quarta-feira, 9 de outubro de 2013

J. J. Monteiro (2ª parte)


O mais recente livro editado pelo IIM a 8.10.2013
 Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 10-3-2011.
José Joaquim Monteiro (1913-1988), português de rija têmpera, conhecido em Macau, onde chegou em 1937, como Soldado-Poeta, é porventura o representante maior da nossa sinologia popular. Evocava assim o mistério da China: “A China, o País da lenda,/Que a estranho nenhum desvenda/O seu culto, o seu mistério./O sacro livro do chim,/Que tem por princípio o fim,/É também um enigma sério”.
Os problemas linguísticos que tantas angústias tem trazido aos tradutores e aos intérpretes, maxime, ao diálogo de culturas, são descritos com esta simplicidade e humor desarmantes: “Assim, nesta Macau tão pequenina,/Em íntimo convívio, muita vez,/Aprende o português a falar china/E o china a falar bem o português./E quando assim não seja, então, gentinha,/Bem grita o português e ri-se o china,/E vão-se como o pato e a galinha,/Sem terem percebido patavina”.
Autodidacta com invulgares dotes intelectuais e poéticos, José Joaquim Monteiro revela-se um conhecedor profundo de Macau, da sua cultura, da sua história e das suas gentes: “À memória trazendo os tempos idos,/Macau é essa prenda, diz a História,/Que os nossos portugueses destemidos/Ganharam por seus feitos, honra e glória,/Quando por mares nunca conhecidos,/Conseguiram na sua trajectória,/Singrar até ás terras mais distantes,/Como grandes e nobres navegantes”.
Faz questão de mencionar os autores onde foi beber o conhecimento e a informação sobre Macau e a sua história: “Por elas me guiei – sem ocultar/Dos ínclitos autor’s, aqui, os nomes,/E que são, de mais fé, a consultar,/Jaime do Inso, Rego e Luís Gomes”.
A sua poética oscila entre uma exigência de pureza nos conceitos e nos valores, com uma dimensão ‘naif’ e romântica, assimiladora da exaltação sentimental de Macau e do diálogo luso-chinês: “Pátria nossa!...Mãe de heróis!/Toda luz, eternos sóis,/Que vós, almas pequeninas,/Aprendeis com as doutrinas/De Deus, a querer-lhes tanto,/De olhos neste rincão santo/Que ergue a bandeira das Quinas./Lindas crianças, amai,/Sempre a Pátria e respeitai/Qualquer troféu em memória/Dos heróis da nossa História,/Como este imóvel padrão/Que se ergue aqui neste chão,/Campo da nossa Vitória”.
Luís de Camões merece-lhe uma comovida homenagem: “Longe da Pátria, exilado,/E de peito às musas dado/Num haurir de inspirações,/Aqui, Luis de Camões,/Grande Adamastor da Ideia,/Começou sua epopeia/Que é o assombro das Nações”.
Com os seus trabalhos poéticos, Macau ficou mais desfibrada no seu ser, mais partilhada na sua hibridez, mais pensada na sua utopia, mais visível na sua sátira, ganhando, em suma, uma real autenticidade popular: “Rica, soberba, altaneira,/Esta Macau toda inteira/Bem podemos ver agora/E numerar, nesta hora,/Os mil encantos que encerra/Esta tão bonita terra/Que se estende até lá fora./Casas, igrejas, jardins,/Mostram-se até aos confins/Desse portal, que separa/Esta lusa terra cara/Do continente chinês,/Que é também por sua vez/Uma jóia verde e rara”.
Podemos traçar um pequeno, mas bastante interessante, roteiro da educação em Macau, centrado nos seus mais emblemáticos estabelecimentos de educação e ensino. Dedica um carinho muito especial às Escolas e à Vida Escolar, quiçá uma sublimação freudiana, talvez por não ter tido condições para frequentar a Escola na infância e na adolescência, em virtude das dificuldades económicas da família. E nesse tempo em que lhe foi
dado viver, o ensino era vincadamente elitista, o reflexo de uma sociedade muito estratificada. Só na escola regimental é que acedeu, finalmente, a uma certificada alfabetização. Que rumos teria tomado a vida de José Joaquim Monteiro, se tivesse tido um normal percurso escolar? Teria vindo para Macau?
Faz desfilar algumas Escolas pelos enredos das suas poesias: O Seminário de S. José: “Seminário secular,/Que por si já viu passar/Para a vida das missões/Santos mártires varões/E onde tanto pequenino/Com a ajuda do Divino/Aprende as suas lições./O estudo e a obediência,/O rigor da penitência,/Deus, amor e caridade,/Respeito pela verdade,/A pura e sábia doutrina,/É tudo o que aqui se ensina/Com carinho e santidade”; a Escola Comercial Pedro Nolasco: “A Escola Comercial/Pedro Nolasco tem tal/Fama digna de louvor,/Que nós todos sem favor/Ainda hoje e com glória/Evocamos a memória/Do seu nobre fundador./Na Calçada do Gamboa,/Anos esteve essa boa/Escola, que sem enganos,/Na vida muitos fulanos/Tem sabido encaminhar/E isto por bem já durar/Há oitenta e tantos anos”; o Liceu Infante D. Henrique: “Histórias interessantes/De mestres e estudantes,/Jovens que ali estudaram/E a grandes homens chegaram,/De mestres de alto renome/Que para sempre o seu nome/No livro Imortal deixaram./Porém, no Templo da História,/Dois há de eterna memória/Que entre mesmo a gente estranha/Deixaram fama tamanha/Como homens geniais/São Wenceslau de Morais/E o grão Camilo Pessanha”; a Escola Central: “Também bela e ajardinada/Temos aqui pegada/A ampla Escola Central,/Onde a alegria é geral/Entre a pequenina gente,/Que feliz muito se sente/Quando brinca no quintal”; o Colégio Dom Bosco: “Um bom colégio, afinal,/Como não há outro igual/Alegre no seu conforto/E menino por mais torto/Nenhum há que não se emende./Educa-se e aqui aprende/O ofício, a arte, o desporto”; a Escola Infantil: “Perto, é a Escola Infantil,/Onde a criança gentil,/Tão pequenina e inocente,/Estuda e brinca contente/Chilreando a toda a hora/Pelo grande parque fora,/Recinto umbroso e virente!”; o Colégio de S. João: “Mais existe, aqui pegado/Ainda o também chamado/Colégio de São João/Que leva esta indicação:/Foi Scola Luso-Chinesa/E aí tinha em correnteza/Mais um velho casarão./Uma escola abandonada,/Por muito tempo habitada/Por gente pobre, escutai:/Nela estavam, reparai,/Pelo Estado auxiliados/Os tristes refugiados que vieram do Xangai”; a Escola Estrela do Mar: “E onde esta rua termina,/Com o Lilau faz esquina/A Escola Estrela do Mar,/À qual podemos chamar/Uma obra das mais santas,/A bem de crianças tantas/Que aí se vão educar”.
 1957
Vê-se, por esta amostra, que era um observador atento aos pequenos pormenores, afinal aqueles que se revelam essenciais para a compreensão da globalidade.
Deixou colaboração assinada, entre outros, na revista ‘Religião e Pátria’, nos jornais ‘A Voz de Macau’, ‘O Clarim’ e no ‘Diário de Notícias’ do Funchal. A sua obra tem estes títulos: “A Minha Viagem para Macau”, 1939; “A História de um Soldado”, 1940, 4ªedição, 1983; “De Volta a Macau”, 1957, 2ªedição, 1983; “Macau Vista por Dentro”, 1983; “Anedotas, Contos e Lendas”, 1989; “Meio Século em Macau”, 2 volumes, 2010. Este último título é um autêntico relicário de uma vivência e um notável repositório de fotografias, de documentos e de recortes, afinal lembranças indeléveis de um passado sempre presente. Uma antologia da sua obra poética já deveria estar traduzida para a língua chinesa. “Macau Vista por Dentro”, foi justamente considerada por José dos Santos Ferreira, Adé, como a “Bíblia de Macau”. Designação feliz e de algum modo consentânea com o espírito que povoa toda essa obra.
Omitir ou rasurar José Joaquim Monteiro da literatura de Macau seria uma injustiça e um enorme empobrecimento estético. Não é apenas o autor de poesias soltas e alinhadas pela facilidade do improviso voluntarista e sazonal. E que fosse. É um poeta genesiacamente popular e na sua obra, verso a verso, refulge um magistério sobre Macau (plasmado em cenas do quotidiano, em traços psicológicos, em personagens, em instituições, em reflexões, na cultura, na história, nas lendas, etc), sobretudo um irrenunciável amor ao Território. A sinologia popular matura-se nesta reflexão, edifica-se com esta sabedoria e funda-se neste pensamento realmente policêntrico e impressionista.
A obra de José Joaquim Monteiro será devidamente apreciada, estudada e reconhecida, logo que seja objecto de um trabalho escolar, por exemplo, uma tese de mestrado. Longos dias tem cem anos, diz a nossa sabedoria popular.
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