A escassos dias da implantação da República em Portugal, que ocorreu no dia 5 de Outubro de 1910, Macau teve um protagonismo absolutamente inusitado numa revista lisboeta que reunia a nata da oposição ao regime monárquico e que não escondia a simpatia pela maçonaria e pela carbonária. Fundada e dirigida por António José de Almeida, médico especializado em doenças tropicais e deputado republicano no parlamento monárquico, a Revista “Alma Nacional” foi publicada a primeira vez no dia 10 de Fevereiro de 1910 [o último número, o 34, saiu a 29 de Setembro de 1910], aparecendo semanalmente às quintas feiras, cuja distribuição abrangia também as Colónias, a Espanha e o Brasil, estando igualmente previstas “duas edições especiais, uma em inglês e outra em francês”. Entre os seus colaboradores regulares contavam-se Guerra Junqueiro, Basílio Teles, Teófilo Braga, Miguel Bombarda, Leão Azedo, António Aurélio da Costa Ferreira, Tomás da Fonseca, Raúl Proença ou Aquilino Ribeiro , então exilado em Paris e acusado de regicida. E qual era o programa ideológico da “Alma Nacional”? A resposta é dada por António José de Almeida: “ O que a ‘Alma Nacional’ sobretudo vai ser é um jornal humano. De orientação revolucionária, revolução para ela não quer dizer morticínio, destruição. A vida do homem é uma coisa sagrada que só em combate leal, e ainda assim bem lamentavelmente, pelo atraso em que nos achamos, se pode tirar. Arrancá-la à vítima domada e vencida é crime ou alucinação. E a revolução, necessidade dolorosa da época retardada em que vamos, só é respeitável se for clemente”, sem esquecer que “Portugal é um organismo intoxicado. Conservá-lo no meio em que está, é matá-lo. Aplicar-lhe uma mudança de ares é salvá-lo. É preciso sanear a atmosfera, removendo o entulho monárquico e o guano clerical, que estão a fermentar”.
Rua Silva Mendes junto à Casa Memorial de Sun Iat Sen: dois 'adeptos' da república |
Neste turbulento Portugal pré-republicano, Macau era, por
todos os motivos, verdadeiramente uma questão longínqua, metafísica mesmo. Aqui
e além irrompiam pequenas notícias ilustrativas da dura realidade de uma
governação cujo conceito estratégico tinha sido ferido de morte na Conferência
de Berlim. A revista “Alma Nacional” associa-se ao jornal “O Século” para
lamentar “o estado miserável dos três
barcos de guerra que foram mandados seguir para Macau quando surgiu o conflito
com a China. O ‘Vasco da Gama’ nada pode, porque não navega; O ‘Dona Amélia’
nada faz, porque está na doca; a ‘Pátria’, essa dá provas das suas belas
condições náuticas e combatentes … fabricando tuberculosos na exiguidade
insalubre dos seus alojamentos”.
Na edição do dia 30 de Junho há um muito bem humorado recado
dirigido aos republicanos chineses: “A
China deliberou ter uma constituição. Alguém lhe lembrou que aquilo era comida
muito fina para paladares tão grosseiros. Mas a China, alçando o rabicho, berra
pela constituição. Está bem arranjada. Se ela for como a nossa, presente
generoso que o dador se dignou fazer aos seus súbditos, não lhe há de valer de
muito. A carta constitucional portuguesa, cheia de alçapões e sofismas, é na
opinião do Conde de Resende, que foi monárquico de gema, um disfarce do
absolutismo. A da China será uma maneira de o poder absoluto lá se conservar
fresco e de boa saúde. Hoje em dia fica mal a um país o dizer-se que ele é
governado pelo absolutismo; e vai daí, muda-se o nome e fica tudo na harmonia
do senhor. Pois era melhor que a China se entretivesse de preferência a deitar
papagaios de papel. Era menos trabalhoso e dava mais a ilusão de liberdade”.
Ignora-se se Sun Yat Sen e os seus camaradas republicanos de Macau teriam tido
conhecimento desta observação , que até estava em consonância com as ideias de
Camilo Pessanha e de Manuel da Silva Mendes sobre o amanhecer do novo regime.
O Governador de Macau, Capitão Eduardo Marques envia à
capital do Reino, a Lisboa, em Agosto de 1910, o director das Obras Públicas, o
engenheiro António Miranda Guedes, a fim de acelerar a solução política de
alguns problemas estruturais de Macau. António Miranda Guedes era amigo de
António José de Almeida, uma amizade forjada na Universidade de Coimbra e
cimentada numa estadia de anos que ambos vivenciaram em S. Tomé e Príncipe.
Quando soube da sua presença em Lisboa, António José de Almeida, na qualidade
de director da “Alma Nacional”, não perdeu o ensejo para realizar uma grande
entrevista, na edição de 15 de Setembro, porque “ninguém melhor do que Miranda Guedes podia dar aos leitores da nossa
revista a impressão do que pode vir a ser num futuro breve essa esplêndida
colónia, se houver um pouco de boa vontade para a arrancar à estagnação em que
vegeta”. E por aqui se vê o estado de uma monarquia liberal exangue, que
tolera com alguma indiferença que um alto funcionário colonial fosse
entrevistado por uma publicação tão hostil à Coroa e defendendo teses fora do
protocolo político anteriormente firmado. A perguntas por vezes verrinosamente
políticas correspondem respostas de uma inigualável candura ética.
Assim, ao longo de sete densas páginas puderam os leitores
perceber melhor os problemas que afligiam Macau. Foi pedagogicamente recordada
a eterna condicionante política: “como
sabe, agita-se fortemente em volta de Macau a opinião do povo chinês sobre a
delimitação do nosso domínio. Quem promove essa agitação, uma célebre sociedade
de Cantão, denominada Chi-Chi-Hui ou, pelos seus altos propósitos, Self Government
Society, procura na população ilustrada e rica, do distrito de Heung-Shan,
campo para a sua propaganda contra nós”. Depois, o projecto de construir a
linha de caminho de ferro entre Macau e Cantão alimentou grandes sonhos,
rapidamente desfeitos, porque as obras do Porto de Macau se transformaram num
paradoxo político. Mas, sem o triângulo de ouro, constituído pelas ilhas de D.
João, da Lapa e da Montanha, tudo isso não passou de uma quimera expansionista,
absolutamente insustentável no plano militar e na substância dos tratados
diplomáticos.
Mas, o director das Obras Públicas vinha com duas
incumbências distintas mas complementares. A primeira tinha a ver com o Porto
cujo assoreamento constante inviabilizava a sua eficácia comercial. António
José de Almeida lança a questão central: “se
há tantos anos se fizeram estudos proficientes como você me disse e do que é
garantia o nome de Adolfo Loureiro, honra da engenharia portuguesa, no porto de
Macau, se depois disso mais que uma vez na realização das respectivas obras se
tem falado, porque se não tem elas realizado? Desleixo dos governos ou
incompetência da execução?”. A resposta é, no mínimo, surpreendente: “mal se iniciaram essas obras, que eram
simples e para as quais havia verbas disponíveis no orçamento da Província,
foram suspensas, hoje por um motivo, no dia seguinte por outro e afinal
unicamente porque ….eram realizadas por administração directa da Estado”.
Como se observa, já eram poderosos os interesses locais, mais de predominância
sino-portuguesa do que luso-chinesa. Mais tarde o engenheiro Castel Branco irá
propor o sistema de dragagens cujo financiamento só seria possível mediante a
concessão do exclusivo dos jogos e do ópio.
A segunda incumbência, claramente no âmbito da economia
política, decorre da resposta a esta pergunta de António José de Almeida: “não poderemos nós enveredar pelo são
caminho da supressão dessas impuras fontes de receita e aproveitar o movimento
comercial do porto como base limpa do regímen financeiro da colónia?”. A
resposta do director das Obras Públicas é moralmente eloquente: “impõe-se a remodelação do seu regime
financeiro. De baseá-lo na exploração dos vícios deve, precisa e há-de
passar-se a baseá-lo na prosperidade do comércio e da indústria”. O juízo
moral é contundente: “o vício polui,
enxovalha, quem o exerce e até quem o consente, quanto mais quem o explora em
seu proveito”. Mas o pragmatismo aconselha alguma prudência porque as
rupturas poriam em causa o Território: “não
só, porém, a supressão imediata do actual regime do viver de Macau, quando
fosse possível, representaria talvez a supressão imediata, a paralisia absoluta
do seu comércio e da sua indústria – tal a intensidade, secular e etnográfica,
moral e material, da ligação entre eles – como representava, sem dúvida,
insuperável obstáculo á realização dos melhoramentos basilares da sua desejada
transformação social e económica”. E que mais se seguiria? “o regímen em que lhe falei é de transição.
Lançaremos mão dele justamente para com ele acabar. Findo o prazo da concessão
dos novos melhoramentos, brotariam novas fontes de receita, nova vida, nova
Macau – já não a Mónaco nem a Roma do Oriente – mas um centro de actividade e
de trabalho, digno da tradição que a enaltece e do País que a patrocina. É como
a revolução, um mal que o meu amigo aconselha e defende, para nele assentar,
segundo o seu modo de ver, cheio de fé e de crença, a prosperidade do País, a
nova Pátria portuguesa”.
Este programa configurava uma verdadeira revolução em Macau.
Sabemos todos o destino da bela utopia que ornava este pensamento
unidimensional.
A Revista “Alma Nacional” publicou-se pela última vez no dia
29 de Setembro. No dia 5 de Outubro eclodiu a República e António José de
Almeida toma posse como Ministro do Interior. Em Macau, o regime republicano foi proclamado na varanda do
Leal Senado, pelo Governador de Macau, Capitão Eduardo Marques, no dia 12 de
Outubro, perante uma pequena multidão onde se divisavam Camilo Pessanha, Manuel
da Silva Mendes, Álvaro de Melo Machado, António do Nascimento Leitão ou
Fernando José Rodrigues. Curiosamente, foi hasteada “a nova bandeira nacional, encarnada e verde, com tralha encarnada”,
como se lê na Acta dessa cerimónia histórica. Mas, que bandeira provisória
seria essa? Provavelmente um projecto de bandeira nacional na posse de algum
republicano maçónico. Só no dia 29 de Outubro é que uma comissão composta por
João Chagas, José Palla, Ladislau Parreira, Columbano Bordalo Pinheiro e Abel
Botelho apresentou um relatório para a escolha da nova bandeira. Após a partida do Governador Eduardo Marques
em Novembro de 1910, regressou a instabilidade governativa com a interinidade
de João Marques Vidal e Álvaro Melo Machado. A República tinha chegado.
Artigo da autoria de
António Aresta publicado no JTM de 8.3.2013
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