(...) Nesse Novembro de 1979 saí de Pequim com um grau abaixo de zero, vestindo um casaco acolchoado de algodão e duas camisolas de lã que fui despindo conforme o comboio avançava para sul. Ao chegar a Cantão encontrei 27 graus e as gentes eram outras, o dialecto também, no ar tépido e húmido respiravam-se cheiros, miasmas e realidades bem diferentes. Até Gongbei, ou Kongpak no dialecto cantonense, foram mais cinco horas e cento e trinta quilómetros numa carrinha com dúzia e meia de chineses. Eram outros tempos, fazia-se a viagem pelo itinerário exótico das estradinhas da província de Guangdong, de alcatrão manhoso onde se acotovelavam carroças, camionetas, triciclos, gente, muita gente como em toda a China, e até rebanhos de milhares de patos com o guardador, o “pastor” dos patos a controlá-los com uma extensa vara de bambu. Rumo a Macau, havia ainda os três braços do Zhujiang, o rio das Pérolas para atravessar nos grandes batelões de aço. E os arrozais, a vegetação, as aldeias, as fisionomias das pessoas do China do sul, tudo tão diferente da minha Pequim… Em Gongbei, então pouco mais do que uma aldeia, adivinhei a silhueta dos primeiros prédios altos de Macau. A carrinha deixou-me junto ao posto da fronteira chinesa. No alto do edifício rectangular e feio ondulava a bandeira vermelha das cinco estrelas. Ao fundo, mais baixa, lobriguei desfraldada sobre as Portas do Cerco, a bandeira portuguesa de cinco quinas.
Que viemos de tão longe fazer a esta China? Como foi possível estarmos aqui há quatro séculos e meio? Um nó a crescer na garganta, o coração a borbulhar sensível, a emoção toda num desvairo.
Cumpridas as formalidades alfandegárias do lado chinês, na altura nada simples -- revistavam-se malas, passava-se tudo a pente fino --, questionei-me: “E agora como é, para entrar em Macau?” Existiam uns duzentos metros de uma fronteiriça terra de ninguém e, logo a seguir, as Portas do Cerco. Havia uma pequena fila de chineses a caminhar para lá e para cá, os que entravam e saíam de Macau. “Vou a pé como eles!” De maleta na mão, pisei gloriosamente, pela primeira vez, a terra dos portugueses na China, cidade do Nome de Deus de Macau.
À direita, logo depois das Portas do Cerco havia um pequeno posto alfandegário com um sargento da polícia de Macau à porta, de serviço. A cara não enganava, era um português dos quatro costados, talvez minhoto ou transmontano, com mais de 50 anos, entroncado, com ar bonacheirão. Saudei-o, satisfeito. “Boa tarde, quer ver o meu passaporte?” O militar, surpreendido pela então raridade de ver um português entrar a pé em Macau pelas Portas do Cerco, com mala e tudo, olhou-me curioso e perguntou: “ Oh, homem, de onde é que você vem?” Respondi: “Venho de Pequim.” O nosso sargento não escondia a estupefacção. “De Pequim? De Pequim?” Eu acrescentei: “Pois, trabalho lá, não quer ver os meus documentos?” O sargento ripostou: “Oh, homem avance, os chineses do outro lado já controlaram tudo, passe bem em Macau.” Ainda lhe perguntei: “Mas vocês aqui não contam o número de pessoas que todos os dias entram e saem de Macau?” O sargento concluiu, mais ou menos assim: “Não, não é preciso. Os chineses do outro lado, ao fim de cada dia, mandam-nos a lista completa das pessoas que entraram e sairam. Eles é que controlam tudo, e estão sempre certos.”
Que confusão me fez a cidade do Nome de Deus na China! E continua a fazer hoje, depois de chegar mais umas vinte vezes a Macau, por terra, mar e ar, ou seja, ainda pelas Portas do Cerco, de jetfoil desde Hong Kong, e de avião vindo da China. Em cada chegada, sempre o mesmo nó que não consigo desatar e vou levar comigo para uma outra vida. Talvez então, sereno, iluminado, descansando numa nuvem, eu possa desenlaçar todos os nós.
No Outono de 1982 bati o meu recorde de permanência em Macau, quase dois meses de incerta estadia. À deriva entre a China e Portugal, procurava novas soluções para a vida e encalhei o meu dia a dia em Macau, à espera de melhores tempos, lutando por novas soluções de vida. Não esqueço a ajuda, o abrigo que encontrei em alguns amigos, o Jorge Neto Valente, o José Rocha Dinis, o Rogério Beltrão Coelho, o padre Manuel Teixeira, os braços fraternos que apoiaram este “português de Pequim” meio perdido pelo Oriente Extremo. Não esquecerei também a tão útil e entusiasmante perninha de jornalismo que fiz no jornal Tribuna de Macau que então nascia. (...)
António Graça de Abreu in Toda a China - Vol. I. Edição Guerra e Paz, 2013
Que viemos de tão longe fazer a esta China? Como foi possível estarmos aqui há quatro séculos e meio? Um nó a crescer na garganta, o coração a borbulhar sensível, a emoção toda num desvairo.
Cumpridas as formalidades alfandegárias do lado chinês, na altura nada simples -- revistavam-se malas, passava-se tudo a pente fino --, questionei-me: “E agora como é, para entrar em Macau?” Existiam uns duzentos metros de uma fronteiriça terra de ninguém e, logo a seguir, as Portas do Cerco. Havia uma pequena fila de chineses a caminhar para lá e para cá, os que entravam e saíam de Macau. “Vou a pé como eles!” De maleta na mão, pisei gloriosamente, pela primeira vez, a terra dos portugueses na China, cidade do Nome de Deus de Macau.
À direita, logo depois das Portas do Cerco havia um pequeno posto alfandegário com um sargento da polícia de Macau à porta, de serviço. A cara não enganava, era um português dos quatro costados, talvez minhoto ou transmontano, com mais de 50 anos, entroncado, com ar bonacheirão. Saudei-o, satisfeito. “Boa tarde, quer ver o meu passaporte?” O militar, surpreendido pela então raridade de ver um português entrar a pé em Macau pelas Portas do Cerco, com mala e tudo, olhou-me curioso e perguntou: “ Oh, homem, de onde é que você vem?” Respondi: “Venho de Pequim.” O nosso sargento não escondia a estupefacção. “De Pequim? De Pequim?” Eu acrescentei: “Pois, trabalho lá, não quer ver os meus documentos?” O sargento ripostou: “Oh, homem avance, os chineses do outro lado já controlaram tudo, passe bem em Macau.” Ainda lhe perguntei: “Mas vocês aqui não contam o número de pessoas que todos os dias entram e saem de Macau?” O sargento concluiu, mais ou menos assim: “Não, não é preciso. Os chineses do outro lado, ao fim de cada dia, mandam-nos a lista completa das pessoas que entraram e sairam. Eles é que controlam tudo, e estão sempre certos.”
Que confusão me fez a cidade do Nome de Deus na China! E continua a fazer hoje, depois de chegar mais umas vinte vezes a Macau, por terra, mar e ar, ou seja, ainda pelas Portas do Cerco, de jetfoil desde Hong Kong, e de avião vindo da China. Em cada chegada, sempre o mesmo nó que não consigo desatar e vou levar comigo para uma outra vida. Talvez então, sereno, iluminado, descansando numa nuvem, eu possa desenlaçar todos os nós.
No Outono de 1982 bati o meu recorde de permanência em Macau, quase dois meses de incerta estadia. À deriva entre a China e Portugal, procurava novas soluções para a vida e encalhei o meu dia a dia em Macau, à espera de melhores tempos, lutando por novas soluções de vida. Não esqueço a ajuda, o abrigo que encontrei em alguns amigos, o Jorge Neto Valente, o José Rocha Dinis, o Rogério Beltrão Coelho, o padre Manuel Teixeira, os braços fraternos que apoiaram este “português de Pequim” meio perdido pelo Oriente Extremo. Não esquecerei também a tão útil e entusiasmante perninha de jornalismo que fiz no jornal Tribuna de Macau que então nascia. (...)
António Graça de Abreu in Toda a China - Vol. I. Edição Guerra e Paz, 2013
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