sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

A Loteria da Santa Casa Misericórdia

Ainda antes do Governo de Macau fazer concursos para a concessão da exploração de jogos chineses mediante pagamento de uma renda fixa, foram introduzidas em Macau em 1810 lotarias do tipo ocidental, as primeiras do género em toda a Ásia. Surgiram na sequência de uma Carta Régia de Junho de 1810 que autorizou as instituições de beneficência a emitir lotaria anualmente, com vista a “manter as instituições assistenciais em funcionamento”. Esta norma foi depois aplicada pelo Senado em Macau - Alvará de 5 de Julho de 1810 - e manteve-se até pelo menos à década de 1960.
Eram uma forma de angariação directa de fundos para fins altruísticos: para comprar roupa, comida ou medicamentos aos mais necessitados; para ajudar na construção de escolas; etc... sendo que entre 10 a 15% dos lucros revertiam para o governo que depois os canalizava para o Leal Senado sendo usados em obras públicas.
A exploração destas lotarias esteve 'entregue' durante mais de um século à Santa Casa da Misericórdia de Macau, instituição criada em 1569.

Na imagem ao lado: Bilhetes no valor de 50 avos cada de uma extracção da Lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Macau em Setembro de 1900

No Artigo 94.° dos Estatutos da Irmandade pode ler-se:
"O amanuense extraordinário para o serviço da loteria terá a seu cargo todo e qualquer expediente referente á loteria que lhe  fôr incumbido, e escripturará especialmente o livro de registo dos bilhetes premiados, divididos em decimas, com as descargas respectivas que costumam ser feitas á medida que os concessionários da revenda dos bilhetes apresentarem os bilhetes premiado para serem inutilisados."
Os bilhetes das lotarias da Santa Casa da Misericórdia foram emitidos nos termos de regulamento específico. Na fase inicial chamavam-se "loterias" e a Santa Casa era directamente responsável pela emissão, havendo quatro a seis sorteios por ano sob a superintendência da autoridade competente da Administração Portuguesa de Macau. A partir de 1833, a Repartição Superior da Fazenda da Província de Macau começou a organizar concursos públicos para propostas em carta fechada para a arrematação da revenda em  exclusivo dos bilhetes de lotaria. A exploração seria arrematada a quem oferecesse o prémio mais elevado e a validade do contrato de concessão a celebrar seria de um ano, com vista a promover a eficiência da exploração das lotarias. Os bilhetes de lotarias eram emitidos até um limite determinado, sendo os lucros apurados após o pagamento dos prémios, rendimento do vendedor e demais custos inerentes ao seu lançamento, revertidos para a Santa Casa da Misericórdia. Os limites dos bilhetes, sem valor total e valor facial variavam de ano para ano. 

in Boletim do Governo: 1864
O auge das receitas desta lotaria registou-se entre 1890 e 1910. Chegaram a realizar-se sorteiros todos os meses. Em 1895 registaram-se alguns problemas nestas emissões; o governador ordenou um inquérito e o director da fazenda (finanças) e o provedor da sanrta Casa seriam demitidos e enviados para Lisboa.
Em 1898 foram lançados 10 000 bilhetes de valor facial de 4 patacas, sendo o valor total 40 mil patacas, enquanto à Santa Casa da Misercórdia foram entregues 3 200 patacas.
Em 1902 foi introduzida legislação específica emanada de Lisboa. "Attendendo ao desenvolvimento que tem attingido a loteria da Santa Casa da Misericórdia de Macau e á necessidade de fixar n'um diploma legal as condições de existência da mesma loteria e a partilha dos respectivos lucros"... enunciava o despacho do Ministério da Marinha e Ultramar para ditar como lei:
1.° Fica legalisado o estabelecido para a loteria da Santa Casa da Misericórdia de Macau, com as seguintes modificações:  1.° A adjudicação será feita em praça publica, com as necessárias solemnidades e garantias estabelecidas pela lei. 2.° A percentagem a pagar pelo adjudicatário não será inferior a 8 por cento nem superior a 10 por cento da importância dos bilhetes emittidos. 3.° O praso da adjudicação não será inferior a cinco annos nem superior a 8 annos. 4.° Os lucros líquidos serão divididos da seguinte forma:  50 por cento pertencerão ao Estado, dando entrada no cofre da Fazenda Provincial. D'esta parte será separada importância não inferior a um quinto, para ser transferida para o reino como subsidio ao Instituto Ultramarino; 15 por cento entrarão no cofre do Leal Senado, para terem á applicação em obras de utilidade geral;  35 por cento serão reservados para a Santa Casa da Misericórdia, a fim de serem empregados, por esta, em obras de beneficência publica." Assina O Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, no Paço, em 28 de junho de 1902 - Rei - Antonio Teixeira de Souza.
A Santa Casa estava tão dependente deste tipo de financiamento que só assim se percebe esta disposição legal:  O diploma legislativo n.º 20, de 18 de Junho de 1925, concede, provisoriamente, à Santa Casa da Misericórdia um subsídio anual de $6.000,00 sempre que esteja suspenso o exclusivo da renda de bilhetes da lotaria da mesma Santa Casa.
Em 1963, década em que terminou este tipo de lotarias, o limite da emissão foi de 4 000 bilhetes com o valor facial de 2 patacas cada, sendo o valor total de 8000 patacas. Ao longo do ano, houve 4 séries de lotarias cujos sorteios se realizaram em datas predeterminadas em cada estação do ano. E para cada série, o limite de bilhetes lançados era de 1000, os quais eram premiados 120 com valores diferentes.
Uma emissão de 1903 (cima) e outra de 1933 (baixo) 
Curiosidades:
O Governo de Macau autorizou lotarias de forma pontual para outras instituições...
Em 1852 o Senado foi autorizado a emitir lotarias cujas receitas se destinavam a financiar as escolas a cargo da instituição.
Em Janeiro de 1862, a“Nova Escola Macaense”, fruto da iniciativa privada - tinha uma secção de ensino secundário e outra de ensino primário, admitindo estudantes do sexo feminino e com isenção de propinas para os pobres - foi financiada com a emissão de uma única série de bilhetes de lotaria, com vista a obter fundos no valor de 1200 patacas.
Em Junho de 1862 o Procurador do Leal Senado de Macau, Lourenço Marques, apresentou uma proposta para a construção de um monumento no Jardim da Vitória, em memória da felicíssima vitoria contra os holandeses em 1622. A deliberação tomada foi no sentido de que as despesas inerentes àquele monumento seriam satisfeitas por meio de uma lotaria, para além de subscrições pessoais.
Em 1927, a emissão conjunta de bilhetes de uma lotaria especial por parte da Santa Casa da Misericórdia e do Hospital Kiang Wu com vista a angariar fundos destinados às acções filantrópicas. No âmbito desta série de lotaria, foi prevista a emissão de 22 000 bilhetes de valor de 10 patacas, sendo o valor total  220 mil patacas. As receitas foram distribuídas da seguinte forma: 70% ou 154 mil patacas destinadas a prémios; 7,5% para os vendedores; 1% para instituições ultramarinas; os restantes 21,5% são repartidos em partes iguais pela Santa Casa e pelo Hospital Kiang Wu, depois de deduzidas as despesas inerentes.

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