domingo, 4 de novembro de 2018

O Tráfico de Cules através do Porto de Macau


Desde o princípio da dinastia, os Qing tinham restringido e até proibido a partida dos chineses para o estrangeiro. Porém, esta proibição não havia sido estritamente cumprida pelas autoridades locais e os chineses tinham emigrado para além-mar, quer como mercadores, quer como artesãos e trabalhadores. Depois da Primeira Guerra do Ópio, a lei da proibição da emigração foi violada em grande escala pelas potências ocidentais. Por um lado, desde meados do século XIX, os trabalhadores chineses eram muito procurados pelos países e colónias ocidentais e recrutados agentes da emigração nos portos da costa chinesa; por outro lado, perante o direito de extraterritorialidade gozado pelos ocidentais nos portos dos tratados e as demonstrações de força militar dessas potências, as autoridades locais chinesas não dispunham de meios, a não ser recorrer à punição dos correctores chineses e repetir a antiga lei da proibição da emigração. Os mandarins evitavam, ao máximo, entrar em conflito com os ocidentais e reportar ao governo central em matéria da emigração chinesa.
A Segunda Guerra do Ópio proporcionou aos ingleses uma oportunidade de forçar o governo Qing a permitir e regular a emigração dos cules chineses.
Em 1859, durante a ocupação anglo-francesa da cidade de Cantão, o governador Bo Gui 柏貴 e, mais tarde, o vice-rei Lao Chongguang 勞崇光, por requerimento dos ingleses, permitiram a emigração chinesa por contrato. Em 1860, ainda sob a ameaça militar anglo-francesa, o governo central chinês, pelas Convenções de Pequim, permitiu o recrutamento dos trabalhadores chineses por ingleses e franceses para fora da China e o direito dos chineses a fazerem contratos com os ocidentais e emigrarem, sozinhos ou acompanhados pelas famílias. O abandono da lei secular da proibição à emigração, pelo governo chinês, fez parte das mutações que a China teve de enfrentar, perante as novas circunstâncias internacionais sem precedentes.82 Depois de admitir a emigração por contrato, o próximo passo foi regular e uniformizar esta actividade em todos os portos abertos (dos tratados). A Convenção da Emigração, de 1866, prestava várias garantias aos direitos dos cules chineses e limitava o recrutamento e o embarque dos emigrantes aos portos dos tratados, proibindo o tráfico em Macau, um porto fora da jurisdição chinesa. Porém, alguns artigos deste acordo contrariavam os interesses dos mercadores e fazendeiros ocidentais, e não foi ratificada pelos governos de Londres e de Paris. Além disso, a Grã-Bretanha, a França e Espanha pressionavam o governo Qing para modificar alguns artigos desta convenção.


“Regulamento dos Passageiros Asiáticos e seu Transporte pelo Porto de Macau”, in Boletim da Província de Macau e Timor, 31 de Janeiro de 1874.
 


A Convenção de 1866, em vez de acabar com as irregularidades da emigração e terminar com o tráfico em Macau, produziu efeitos contrários, pois a emigração por contrato transferiu-se, quase totalmente, para Macau. Por um lado, o próprio convénio não estipulava medidas aplicáveis e eficientes para impedir o tráfico de cules em Macau; por outro lado, a Grã-Bretanha, França e Espanha não reconheciam o regulamento de 1866, outras potências ocidentais também não o cumpriam e não cooperavam com as autoridades chinesas. Mesmo os próprios funcionários chineses não observavam esse regulamento de 1866. A implementação da Convenção de 1866 parece ter sido somente um desejo do Zongli Yamen, do inspector- geral Robert Hart e, durante algum tempo, também do embaixador americano na China.
O governo Qing celebrou convenções com o Peru e a Espanha, dois dos principais recrutadores de cules em Macau, em 1874 e 1877, respectivamente. Essas duas convenções regulamentavam as condições da emigração chinesa para o Peru e Cuba. A Convenção de 1866 foi, assim, substituída. A partir daí, os países que tencionavam recrutar emigrantes chineses tinham de assinar acordos directamente com o governo chinês para regular, de antemão, todos os aspectos relevantes à emigração. O governo chinês começou, a partir dessas duas convenções, a enviar os seus representantes diplomáticos e cônsules para além-mar, com o fim de prestar protecção aos emigrantes chineses, no estrangeiro. Podemos ver as convenções com o Peru e a Espanha como resultado da recusa da Convenção de 1866 pelas grandes potências, sobretudo a Grã-Bretanha, e as suas intenções de legitimar e regular a emigração chinesa para o Peru e Cuba a partir dos portos abertos chineses e, assim, acabar com o tráfico por Macau.
Macau tinha sido um porto a partir do qual os chineses emigravam para além-mar. Antes da Guerra do Ópio, os ingleses e os portugueses recrutavam os trabalhadores chineses através de Macau para as suas colónias, nas diversas partes do mundo. A proibição da emigração não foi cumprida pelos oficiais chineses em Macau antes de 1849. Com o desenvolvimento da emigração de cules chineses neste porto, desde 1851, o governo chinês permaneceu ignorante e indiferente ao tráfico humano em Macau, durante um longo período.
“Barracoons at Macao”, Harper’s New Monthly Magazine, Junho 1864.
Desde que os funcionários alfandegários chineses foram expulsos de Macau em 1849 até 1862, o governo Qing não prestou muita atenção à questão de Macau, pois nem sabia como tratar esta questão. Depois da celebração do tratado com Portugal, o governo chinês pensava que, segundo o tratado, a China poderia continuar a nomear um oficial chinês (não um cônsul) para Macau. Porém, as duas partes contratantes não puderam chegar a um compromisso, na questão das atribuições do oficial chinês residente em Macau, pelo que o tratado de 1862 não foi ratificado.
Pela Convenção de 1866, a emigração chinesa por Macau foi declarada ilegal pelo governo chinês, visto que Macau se encontrava fora da jurisdição chinesa. A proibição da emigração por Macau foi, de facto, uma proposta de Robert Hart, o Inspector-Geral das Alfândegas.
O restabelecimento de uma autoridade chinesa em Macau podia, entre vários outros motivos, inspeccionar a emigração chinesa. Perante a recusa portuguesa de permitir a instalação de um oficial chinês, não cônsul, em Macau, Robert Hart, em 1867, planeou o ‘Projeto Emily’, peor qual a China deveria obter a jurisdição chinesa sobre Macau, através de uma compensação pecuniária aos portugueses. Em 1868, o embaixador espanhol na China, Sinibaldo de Mas, foi encarregado, pelo governo Qing, de negociar com o governo de Lisboa, neste sentido. Contudo, com o falecimento de Mas, este projecto falhou, tendo sido abandonado pelo governo chinês.
Esta pretensão dos Qing, de restabelecer uma autoridade chinesa em Macau, nunca teve oportunidade de se concretizar. Assim, não se podia realizar a supervisão da emigração chinesa, através deste oficial chinês residente em Macau.
A política das autoridades chinesas de Guangdong a propósito do tráfico de cules, em Macau, entre 1866 e a primeira metade de 1872, consistia em proibir os chineses irem para Macau, em perseguir e punir os corretores chineses, em protestar junto dos governadores de Macau através de ofícios. Antes de meados de 1872, a inspecção do transporte de cules para Macau, pelas autoridades de Guangdong, era menos eficaz e os funcionários de Guangdong foram mesmo acusados de serem cúmplices no tráfico humano. A despeito da Convenção de 1866 e das leis contra os correctores chineses elaboradas pelos vice-reis e governadores de Cantão e aprovadas pelo Zongli Yamen e pelo Conselho das Punições, o tráfico humano na província de Guangdong continuou a ser incontrolável. Por um lado, as actividades dos mercadores e navios ocidentais e os seus aliados chineses desdenhavam das leis chinesas, por outro lado, os funcionários eram impotentes e corruptos. Aliás, as potências ocidentais mostravam-se relutantes em prestar cooperação, e o governo de Macau não cumpria a sério as portarias da regulamentação da emigração, desmentindo que a emigração por Macau fosse involuntária e sem regulamentação.
Desde a segunda metade de 1872, a situação começou a transformar-se. Um elemento importante, que impulsionou o governo Qing a tomar uma posição mais dura em relação ao tráfico de cules, foi a atitude das grandes potências, os Estados Unidos da América e a Inglaterra.
Desde 1869, o cônsul americano em Xiamen, Charles le Gendre, manifestava a sua oposição contra o recrutamento de emigrantes pelos mercadores espanhóis, para Cuba. Em 1872, o embaixador americano na China, Frederick F. Low, criticava, num ofício ao Zongli Yamen, a inacção e a corrupção das autoridades provinciais do Sul da China, na inspecção da emigração, pedindo ao Yamen que mandasse observar estritamente a Convenção de 1866. O vice-rei Ruilin, tendo sido severamente censurado pelo Zongli Yamen e, também, pelo cônsul inglês em Cantão, D. B. Robertson, assim como, pela convicção de que o tráfico por Macau era criticado por muitos países ocidentais, começou a tomar medidas mais fortes e eficazes para impedir o tráfico em Macau, como sejam, inspeccionar os navios a vapor estrangeiros que navegavam entre Cantão e Macau, apreender as lorchas portuguesas que procuravam cules nas águas da costa oeste da província, expulsar os navios de cules ancorados em Huangpu e nas águas adjacentes. As acções do governo de Cantão, ao tratar dos navios ocidentais envolvidos no tráfico de cules, foram auxiliadas pelo cônsul britânico Brooke Robertson e encorajadas pela expulsão dos navios de cules, feita pelo governo de Hong Kong. À medida que o governo de Guangdong reforçava a inspecção sobre o tráfico humano e que o governo de Londres pressionava constantemente o governo de Lisboa, as medidas tomadas por este tornaram-se mais rigorosas e a emigração dos cules pelo porto de Macau foi, finalmente, abolida em Março de 1874.

Excerto (conclusão) do artigo da autoria de Liu cong e Leonor Diaz de Seabra publicado no nº 55 da Revista de Cultura, ICM.

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