sábado, 20 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - parte 3

Do sangue novo lusitano aos conflitos familiares
Com praticamente todo o extremo oriente mergulhado na imensa turbulência provocada pelo inicio da Segunda Grande Guerra, foi por pouco tempo que Macau escapou às consequências da agitação que abalou o planeta. E se o território, dada a neutralidade de Portugal, pôde legitimamente aspirar a uma situação de paz tensa, tal não representou ausência de sérias consequências locais, fruto da proximidade com toda a região envolvente onde a guerra eclodiu, com especial ênfase para as ondas de choque que a invasão japonesa de Hong-Kong provocou em Macau. Esse dia jamais Lam iria esquecer, pois encontrava-se precisamente a passar uma temporada de férias em Hong-Kong, em casa de uma tia, quando as tropas nipónicas irromperam pela fronteira de Kowloon, penetrando com toda a brutalidade pela colónia britânica.
No meio de pânico, e dada a fama de violadores que precedia os invasores, Lam recorda-se dos preparativos feitos por sua tia, barrando as portas de sua casa, e sobretudo de um grande panelão com carvão de lenha queimada, providencialmente preparada para ser aplicada na cara, numa tentativa desesperada para desfigurar o rosto e a aparência, antevendo o inevitável confronto com militares nipónicos que viessem, como vieram, a forçar a entrada em casa. E assim de males maiores se escaparam a jovem Lam e os seus familiares: de caras enfarruscadas, no meio de tumultos e pilhagens conseguiram nesse mesmo dia embarcar no porão de um ferry apinhado de centenas de refugiados rumo a Macau, onde a presença japonesa não tardaria, embora de forma mais estratégica do que bélica. Pouco tempo depois, a agitação social e política em que a China vivia mergulhada e a indesejável presença japonesa em Macau (1941 a 45) acabariam por justificar o reforço do contingente militar português no território. 
Foi nesse contexto que em 1939 desembarcou no enclave um anónimo cidadão português, de nome Alfredo Rodrigues, para uma Comissão de Serviço de sete anos como militar do Exército português. Sobre a vida de Alfredo Rodrigues em Macau, nada mais se sabe. Apenas a poderemos imaginar passada entre a curiosidade por uma sociedade bem diferente da portuguesa e as obrigações militares, até ao dia do ano de 1942 em que o jovem militar português e a jovem chinesa Lam Pui Yi foram apresentados por uma amiga comum. E se nada se sabia de Alfredo até aqui, foi precisamente a partir desse episódio banal que a vida de Alfredo, para o caso, começou a ganhar importância. O primeiro encontro aconteceu em Nam Van, Baía da Praia Grande. Tinha ela então quase 20 anos — e a sua vida mudou de rumo a partir daí.
Em casa da família, a relação de crescente intimidade que Lam desenvolveu com o militar português foi recebida com desaprovação total, mas, mesmo assim, insuficiente para alterar a sua vontade. É que, apesar de todas as resistências familiares, a jovem chinesa acabaria, pouco tempo depois, por ir viver com Alfredo para uma casa situada algures junto ao actual Mercado Vermelho, afinal não muito longe da residência da família. Ficou grávida nesse mesmo ano. E começava a familiarizar-se com o idioma de Camões.
Ao filho nascido em 1943 foi dado o nome de Armando, mas só a 25 de Maio do ano seguinte se deu a dupla conversão da jovem mãe, na Igreja Paroquial de Santo António, onde tiveram lugar as cerimónias de baptismo de Lam Pui Yi - que recebeu o nome de Olga Maria Lam - e a do seu casamento com Alfredo Rodrigues, já então seu companheiro em regime de união de facto, como hoje se diria. Foi oficiante o Padre Manuel Pinto Basaloco e o assento de casamento fala em “chinas gentios” ao referir-se às ligações familiares da noiva.
Ainda hoje é possível perceber os efeitos gerados por estes actos de rebeldia, nos pais e demais familiares da recém-baptizada esposa. De facto, poucas mais escolhas poderiam ser pior recebidas por uma família chinesa, naturalmente impregnada do espírito das normas da obediência filial. E compreende-se, por isso, a ausência dos pais da noiva nas cerimónias. Obviamente. Já a solidariedade e a camaradagem militar lusitana compareceu prontamente e permitiu, contra todos os ventos e marés, obter a colaboração das testemunhas Manuel da Silva, guarda de 1ª classe da P.S.P., amigo do noivo (e não necessariamente inimigo do pai da noiva, seu colega de corporação), e de Madalena Lui, doméstica, amiga da noiva - que não assinou, por não o saber fazer. A partir desse ano, Macau entraria em contagem decrescente como local de residência da jovem Olga e seu marido.
Acabada a Guerra do Pacífico, em 1946 teve início uma nova fase da História da China, com a aliás não menos inquietante Guerra Civil entre Nacionalistas e Comunistas. Foi assim que, para o jovem casal luso-chinês, a vinda para Portugal surgiu no horizonte como a melhor alternativa, uma vez que estava a chegar ao fim a Comissão de Serviço de Alfredo Rodrigues e o desempenho de outras funções não parecia concretizável naquela conjuntura. E Olga, mais uma vez contrariando a família, foi deixando crescer esse projecto dentro de si. Para a família de Olga, nem a difícil situação social, económica e política de Macau, vivendo um clima de grande insegurança e perturbação, tornava Portugal destino aconselhável. A imagem de Portugal era a de um país de muita penúria e miséria, logo desaconselhado para qualquer projecto de melhor futuro. Mas, apesar das limitações impostas pelo quase total desconhecimento recíproco dos idiomas falados por cada um dos elementos do casal, Olga manteve as ilusões que o casamento católico e um filho português lhe trouxeram, alimentadas também pelo sentimento de “perda de face”, que entretanto se instalara entre os seus. Por isso, não virou a cara ao desafio de rumar para terras atlânticas, animada por um ímpeto da vontade, superior ao medo e à dúvida que também sentia, mas que decidira enfrentar.
As apreensões da família e de Olga Lam eram justificadas. Aliás, esta nunca conhecera quem da sua comunidade tivesse escolhido Portugal como destino! Na realidade, na altura em que Olga e Alfredo, com o filho ainda criança, se preparavam para dar a volta a meio Mundo, Portugal era um país pouco menos que desconhecido para a esmagadora maioria dos chineses de Macau. Além disso, a jovem ignorava que em Portugal houvesse chineses quando, afinal, já havia uma pequena comunidade, quase invisível de tão diminuta, mas que, aos poucos, desde inícios dos anos 20, se fora fixando e crescendo e até veio a desempenhar um papel decisivo no acolhimento e adaptação de Olga Lam.
(continua...)

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