu Nacional Infante D. Henrique.
Artigo da autoria de António Aresta - Janeiro 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário