A expansão dos boatos que chegaram a sugerir, no início do século XVII, que a Espanha pensava invadir a China servindo-se de Macau como base das operações teve repercussões em Cantão. Durante o ano de 1606, altura em que se desenrolou todo este episódio, que nos últimos artigos vimos abordando, “em Cantão houve consequências desse ridículo boato já que, foi publicada uma ordem de prisão contra qualquer estrangeiro, sobretudo contra os Wo-seong (sacerdotes católicos); vigias dia e noite; encerramento de alguns portos; distribuição de armas ao povo; demolição de mais de 800 casas fora das muralhas de Cantão. O resultado de tudo isto foi a morte brutal que deram ao Irmão leigo Francisco Martins, S.J., que chegara de Siu-chau a Cantão, para conduzir a Pequim o padre visitador Alexandre Valignamo S.J.”.
Ilha Verde em 1844 por George West |
Penha por G. Chinnery 1842 |
Os tormentos do padre jesuíta Francisco Martins são contados pelo P. Fernão Guerreiro: “Era chegado nesta conjunção, que viera das residências da terra dentro, um irmão nosso chamado Francisco Miz, de grandes prendas e virtudes, que vinha negociar o necessário para o padre Visitador Alexandre Valignano poder entrar na China, como determinava, a visitar os padres que lá por dentro estão; para o que este irmão trazia chapas dos mandarins de Nanquim, em que mandavam que por onde quer que passasse o padre, não só lhe não pusessem impedimento ou estorvo algum, mas lhe dessem todo o favor e ajuda para seu caminho. Porém foi nosso Senhor servido levá-lo antes disto em Macau a melhor vida, para lhe dar o prémio de suas muitas virtudes e santidade, e dos insignes serviços que lhe tinha feito, e trabalhos que tinha padecido por espaço de trinta anos naquelas partes da Índia, Japão e China, em promover a conversão dos gentios e o aumento de sua santa fé. O que sabendo o irmão em chegando a Cantão, e que já para esta entrada do padre não tinha que negociar, se ficou na mesma cidade negociando as coisas necessárias para as residências, como costumava cada ano fazer por ter nisto muita experiência, e saber muito bem a língua. Porém estando aqui e nesta conjunção, em que toda a cidade andava revoltada e posta em armas pelas mentiras que se tinham levantado por palavra e cartas contra os padres e o capitão de Macau D. Diogo Vasconcelos, e sendo conhecido por discípulo do padre Lázaro Catâneo, foi logo acusado e preso por mandado dos mandarins, nos finais de Março de 1606, juntamente com outros quatro cristãos e com o dono da casa em que poisava. Foram logo todos apresentados diante de um mandarim grande, o qual por mais razão que o irmão lhe deu de si, não quis crer, mas com muito grande fereza e crueldade o mandou pôr a tormentos nos pés e mãos, mandando-lhe meter canas agudos por entre as unhas; e depois disto açoitar com os bambus que são umas canas grossas, com que o costumam fazer, e que é um cruelíssimo tormento. E logo, acabado isto, o remeteu a outro mandarim inferior, o qual o examinou com muito rigor, opondo-lhe que era espia, e que vinha comprar armas e outras coisas para entregar o reino aos estrangeiros.
A todas estas calúnias respondeu o irmão com muita constância, dizendo como tudo aquilo eram falsidades e calúnias que os inimigos dos padres levantaram; e que ele não andava neste trato, senão que era cristão e irmão da Companhia de Jesus. Sem embargo de tudo isto, o tornou a mandar açoitar com os bambus; e como o tormento era o que dissemos, cruelíssimo, que poucos açoites destes bastam para matar um homem, tal ficou o bom irmão dele, junto com o outro dos pés e das mãos, e com andar doente que em cinco dias acabou esta vida dentro no cárcere onde o tinham, entrando no céu com morte gloriosa e tendo padecido tão inocentemente.”
S. Lázaro por G. Chinnery em 1832 |
Artigo da autoria de José Simões Morais publicado no JTM de 17-8-2011
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