terça-feira, 2 de outubro de 2012

Inéditos de Henrique de Senna Fernandes

Era uma obra que já estava dactilografada e não tem fim, ou melhor, o último capítulo pertence ao leitor. “Os Dores” é um romance inédito de Henrique de Senna Fernandes que vai chegar às mãos dos leitores em Outubro, numa edição do Instituto Cultural, dois anos depois do falecimento do autor. Além deste inédito, será ainda reeditado “Amor e Dedinhos de Pé”. Uma homenagem ao homem que deixou um “legado cultural” e um testemunho da Macau do seu tempo
Procurou palavras como pessoas. Descreveu-as com a mestria e a dor implícitas à condição humana, no espaço que a rodeia ou a cerca, sem desistir. Às vezes o peito doía. Pelo quão ingrato é escrever-se, sem fim à vista, sem saber se os escritores macaenses tinham público. Acabava por ser “uma aventura completa”, mesmo que as obras, tal como os seres, nem sempre pudessem ter o último capítulo, a encerrar a história. Aliás esta parece sempre uma “carreira peregrina”, com páginas e páginas, e múltiplas versões, como se as mãos se multiplicassem, até à combustão.
O Pai das Orquídeas: manuscrito de HSF
E Henrique de Senna Fernandes chegou a queixar-se dessa dor, que não se evita, desse receio que ataca quando o ensaio é humano e o seu valor está tão entranhado, que o corpo desaparece, esfuma-se, mas os livros – que são a alma da sua terra – permanecem, renascem de gavetas, procuram-se e continuam a surpreender, depois da vida, sem fim.
Para recuperar o legado deixado pelo escritor, conhecido como um verdadeiro contador de histórias, o Instituto Cultural irá reeditar o livro “Amor e Dedinhos de Pé” e publicar um inédito - “Os Dores” -, que o escritor deixou dactilografado, mas sem um final, contou ao JTM o filho Miguel de Senna Fernandes. Numa cerimónia que deverá ter lugar a 15 de Outubro, na Fundação Rui Cunha, o homem que “descreveu Macau como mais ninguém” será homenageado no dia em que completaria 89 anos.
A vontade de colocar a obra mais perto do público surgiu no ano passado. “O IC manifestou para já o interesse de republicar as obras e de saber qual o manancial de manuscritos existentes para saber se era possível fazer mais alguma coisa”, referiu Miguel de Senna Fernandes. Além de relançar uma das obras mais conhecidas do escritor foram ainda ao baú e pegaram num texto já dactilografado, que será publicado, como o autor o deixou, na sua génese. “Vai ser assumido como o livro de um autor macaense. Antes havia palavras com aspas e itálico, mas foi assumido como português de Macau. E isto é de aplaudir. Vai ser engraçado”.
“OS DORES ”, UMA NOVA AL MA DA TERRA . Miguel de Senna Fernandes ainda ficou com reservas de ver publicadas as páginas do pai por estas não terem um fim, mas a história “muito bonita” é capaz de cativar, como qualquer narrativa aberta, onde o leitor se descobre e adivinha, através do silêncio e das pistas do autor. “O IC entendeu que se devia publicar e sempre achei que fosse viável, mas tinha algumas reservas. É um assumir do livro como ele está. Fica ao critério do leitor ou de alguém que o acabe... não sei se acabará”, explicou ao JTM.
O que se pode esperar do inédito é uma nova radiografia da alma de Macau, uma descrição intensa de “outros tempos”. A história decorre no início do século XX e como todas as heroínas de Henrique de Senna Fernandes também a protagonista desta “passa um mau bocado”. É o que pode chamar um verdadeiro “ensaio sobre a condição humana”. “Trata-se da vida de Leontina e as suas peripécias. Foi abandonada e cresceu no mundo dos chineses, depois foi resgatada por uma família macaense”, antecipa Miguel de Senna Fernandes.
Depois o leitor viaja por lá, pela crueza das situações porque a vida é assim: um misto de emoções, de momentos bons e maus. “Macau nunca foi um paraíso, mas mesmo nas desgraças o meu pai encontrou um paraíso em Macau. É a realidade das coisas”, relembra saudosista dos tempos em que se sentava no escritório com o pai a conversar sobre os livros, que às vezes são pessoas.
Ainda que a obra não esteja completa, aliás como todas as de autores que procuram mais do que um fim, “Os Dores” tem elementos suficientes para surpreender. “Estou convencido que mesmo que a obra esteja incompleta as pessoas vão gostar do que lêem”, acredita Senna Fernandes. “Há sempre pistas e é fantástico que dão azo à imaginação das pessoas”, acrescentou. “O livro não foi deixado incompleto propositadamente”, talvez acontecesse pela falta de tempo ou por o tempo se perder nas tantas outras páginas, mas ao ler, quem gostar de prever o fim que o autor lhe poderia ter dado vai conseguir adivinhar a “probabilidade de um ou outro desfecho”.
GAVETAS DE MACAU . Esta iniciativa de publicação póstuma é uma homenagem que deixaria Henrique de Senna Fernandes satisfeito e que poderá desencadear um interesse pela escrita em torno de Macau. “A primeira vez que se falou na reedição dos seus livros ainda era vivo. Já estava bastante enfermo, mas ficou muito satisfeito com esta manifestação de interesse”, recordou o filho. O que será feito depois destas edições Miguel Senna Fernandes não sabe, mas acredita que o IC tem a ideia de republicar tudo o que já foi feito. Contactado pelo JTM, o organismo disse apenas que está a preparar a edição do livro inédito e a reedição de “Amor e Dedinhos de Pé”, remetendo outras informações para mais tarde.
Mas foram tantas as páginas que Henrique de Senna Fernandes deixou em gavetas. “Há muitas histórias que estão ainda escritas à mão. Descobri um manuscrito quase completo, se a sua letra não me trair é de 1958”, referiu ao JTM. Este poderá ser um dos romances que o pai pensava ter perdido nas mudanças de escritório. “Fiquei por saber se este é o livro que pensava perdido, mas que se calhar estava mesmo entre os manuscritos. Agora consegui ter mais vagar e vou ler para ver se está completo”, disse Senna Fernandes, notando que até está encadernado. “Espero bem que seja o que julgava perdido para que fique com a alma em paz”, referiu, acrescentando que “O Pai das Orquídeas” é outro dos manuscritos encontrados. A Miguel de Senna Fernandes os livros recordam-lhe as conversas com o pai. Mas quando partiu para a leitura surpreendeu-se ainda mais. Era como se as páginas aumentassem os diálogos entre pai e filho, desvendando mais pedaços da vida e da terra. “Li primeiro o ‘Amor e Dedinhos de Pé’. Li-o de cabo a rabo durante uma viagem de avião no regresso de Portugal e depois reli. E surpreendeu-me. Não me contava tudo e às vezes o livro completava o que ficava por dizer”, partilhou.

Com esta iniciativa de partir para a publicação de um inédito e da reedição de “Amor e Dedinhos de Pé”, Miguel de Senna Fernandes mostrou-se satisfeito e grato pelo reconhecimento dado à obra do pai. “É uma cabal demonstração. Sempre se queixava que era ingrato ser escritor em Macau, porque não havia no geral a literatura macaense, mas escritores isolados, e não havia público”, referiu. Mas nada fez desistir o autor de “A Trança Feiticeira”, até porque sentia: “não sei o quanto valem os escritos, mas escrevo e estou bem comigo”. E assim, “deixou-nos um legado importante” e um “testemunho” do que foi Macau. Como numa narrativa aberta, Henrique de Senna Fernandes nunca partiu e os livros são a prova disso.
Artigo da autoria de Fátima Almeida publicado no JTM de 28-9-2012

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