Regresso ao tema da cultura na década de 1950 retomando o testemunho do jornalista Barradas de Oliveira que acompanhou a visita a Macau do ministro do Ultramar, Sarmento rodrigues, em 1952.
A actividade radiofónica está também relacionada intimamente com a vida jornalística. Ambas têm o seu destino ligado ao dia-a-dia, ao acontecimento e gosto da hora que passa. (…) Uma intensa vida jornalística exige uma intensa vida de produção radiofónica, sendo portanto natural que uma pequena cidade com vários jornais diários disponha de duas estações emissoras de radiofonia. Uma delas, a que tem um ar mais solene e público - embora seja realmente uma instituição particular - é o Rádio Clube de Macau, a cuja direcção preside o director do “Notícias”, o Dr. Cassiano da Fonseca. A outra emissora é tão particular, que nem sequer pertence a um grupo de sócios, mas apenas a um único proprietário. É a Rádio Vila Verde, mantida única e simplesmente a expensas do Dr. Pedro Lobo, que ali investe algumas dezenas de contos por mês.
Cinemas
O que deixamos dito pode arrastar-nos a supor que em Macau haja produção cinematográfica. É só o que falta! Se não há produção, nem por isso, a compensar, falha a exibição. A cidade dispõe de cinco cinemas razoáveis, com aparelhagem de som. No ano de 1948, o último de que temos estatísticas à mão, foram exibidos 288 filmes americanos, 423 chineses, 1 inglês e 1 francês. Portugueses — não vi nenhum indicado. Isto talvez queira dizer que os nossos realizadores continuam a não produzir, salvo raras excepções, senão umas fitazinhas possidónias para um público de Pátio dos Quintalinhos e, portanto, de limitadas possibilidades de irradiação para as próprias províncias do Império Português.
O que deixamos dito pode arrastar-nos a supor que em Macau haja produção cinematográfica. É só o que falta! Se não há produção, nem por isso, a compensar, falha a exibição. A cidade dispõe de cinco cinemas razoáveis, com aparelhagem de som. No ano de 1948, o último de que temos estatísticas à mão, foram exibidos 288 filmes americanos, 423 chineses, 1 inglês e 1 francês. Portugueses — não vi nenhum indicado. Isto talvez queira dizer que os nossos realizadores continuam a não produzir, salvo raras excepções, senão umas fitazinhas possidónias para um público de Pátio dos Quintalinhos e, portanto, de limitadas possibilidades de irradiação para as próprias províncias do Império Português.
Pintura
Antes da nossa chegada a Macau, numa tarde de mais bonança, naquelas longas conversas na tolda do navio, entre o perfil dominador da peça de artilharia e o frágil cordame da amurada, fora-nos atraída a vista para o espectáculo magnífico do sol poente, espantoso jogo de luz e de cores naquelas lonjuras do Mar da China.
Já não eram, como até ali, as explosões de vermelho, sobre o qual o negro das nuvens se recortava em chapadas fortes ou se desfazia em fiapos desgrenhados. Eram silhuetas fantasistas dum verde leve, discreto, com luninosidades que podiam esbater-se numa espécie de ocre, ou indefinir-se num azul desbotado e limpo. As formas e os volumes, o caprichoso inesperado dos recortes parecia ter multiplicado as contorções demoníacas; as cores, porém, essas abrandavam numa suavidade incomparável. É preciso assistir a um espectáculo destes para se compreender as razões da arte chinesa e o influir do ambiente em que vive, exagerando por um lado em distorsão o que na cor se dulcifica e quase apaga. Isto verifica-se nalguns dos melhores quadros ou nalgumas das melhores peças de porcelana que é possível ver em Macau, seja no Museu, seja nas casas de bric-à-brac, seja nas colecções particulares.
Lembra-nos, a propósito, um quadro magnífico, propriedade do Sr. José de Carvalho e Rego. É uma pequena tela de 40 x 30 centímetros, aproximadamente, e representando uma rapariga de cabaia azul debruada a preto e com enfeites de jade. Seja ou não, como se discute, um quadro de Lamkuah, discípulo de Chinnery, o certo é concentrar-se naquela pequena obra, desde o azul impecável do vestuário até à cor, tão natural, do rosto, uma alma própria em que a discrição das cores parece, tecnicamente, ser a nota dominante.
Noutro plano, mas com igual interesse, apontam-se os quadros da vida de Cristo, de Li Tien To, numa exposição que visitámos no Seminário de São José, embora nestes, porque feitos segundo um gosto mais popular, as cores vivas se contenham em prejuízo das mais retraídas. E, já agora, valerá a pena esclarecer que Li Tien To é um chinês de 36 anos, cristão, que vivia tranquilamente em Pequim, até um dia em que o vendaval das perseguições o levou para a terra portuguesa, seguido da mulher e cinco filhos pequenos, e o fez bater à porta da Igreja de S. Lourenço. Devemos o conhecimento do pintor ao Padre Albino Borges, alma de apóstolo e gosto de artista, numa batina de salesiano.
Antes da nossa chegada a Macau, numa tarde de mais bonança, naquelas longas conversas na tolda do navio, entre o perfil dominador da peça de artilharia e o frágil cordame da amurada, fora-nos atraída a vista para o espectáculo magnífico do sol poente, espantoso jogo de luz e de cores naquelas lonjuras do Mar da China.
Já não eram, como até ali, as explosões de vermelho, sobre o qual o negro das nuvens se recortava em chapadas fortes ou se desfazia em fiapos desgrenhados. Eram silhuetas fantasistas dum verde leve, discreto, com luninosidades que podiam esbater-se numa espécie de ocre, ou indefinir-se num azul desbotado e limpo. As formas e os volumes, o caprichoso inesperado dos recortes parecia ter multiplicado as contorções demoníacas; as cores, porém, essas abrandavam numa suavidade incomparável. É preciso assistir a um espectáculo destes para se compreender as razões da arte chinesa e o influir do ambiente em que vive, exagerando por um lado em distorsão o que na cor se dulcifica e quase apaga. Isto verifica-se nalguns dos melhores quadros ou nalgumas das melhores peças de porcelana que é possível ver em Macau, seja no Museu, seja nas casas de bric-à-brac, seja nas colecções particulares.
Lembra-nos, a propósito, um quadro magnífico, propriedade do Sr. José de Carvalho e Rego. É uma pequena tela de 40 x 30 centímetros, aproximadamente, e representando uma rapariga de cabaia azul debruada a preto e com enfeites de jade. Seja ou não, como se discute, um quadro de Lamkuah, discípulo de Chinnery, o certo é concentrar-se naquela pequena obra, desde o azul impecável do vestuário até à cor, tão natural, do rosto, uma alma própria em que a discrição das cores parece, tecnicamente, ser a nota dominante.
Noutro plano, mas com igual interesse, apontam-se os quadros da vida de Cristo, de Li Tien To, numa exposição que visitámos no Seminário de São José, embora nestes, porque feitos segundo um gosto mais popular, as cores vivas se contenham em prejuízo das mais retraídas. E, já agora, valerá a pena esclarecer que Li Tien To é um chinês de 36 anos, cristão, que vivia tranquilamente em Pequim, até um dia em que o vendaval das perseguições o levou para a terra portuguesa, seguido da mulher e cinco filhos pequenos, e o fez bater à porta da Igreja de S. Lourenço. Devemos o conhecimento do pintor ao Padre Albino Borges, alma de apóstolo e gosto de artista, numa batina de salesiano.
Teatro
Dissemos que o gosto popular exige cores mais fortes, tonalidades mais garridas. Vê-se pela própria comparação das pinturas nas porcelanas. E vê-se, principalmente, pelo teatro.
É um espectáculo berrante de luz e de cor o teatro chinês. As figuras são convencionais, de representação quase simbólica. As penas de pavão a enfeitar o cabelo indicam a deusa, como as estreitas asas de pano presas ao gorro denunciam o Imperador. Os trajes participam do convencionalismo das personagens, garridos, brilhantes, cobertos de lantejoulas que faíscam à luz. Aparecem o mandarim, e a menina, e o rapaz, e o pai da menina. Há cenas longas de cantorias monótonas, garganteadas com estridências de entremeio, enquanto a orquestra, indispensável, retine e estruge com uns metálicos que alarmam a nossa sensibilidade. De quando em quando, a representação inclui uma dança guerreira, ou demonstrações de agilidade, principalmente em esgrimas variadas.
Tivemos oportunidade de falar, no Teatro Cheng Peng, com a jovem actriz Pac Süt Sin. Tem 25 anos. É de Cantão. Representa desde os 13 anos e a sua preferência no teatro vai para o papel de Sin Nui, rapariga alegre. (…) Os trechos de autocantonês que vimos representar referiam-se todos a histórias de heróis antigos e de guerras. Quer dizer: há um fundo de mitologia histórica nas longas representações que a assistência suporta, enquanto conversa, ri e tasquinha guloseimas. Há em Macau, além do Cheng Peng, o Teatro Hoi Keung, e ainda o Chin I Sé, na ilha da Taipa. Europeu, só o Teatro D. Pedro V, eventualmente aberto para alguma récita extraordinária.
Dissemos que o gosto popular exige cores mais fortes, tonalidades mais garridas. Vê-se pela própria comparação das pinturas nas porcelanas. E vê-se, principalmente, pelo teatro.
É um espectáculo berrante de luz e de cor o teatro chinês. As figuras são convencionais, de representação quase simbólica. As penas de pavão a enfeitar o cabelo indicam a deusa, como as estreitas asas de pano presas ao gorro denunciam o Imperador. Os trajes participam do convencionalismo das personagens, garridos, brilhantes, cobertos de lantejoulas que faíscam à luz. Aparecem o mandarim, e a menina, e o rapaz, e o pai da menina. Há cenas longas de cantorias monótonas, garganteadas com estridências de entremeio, enquanto a orquestra, indispensável, retine e estruge com uns metálicos que alarmam a nossa sensibilidade. De quando em quando, a representação inclui uma dança guerreira, ou demonstrações de agilidade, principalmente em esgrimas variadas.
Tivemos oportunidade de falar, no Teatro Cheng Peng, com a jovem actriz Pac Süt Sin. Tem 25 anos. É de Cantão. Representa desde os 13 anos e a sua preferência no teatro vai para o papel de Sin Nui, rapariga alegre. (…) Os trechos de autocantonês que vimos representar referiam-se todos a histórias de heróis antigos e de guerras. Quer dizer: há um fundo de mitologia histórica nas longas representações que a assistência suporta, enquanto conversa, ri e tasquinha guloseimas. Há em Macau, além do Cheng Peng, o Teatro Hoi Keung, e ainda o Chin I Sé, na ilha da Taipa. Europeu, só o Teatro D. Pedro V, eventualmente aberto para alguma récita extraordinária.
Quer-me parecer, no entanto, e aqui reverto ao princípio, ser o convívio o elemento principal do alto nível de cultura que encontrei em Macau, a começar pelos eclesiásticos: o Bispo versado profundamente na língua chinesa e nos problemas de História; o padre Albino Borges, que pode ler nas línguas originais as máximas de Lao-Tse e os romances de Dostoiewsky; o padre Gonçalves, jesuíta efervescente, director fogoso da ‘Religião e Pátria’; o cónego Maciel, espadaúdo e sereno director do ‘Clarim’.
Há o grupo dos que se entusiasmam pelos temas literários e estéticos da China, e entre eles deve ser justo destacar Luís Gonzaga Gomes, ainda agora nomeado professor de língua chinesa no Liceu de Macau. É duma actividade inultrapassável; professor, jornalista, dirigente do Rádio Clube, escritor. Tem já publicados, que nos ocorra de momento, um ‘Dicionário Português-Cantonense’, ‘Contos Chineses’, ‘Lendas Chinesas de Macau’ e ‘Curiosidades de Macau Antiga’. Dirige uma revista interessantíssima: a ‘Mosaico’. É um estudioso de grande mérito.
A este respeito, é de citar o escritor Francisco de Carvalho e Rego, presentemente na Metrópole, e que deixou assinalada, com uma série de livros do maior interesse, a sua longa permanência em Macau. Ali vive seu irmão, o Sr. José de Carvalho e Rego, pessoa de rara curiosidade de espírito. Gente de tal categoria explica a possibilidade de se manifestar, e não só de se dissolver no ópio, a pressão poética dum Camilo Pessanha, enfeitiçado por Macau. Lá está sepultado, com sinais maçónicos na pedra tumular a assinalar o grau de mestrança. Como curiosidade iconográfica, revelarei que o Sr. José de Carvalho e Rego é possuidor de uma fotografia preciosa, tirada em Macau há largos anos. Representa um grupo bastante numeroso de pessoas, entre as quais Camilo Pessanha e Sun Yat Sen, primeiro presidente da República Chinesa. Que a indiscrição me seja perdoada…
Quando falei no convívio possível em Macau, mais no que em casos pessoais, lembrava-me da espécie de tertúlia acidentalmente formada quando apareceram os jornalistas da Metrópole, e na qual eram certos o Luís Gomes; o Cassiano Fonseca, médico e director do ‘Notícias de Macau’; o Hermann Monteiro, proprietário do mesmo jornal, tão bom conversador e tão afectuoso amigo, com a sua barbicha de fauno; o Choi Leng Seong, director do ‘Tai Chung Pou’; o António Conceição, chefe da redacção do ‘Notícias’ e professor; o Silveira Machado, sempre aflito com as suas actividades nos Serviços de Propaganda; o David Barrote, companheiro da jornada inesquecível…”
Há o grupo dos que se entusiasmam pelos temas literários e estéticos da China, e entre eles deve ser justo destacar Luís Gonzaga Gomes, ainda agora nomeado professor de língua chinesa no Liceu de Macau. É duma actividade inultrapassável; professor, jornalista, dirigente do Rádio Clube, escritor. Tem já publicados, que nos ocorra de momento, um ‘Dicionário Português-Cantonense’, ‘Contos Chineses’, ‘Lendas Chinesas de Macau’ e ‘Curiosidades de Macau Antiga’. Dirige uma revista interessantíssima: a ‘Mosaico’. É um estudioso de grande mérito.
A este respeito, é de citar o escritor Francisco de Carvalho e Rego, presentemente na Metrópole, e que deixou assinalada, com uma série de livros do maior interesse, a sua longa permanência em Macau. Ali vive seu irmão, o Sr. José de Carvalho e Rego, pessoa de rara curiosidade de espírito. Gente de tal categoria explica a possibilidade de se manifestar, e não só de se dissolver no ópio, a pressão poética dum Camilo Pessanha, enfeitiçado por Macau. Lá está sepultado, com sinais maçónicos na pedra tumular a assinalar o grau de mestrança. Como curiosidade iconográfica, revelarei que o Sr. José de Carvalho e Rego é possuidor de uma fotografia preciosa, tirada em Macau há largos anos. Representa um grupo bastante numeroso de pessoas, entre as quais Camilo Pessanha e Sun Yat Sen, primeiro presidente da República Chinesa. Que a indiscrição me seja perdoada…
Quando falei no convívio possível em Macau, mais no que em casos pessoais, lembrava-me da espécie de tertúlia acidentalmente formada quando apareceram os jornalistas da Metrópole, e na qual eram certos o Luís Gomes; o Cassiano Fonseca, médico e director do ‘Notícias de Macau’; o Hermann Monteiro, proprietário do mesmo jornal, tão bom conversador e tão afectuoso amigo, com a sua barbicha de fauno; o Choi Leng Seong, director do ‘Tai Chung Pou’; o António Conceição, chefe da redacção do ‘Notícias’ e professor; o Silveira Machado, sempre aflito com as suas actividades nos Serviços de Propaganda; o David Barrote, companheiro da jornada inesquecível…”
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