As mudanças de regime em Portugal e na China não resolveram diferendos, defende o historiador Alfredo Gomes Dias. Problemas como a delimitação geográfica de Macau ou a controvérsia do ópio mantiveram-se no início da década de 1910.
Mudaram os políticos, caíram reis e imperadores, mas em 1910/11 os problemas mantiveram-se intactos. Se as boas relações diplomáticas entre Portugal e a China não se alteraram, o problema da delimitação geográfica de Macau ou a controvérsia do ópio transitaram da monarquia para a república tal como, na China, do império para o regime republicano. A agenda manteve-se intocável. Esta foi uma das principais notas que o historiador Alfredo Gomes Dias fez sobressair na primeira de duas conferências da sessão dedicadas ao tempo das Repúblicas na China e em Portugal, no Centro Científico e Cultural de Macau. Dias, que proferiu ainda uma segunda conferência sobras as diásporas macaenses neste primeiro quartel do século XX, não deixou de salientar que, a propósito das mudanças de regime e das convulsões políticas nos dois países, foi graças à continuidade das relações e dos contactos diplomáticos entre os dois países que a presença portuguesa na China se assegurou ao longo do século XX. E, isso, apesar da interrupção de trinta anos entre 1949 e 1979.
Verdade se diga que Macau nunca precisou de qualquer documento jurídico, de nenhum tratado, para existir, ao contrário de Hong Kong, e talvez aí, nesse informalismo resida o segredo da presença portuguesa na China, observou já na parte final, Luís Filipe Barreto, presidente do Centro Científico e Cultural. No diálogo luso-chinês e nos processos de reconhecimento reciproco dos regimes, Macau com todas as questões que suscitava esteve sempre no centro das negociações e dos contactos.
A mesma agenda, o mesmo impasse
Uma agenda que os dois regimes herdaram dos anteriores e que, negociação após negociação, notou Gomes Dias, acabava por redundar em impasses. Dessa agenda de negociações, cinco temas persistiam – as delimitações de Macau, a linha de caminho de ferro entre Macau e Cantão, o tratado de comércio, as questões da extradição e da nacionalidade e o problema do comércio do ópio. São problemas que se arrastavam há décadas, algumas desde finais do século, como era o caso do ópio, outras como o caminho de ferro desde, pelo menos, princípio da década, que resistiam a revoltas e revoluções e que agora voltavam a intrometer-se nos processos de reconhecimento reciproco das duas repúblicas. A premência era tal que, à pressa, os
revolucionários portugueses foram obrigados a constituir uma comissão
negocial, em Abril de 1911, para resolver toda esta agenda com a parte
chinesa. Privados de quadros competentes sobre os assuntos sínicos,
absolutamente impreparados, não restou outra alternativa aos
republicanos senão convocar uma série de antigos governadores de Macau,
do tempo da monarquia, para liderar as negociações com a China. A
comissão era chefiada por Aníbal Sanches de Miranda que haveria, aliás,
de ser nomeado governador em Julho de 1912 e representante português, em
Haia, na I Conferência Internacional sobre o Ópio.
O mapa cor-de-rosa
Um dos diferendos que atravessaram todo o
século XX nas relações entre Portugal e a China dizia respeito ao
limite geográfico de Macau. A questão não era fácil de ser dirimida.
Sobretudo, pelas posições extremadas das duas partes. A China insistia
numa visão minimalista do território. A presença portuguesa em Macau
deveria limitar-se da Praia Grande até às muralhas, o que implicaria uma
redução a metade do território actual. Do lado da república portuguesa,
a reivindicação territorial estendia-se até às Portas do Cerco. Mas não
só. Para a comissão de Sanches de Miranda, a presença nacional deveria
incluir também, além da Taipa e Coloane, as ilhas da Montanha, Lapa e
São João. Este era o mapa cor-de-rosa dos portugueses na China. Duas
visões, uma minimalista e outra maximalista, que se combatiam e cujo
braço de força acabou por perdurar. Perante um impasse, impôs-se o
status quo. Sem Montanha, Lapa e São João mas com a Taipa e Coloane
intocáveis. Este era, afinal, o plano B porque, como afirmava um ofício
do diplomata português, ceder uma polegada na península ou nas duas
ilhas “seria consentir um esbulho na colónia”.
Outra ideia que não ultrapassou o impasse
ao longo do século passado foi a da construção de uma linha de caminho
de ferro entre Macau e Cantão. “É um projecto que ao longo dos tempos
vai emergindo e desaparecendo e, depois, lá emerge outra vez”, ironiza
Gomes Dias. “Como se fosse um metro de superfície que fica subterrâneo
para logo depois ver a luz do dia e voltar outra vez à terra”. A ideia
era alimentada por um consórcio local, constituído por membros da elite
macaense, que se propunha explorar a vertente comercial da ligação. A
comissão chega a admitir a constituição de um grupo técnico misto entre
chineses e portugueses mas o projecto acaba por ser suspenso e nunca
andará para a frente. Por umas razões compreensíveis, outras nem tanto. A
questão das fronteiras atravessava-se no meio do projecto tal como a da
fiscalização do comércio entre as duas regiões, e tal como o problema
das alfândegas chinesas cujo regresso para o território de Macau era há
muito uma reivindicação da parte portuguesa. No fundo, o que esta
implícito era outra vez o problema do comércio do ópio. Os portugueses
discutiam na comissão a necessidade, ou não, de exigir contrapartidas
para Macau devido ao fim daquele comércio ponderando o efeito da
proibição nas finanças do território. Se não contrapartidas financeiras,
pelo menos tempo de adaptação até à proibição total, discutia-se. Diz o
historiador que em virtude destas sucessivas conversações, “até 1926,
Macau vai produzindo legislação muito à frente do seu tempo antecipando o
que depois, em termos internacionais, se fará para proibir não só o
comércio mas também o consumo”. “É claro”, sustenta, “que em 1908/1910 o
ópio já não era a principal fonte de receita de Macau, já era o jogo”. O
argumento, porém, serviu de arma negocial na disputa com os chineses.
Artigo da autoria de Carlos Picassinos publicado no jornal Ponto Final de 6-6-2012
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