sexta-feira, 8 de março de 2019

A 'Cidade China' há cem anos

Até ao fim do século XIX notava-se, com clareza, a delimitação de Macau em duas cidades relativamente distintas: a cristã ou europeia e a chinesa. A primeira, com habitações e palacetes de arquitectura portuguesa, os seus jardins e árvores de fruta ocidentais, espalhava-se pelo centro e sueste da península, à volta das igrejas e conventos antigos, na parte que antes formava o velho burgo "intra muros". O contínuo repique dos sinos, desde as Avé-Marias do alvorecer até ao toque das almas, às 21 horas, o retumbar dos tambores e o soar dos clarins dos quartéis da guarnição, davam a Macau uma fisionomia que a diferenciava de outras urbes da região, "onde predominava (e predomina) o espírito prático dos ingleses (e chineses) e em que a actividade comercial absorve todas as outras manifestações de vida".
Fora dessa área da pólis, mosquejavam as chácaras ou quintas dos macaenses ricos e dos estrangeiros, a sul, entre a Barra e o Nilau (Penha) e, ao norte, na Flora, Cacilhas, Solidão e D. Maria II, bem como as colónias balneares da, já aterrada, Areia Preta. Que as (pelo menos) dez estâncias da Ilhas da Lapa, donde provinham legumes e carne, haviam sido abandonadas, cerca de 1764. As chácaras mais importantes, dentro da península, eram a de S. José (ou do Manochai), a de Santa Sancha, a de Maria Filipa, a Leitão (esta, em frente do cemitério dos Parses) e a das Madres Canossianas (na Areia Preta). Havia também as Hortas da Mitra, do Patane, do Volong (até 1894), da Companhia, do Bom Jesus, dos Mouros e o Horto do Espírito Santo.
A "cidade china" abrangia a orla ribeirinha do Porto Interior, desde o pagode da Barra ao de Lin-fông, penetrava no Bazarinho e na Rua da Alfândega, no Bazar e em S. Lázaro, e espraiava-se até à colina de Mong-há, incorporando e engrossando as três aldeias, de agricultores e pescadores do arrabalde nortenho.

Em cima a Igreja de S. Domingos numa ilustração de George Chinnery. Em meados do século 19 onde se podem ver chineses a fumar ópio, jogadores, mercadores que fazem das bancas mesas de jogo, venda ambulante, camponeses com gado, senhoras de dó que vão à Igreja acompanhadas de criados que carregam um guarda sol. Nesta época a "cidade cristã" estava dividida da "cidade china", cuja fronteira começava logo detrás da Igreja de S. Domingos.
Pela mão de quatro guias coevos (Manuel de Castro Sampaio, o brasileiro Henrique C. R. Lisboa, o Conde de Arnoso e Bento da França), vamos percorrer os bairros chineses de Macau de há cerca de um século, fixando-nos no tipo dos seus habitantes, no seu trajo, casas, alimentação, usos e costumes. No percurso descritivo, teremos ocasião de observar que, em determinados quarteirões, como o Manduco, faldas do Monte (Si-shén = monte dos dióspiros), Travessa dos Diabinhos (hoje dos Anjos) e principalmente S. Lázaro e S.to António as comunidades portuguesa e chinesa conviviam, paredes meias, em boa harmonia.
Entre os grupos étnicos ou sub-raças que povoam a província do Kuongtông, assinalam-se, por ordem decrescente em número e importância, os Han, os Lai (da ilha de Hainão, afins dos Tailandeses), os O, os Miu ou Meao (que predominam no norte do Laos), os Yueh, os Wui, os Chong e os escassos Keng. 
Em Macau, encontram-se exemplares de todos, mas sobressaem os Han, chineses mais puros, que desceram do norte e se miscigenaram com os Yueh (196 a. C.) e os malaios da costa, durante a dinastia Han Posterior (25-220 p. C.). Falam o Punti (nativo) ou cantonense, língua somente oral, que era mais castiça no povo das cidades e campos dos distritos de Cantão e Siu-hing (Kou-yiu). A actual democratização do ensino, porém, nivelou mais a pronúncia, mormente nos grandes centros urbanos: Cantão, Fat-shán, Macau e Hong Kong.
Apresentavam os cantonenses (Han), há um século, face carnuda, tez trigueiro-pálida, lábios grossos e descorados, nariz achatado, pupilas escuras ou castanhas em olhos de amêndoa, barba rala e cabelo preto e luzidio. O regime alimentício e a higiene europeias, todavia, têm-lhes esbranquiçado a pele, suavizado gradualmente as fisionomias e aloirado levemente o próprio cabelo. Por imposição dos Manchus, os chineses rapavam o cabelo à navalha, excepto desde o alto da cabeça à nuca, onde o deixavam, formando o rabicho, que um retrós negro apertava na extremidade e tornava mais longo. Enquanto trabalhavam, os operários, criados e tancareiras enrolavam o rabicho em volta da cabeça e as últimas cobriam-se com um lenço.
As senhoras de distinção apanhavam o cabelo todo atrás, entufavam-no, erguiam-no em forma de duas asas, junto às orelhas, e prendiam-no com um travessão de prata ou oiro (penteado de borboleta). As mulheres solteiras enfeixavam o cabelo numa trança que lhes descaía pelas costas abaixo. Com frequência, prendiam-no num botão, do lado direito do fato.
Muitos dos chinas ricos de Macau eram mandarins honorários, que aqui se tinham acolhido de guerras civis ou na sua reforma. Isto mesmo aconteceu, em Kowloon, com os oficiais civis e do exército chineses, após 1911. Vestiam aquelas cabaias compridas de seda, calção do mesmo tecido, meias de algodão fino e sapatos de seda preta, com base alta de papel branco, fazendo bico na ponta. De inverno, enfiavam sobre a cabaia um gabão, acolchoado com algodão em rama (min-nap). Ordinariamente, quando saíam à rua, faziam-se transportar em cadeirinhas ou liteiras, algumas delas de luxo, que dois ou quatro cules carregavam aos ombros, por meio de dois varais de marmeleiro seco ou pingas.
As damas de distinção sobressaíam pelas cabaias de "mangas perdidas" ou muito largas, pelo corte mais elegante da roupa e pelo abuso dos cosméticos e jóias, sobretudo de jade.
Os trabalhadores e lojistas trajavam calças largas de ganga preta ou de côr, caminhavam descalços e de tronco nu, durante o verão, e andavam em cabelo. Os cules usavam chapéus de palha de grande circunferência (tudum) e serviam-se de alpercatas sem meias.
As mulheres de classe baixa vestiam a cabaia curta (blusa) de ganga preta ou azul, e calças folgadas da mesma fazenda. Quase todas andavam descalças, costume que hoje abandonaram.
O sombreiro ou guarda-chuva era de papel oleado, com armação de bambu e cores garridas, como nas clássicas aguarelas japonesas, mas já se iam então introduzindo chapéus de sol europeus.
As habitações da "cidade china" de Macau, há um século, eram de um ou dois andares, sem luz nem ventilação suficientes. As casas ricas assemelhavam-se umas às outras, na traça. No exterior, rodeava a vivenda um muro alto de pedra ou tijolo. Formavam, às vezes, o portal de entrada três arcos consecutivos de cantaria, ou madeira esculpida. Vinha depois o vestíbulo, ao fundo do qual se abria outra portaria tríplice, que dava acesso a um pátio, onde estavam as salas de visitas. Sucessivamente em vários corpos de edifícios, desenvolviam-se os apartamentos para habitação, intermeados de implúvios quadrados, com árvores miniaturais (p'un-ch'oi) e um tanque de água e correspondendo-se por corredores de portas circulares. Os aposentos destinados às mulheres situavam-se sempre nos pavilhões mais recuados.
Os pobres residiam nos subúrbios, em barracas com muros de adobes e tectos de palha. Nas partes alagadiças de Sank'iu e Sá-Kóng, levantavam-se tugúrios em estacaria. As tancareiras e suas famílias, originárias de Fu-Chau, ocupavam o escalão ínfimo da sociedade. Viviam confinadas aos seus barcos, ancorados no Porto Interior ou na Praia Grande, com os filhos, maridos (que podiam trabalhar na cidade), cães, galinhas, porcos e cozinha.
O Bazar era um amontoado de ruas tortuosas e estreitas, muitas das quais perduram hoje, moradias baixas e coladas umas às outras, numa irregularidade que perturba a vista, pelos inúmeros paus, tabuletas, roupas a secar, cordas e utensílios de toda a espécie, dispostas nas fachadas ou atravessando as ruas ao alto.
A densidade altíssima da população, a continuidade das casas, com janelas apenas na frontaria, a estreiteza das vias públicas, a promiscuidade em família de homens e animais, a falta de separação entre bairros comerciais e de residência, a avidez de aproveitamento de quase todos os rés-dos-chãos para o negócio e o atávico desleixo e pouco asseio dos chineses, à sua volta, transformavam a sua enorme área habitacional numa emanação constante de cheiros de almíscar, ópio, verniz, azeite e sobretudo peixe e esterco. Ainda hoje, a passagem, pela Travessa do Soriano, Rua dos Mercadores, Beco das Caixas e outras artérias, tem de fazer-se depressa e de nariz tapado...
"A mobília das habitações chinesas tinha uns longes da que no século XVIII se usava na Europa. Ostentavam-se ali belos móveis, magníficas madeiras, mármores notáveis, relevos, recortes e doirados primorosos, pois em obras de talha têm os chins muita perícia".
Nos talhos, viam-se suspensas as grandes peças de carne e as aves, já sem penas. Debaixo de toldos, na rua e ao lado de bancos, preparava-se o chá e cozinhava-se em fogareiros, como nas tascas das romarias. Vendedores ambulantes apregoavam frutas, as belas lechias, de cor de tijolo como os abrunhos e com o delicado sabor de uvas moscatéis. Outros apregoavam hortaliças. Um formigueiro de chinas atulhava as ruas numa grande azáfama. De vez em quando, elevava-se a uma grande altura um hão, casa de penhores, (como) a do sr. Chung-Volong que tinha nada menos de seis andares. No pavimento térreo, estavam os empregados ocupados na escrituração; os cinco andares para onde se subia por uma estreita escada, não tinham nenhuma divisória e eram, em toda a sua extensão, ocupados de alto a baixo e a todo o comprimento por filas paralelas de magníficos armários de madeira, onde se conservavam os penhores. Entre cada fila, havia apenas o espaço necessário para dar serventia aos armários. Estas casas eram tão bem organizadas, que mesmo gente que não necessitava de dinheiro, depositava nelas, nas diferentes estações, para melhor os conservar, os vestuários de que não precisava. Os ferros-velhos ou tin-tins lembravam as instalações da nossa feira da ladra, em Lisboa.
Os colaus, casas de pasto, tinham largas e luxuosas escadarias e os espelhos dos degraus sempre dourados. Havia alguns que eram ao mesmo tempo hospedarias, pois dispunham de quartos para dormir. Era nos colaus que os chinas faziam as suas parties fines. Os criados gritavam do cimo da escada os nomes das iguarias escolhidas, tal como quem diz: "Sala meio bife!"
Eram numerosas as casas de fan-tan. Iluminadas com balões e lanternas, estavam abertas durante todo o dia e até à meia-noite. Os chinas ricos e os europeus, para se não misturarem com a gentalha, subiam ao andar superior e jogavam sentados em volta duma balaustrada que se elevava do sobrado roto desse pavimento. O dinheiro das paradas fazia-se subir e descer, em cestos de palha suspensos de cordas, atadas à balaustrada. O arrematante do exclusivo do fan-tan pagava à Fazenda a quantia de cento e vinte mil patacas por ano.
A lotaria do Vae-Seng era também outro vício do china (de há um século, em Macau). Sempre que havia exames de Estado em Pequim e provinciais em Cantão, de 3 em 3 anos, cada bilhete da lotaria incluía 20 apelidos de candidatos. Cada colecção de mil bilhetes formava uma série e cada série constituía uma lotaria com três números. O prémio era ganho pelo bilhete que contivesse maior número de apelidos de candidatos premiados. Havia bilhetes de meia pataca, uma, duas, três, cinco e dez. Com um bilhete de dez patacas, podiam ganhar-se seis mil. Desde que o governo chinês permitiu a venda dos bilhetes em Cantão, o arrematante do Vae-Seng em Macau pagava apenas trinta e seis mil patacas anuais (ao governo português).
Prosperavam, então, neste Território, várias indústrias: bastantes fábricas de chá, que faziam excelente negócio, uma de tabaco, uma de cozedura de ópio, a de cimento da Ilha Verde e três de desfiar seda, a maior das quais era a Hap-Keng-Lun, em que se empregavam quatrocentas e tantas mulheres. Isto fez baixar consideravelmente o número das infelizes que se entregavam à prostituição. A pesca e a salga de peixe ocupava em Macau, nas últimas décadas do século XIX, pelo menos dez mil pessoas e o seu valor elevava-se em cada ano a oitocentas mil patacas.
Exportavam-se, finalmente, para a Europa "as tranças cortadas aos cadáveres dos chinas", donde se fabricavam cabeleiras postiças. Havia ainda um clube chinês para fumar ópio, que o Conde de Arnoso descreve com pormenor.
A alimentação dos chineses de Macau, nos fins do século passado, constava de tim-sâm (despertar o coração) ou yam-ch'á (beber chá), pela manhã, nas "casas de chá" ainda existentes na Rua Nova de El-Rei (Cinco de Outubro), de duas refeições cheias, uma por volta do meio-dia e outra cerca das 18 horas, e do siu-yé (noite alta), antes de deitar e depois do jogo do mahjong.
O chá da manhã (hoje europeizado pelo café)era uma ocasião de convívio com amigos, parentes e sócios, em andares pejados de comensais, que falavam mais em voz alta do que propriamente comiam. Tomava-se canja e, entre libações de chá sem açúcar, provavam-se bolinhos de camarão, de carne picada, ma-t'ai-cou, ló-pá-cou (bebinca de nabos), arroz "glu-glu" (nó-mai) com recheio de galinha, etc., ser-vidos aos quatro, em cestinhos redondos de vime e trazidos em carros de rodas. Ainda hoje, o delicioso yam-ch'á é assim. As duas refeições principais compunham-se, como ainda hoje, de arroz cozido em banho-maria sem sal, conduto de peixe ou carne e hortaliça, com fruta e caldo quente no fim. Os chineses nunca bebiam água fria, nem comiam carne de animais agrícolas: vaca, búfalo, cavalo. Um acompanhamento apreciado era (e é) o dos ovos gelatinosos, conservados em lodo. Não se usavam toalhas, nas mesas.
Nos dias de festa, a ementa constava de dezenas de pratos (mais do que agora), regados com lipum ou sio-chau (vinho destilado do arroz). Entre as delicadezas mais saborosas, contavam-se: o bicho do mar (hói-sam), que era uma espécie de enguia gelatinosa e curta, as barbatanas de tubarão demolhadas (yue-ch'i), saliva de andorinhas dos Parcéis (yin-vó), pato assado (a que os macaenses sentiam nojo), "borrachinhos" cozidos em molho de sutate (especialidade do restaurante Fat-Sio Lau), etc..
Não desdenhavam os chineses de certos pratos macaenses, sobretudo dos seus doces, como o baji (arroz doce à indiana), ondi-ondi (bolinhos de farinha recheados de jagra), alua (bebinca de unto de vaca), camalenga (abóbora ralada e açúcar candi), os fios de ovos ("cabelos de anjo") que Mme. Phaulcon levou para a Tailândia, etc..
As festas do Ano Lunar, que duravam duas semanas, a procissão do deus da guerra (Kuan-Tai), do Cheng Meng (5 de Abril) e do Chông Yeung, dos barcos Dragões e do Bolo Bate-Pau, os galos de porcelana nos telhados contra a formiga branca, os mendigos, o auto china, as visitas aos templos, o hotel de Pedro Yen-Ke, com quartos especiais para os ingleses se embriagarem nos fins-de-semana, os combates de grilos e de galos (estes trazidos da Indonésia) e outras muitas coisas mais, pouco ou nada mudaram, desde então.
Se acabaram os rabichos e os pés descalços, dum modo geral, também desapareceram a elegante cabaia comprida, que um modista de Xangai modernizara para as senhoras, os sapatos de seda e tantas modas chinesas de outrora.
Em 1878, fez-se um recenseamento, que atribuiu a Macau 68.086 habitantes, mas que Bento da França crê subiriam a 100.000. O tráfico dos cules chineses, de 1851 a 1874, deu aos agentes espanhóis, peruanos e cubanos fortunas rápidas e colossais. Após a última data, porém, a animação e prodigalidade dos europeus (as senhoras, como a baronesa do Cercal, chegavam a mudar de vestido e toilette três vezes numa soirée, como praticam ainda as noivas chinesas, no banquete de núpcias) esmoreceram muito.
Cédula de um cule de Macau: 1876
A "cidade china" principiou a dar o tom, a côr, o gosto e a azáfama dominantes à velha urbe. Os locanes, aquartelados principalmente no antigo convento de S. Domingos, completavam a falta de praças europeias. Usavam o sapato e a meia china apolainada, calção largo e azul, casaco da mesma fazenda, largo também e apertado por um cinturão. Na cabeça traziam o chapéu de palha chinês, com as armas reais pintadas na frente e as palavras "Guarda Policial de Macau". A tiracolo, uma espingarda "Remington". Deste quartel, situado no centro da "cidade china", se originou o nome cantonense Yeng-Tei Kai (Rua do Quartel), por que é conhecida a Rua dos Mercadores.
Artigo (texto em itálico): "A 'Cidade China' há cem anos", da autoria de Benjamin Videira Pires, publicado na Revista de Cultura, Vol. 2, nº 7/8 (Outubro/Março 1988/1889).

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