Quando, uns anos depois, em 1946, Olga Lam tomou a decisão de embarcar rumo a Portugal, os negócios dos irmãos Yuan já prosperavam e a venda ambulante das gravatas já dera origem a um estabelecimento comercial em plena baixa de Lisboa, na Travessa da Madalena. Claro que a jovem Olga Lam desconhecia tais factos, nem poderia imaginar o quanto isso se tornaria importante na sua vida. A cansativa viagem marítima, de cinquenta e sete dias, fora mais um obstáculo posto no caminho das incertezas do futuro, amenizadas talvez pela companhia do marido e do filho e pelo desejo de ir ao encontro de uma vida melhor.
Apesar das naturais dificuldades de adaptação a um país cujo idioma ainda não dominava, os primeiros meses pareceram-lhe bem encaminhados e Olga Lam viu cumprirem-se alguns dos seus objectivos. Instalada a jovem família numa casa na zona de Alcântara, as ocupações próprias de uma mãe preenchiam todo o seu tempo, enquanto o marido prosseguia a carreira militar. Mas eis que, digamos assim, o militar fez sair “o tiro pela culatra”, acontecendo o impensável, apenas sete meses depois da chegada: Alfredo abandonou a esposa e o filho! Olga tinha 23 anos. O filho Armando contava somente três.
Sozinha e com o filho para cuidar, foi o desespero que levou Olga Lam, portuguesa de etnia chinesa, natural de Macau vivendo em Lisboa, a socorrer-se do Consulado de Taiwan, na altura a única instituição em Portugal representativa de interesses chineses, e onde, apesar de não lhe financiarem a viagem de regresso a Macau, se prontificaram a conceder-lhe apoio para alimentação e pagamento do quarto que alugou na Rua Castilho.
E foi com a ajuda do mesmo Consulado que, pouco depois, Olga conseguiu emprego numa fábrica de conservas no Seixal, onde esteve cerca de 3 meses, juntamente com outras duas compatriotas, recebendo o parco salário de 10/12 escudos por semana. Apesar de tudo, o salário salvou-lhe a vida e as sardinhas lusitanas aplacaram-lhe a fome.
E a verdade é que foi ainda por iniciativa do Cônsul de Taiwan, de quem o então já empresário do negócio das gravatas Yuan Y Hing (que a partir de certa altura passou a apresentar-se como “Juang”, por semelhança fonética ao português João) era amigo chegado, que Olga Lam, dois ou três meses depois, mudou radicalmente a sua situação: decorria o ano de 1947 e o negócio das gravatas prosperava de tal maneira que Juang teve necessidade de contratar mais empregados. De facto, o volume das encomendas era tal que Yuan não tinha mãos para medir tantas gravatas...
Indicada pelo Cônsul, juntamente com outras três chinesas, Olga foi candidata a empregada de balcão na loja de gravatas da Travessa da Madalena e Juang Y Hing não hesitou, foi mesmo decisão à primeira vista: optou pela jovem Olga, que imediatamente se mudou com o filho para casa de Wen Chai, irmão do novo patrão e da cunhada sino-portuguesa Angelina, nas proximidades da Sé de Lisboa.
Assim mesmo: foi a adversidade que fez com que se cruzassem e ligassem diferentes destinos, até hoje. Olga aproveitou bem a oportunidade que estes novos conhecimentos e um salário substancialmente aumentado (de doze escudos por semana para quase quatro vezes mais) lhe proporcionaram. E estreitaram-se os laços de trabalho e afectividade entre Olga Lam e o seu patrão Juang Y Hing... Por isso, dessa vez aconteceu o desejado: Olga casou com Juang em 1954, antecipadamente divorciada de Alfredo, como quem encerra um capítulo e inicia outro, num casamento que inaugurou tempos de estabilidade laboriosa e tranquilizadora respeitabilidade.
Deram o nó, decisivo salto na vida
Como as exigências do negócio não paravam de crescer, o casal mudou-se para um 3º andar na Praça da Figueira, instalações que passaram a albergar quatro diferentes funções, em simultâneo: a de residência, a de ateliê de produção, a de posto de venda e a de armazém de gravatas. Graças pois, a uma persistência sem quebras, a acumulação dos lucros permitiu aos irmãos Yuan estabelecer os respectivos negócios de forma autónoma, ambos na baixa de Lisboa.
Temos portanto que, cerca de doze anos depois de ter conhecido na Avenida da Praia Grande, em Macau, o tropa português Alfredo Rodrigues, Olga Lam está em Lisboa, terra do ex-marido, casada com um empreendedor cidadão chinês, dirigindo um próspero negócio com cerca de uma dezena de empregados - e “fazendo dinheiro, muito dinheiro”, como nos disse! Basta dizer que, com um custo de produção calculado em três escudos por cada dúzia de gravatas, era vendida a unidade a sete escudos e cinquenta cêntimos...
A expansão do mercado, para além da zona de Lisboa, justificava o aumento da oferta e os Yuan distribuíam, até pelo correio, gravatas para todo o país, incluindo a Madeira e os Açores e, a partir de determinada altura, mesmo para Marrocos, num prodígio de faro comercial sem dúvida digno de registo. Eis portanto que, poucos anos depois de chegar a Lisboa, Olga Lam já estava integrada na actividade comercial da cidade e, mais do que isso, se comportava bem ao gosto de qualquer autêntica alfacinha, frequentando os espectáculos de revista do Parque Mayer, deixando-se conquistar pela música de Amália Rodrigues e indo à igreja agradecer ao poder divino a saúde e a boa sorte que afinal teve e até, como manifestação inequívoca da sua notável adaptação à vida social e à cultura popular portuguesas, passando a visitar o Santuário de Fátima com uma frequência que testemunha o enraizamento da sua fé católica.
Outras pontas de um novelo transcultural
Nos anos 50, em resultado do estabelecimento da República Popular da China, a ascensão de Mao Tsé Tung ao poder e a fuga de Chiang Kai Chek para Taiwan, verificou-se um novo fluxo de emigração chinesa. As divisões políticas no seio da sociedade chinesa tiveram imediata repercussão nas comunidades chinesas espalhadas pelo Mundo, quer sob a forma de apoio à revolução comunista, quer sob a de apoio à causa nacionalista, e muito em movimentos de solidariedade para com os compatriotas em busca de protecção. E foi nesse contexto dramático que, a exemplo do que se verificou noutros países, também a pequena comunidade chinesa residente em Portugal acolheu alguns compatriotas e apoiou a vinda de familiares, para o que teve, mais uma vez, a colaboração discreta mas efectiva do consulado de Taiwan em Lisboa.
Acontece que Juang, tinha deixado um filho na China, Leong Iam, entretanto casado e com duas filhas, e ainda hoje residente na cidade de Wengzhou. Ocorreu, por isso, aos Yuan a hipótese da vinda para Portugal de Leong Iam, a esposa e as filhas. Mas Leong Iam é cego e o pai teve dúvidas quanto à razoabilidade de o chamar para Portugal, não obstante o que em Lisboa se poderia imaginar serem as dificuldades materiais porque passavam aqueles que viviam na China. Porém, quem não se deixou manietar pelas dúvidas foi Dona Olga que tratou de convencer o marido a financiar a vinda da família Leong, argumentando com os benefícios que daí resultariam para todos - ponto de vista perfeitamente apoiado na forte tradição chinesa do desenvolvimento das pequenas empresas com base em laços de parentesco. E foi assim que em 1958, Leong Iam e Chi Mei, sua esposa, e as filhas Li Chien Yuan, com quatro anos e Hua Chien Yuan, recém-nascida, vieram viver para Portugal. Eis, no entanto, que desta vez o optimismo de Dona Olga não teve confirmação na vida real: a presença do casal em Portugal foi marcada por dificuldades de adaptação tão sérias que, quatro anos depois, o casal regressou à China. Estava-se em 1962, em pleno processo da tempestuosa Revolução Cultural!
Trata-se, certamente, de um muito raro caso de opção pelo regresso à China, em contexto idêntico, visto que dificilmente se poderia imaginar aliciante, para chineses de modesta condição, mas voluntariamente emigrados no Ocidente, um mergulho no turbilhão político chinês desses tempos da denominada Revolução Cultural. Foi, porém, a decisão do casal: regressar à mãe pátria, mas sem os filhos — não só as meninas nascidas na China e trazidas pelos pais ficaram em Portugal com os avós, mas também o menino nascido dois anos antes no Porto, onde Leong Iam e a mulher estiveram durante um curto período, a viver junto de amigos chineses também negociantes de gravatas, após desentendimentos ocorridos em Lisboa com o patriarca do clã. De facto, Leong Iam e Chi Mei regressaram à República Popular da China e nunca mais voltaram a Portugal. Ainda hoje vivem em Wengzhou.
(continua...)
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