A língua ou patois de Macau mereceu, desde longa data, a atenção dos filólogos portugueses. Foi primeiramente estudada por Francisco Adolfo Coelho (1847-1919) numa monografia que envolvia todos os dialectos portugueses falados fora de Portugal. O dialecto macaense é aqui tratado num pequeno número de páginas. Todavia, o autor dispunha de uma especial competência no campo da filologia histórica e científica, de que foi um precursor em Portugal, quer como investigador consciencioso, quer como professor do antigo Curso Superior de Letras e depois Faculdade. Neste, como em outros campos da sua extraordinária actividade, Francisco Adolfo Coelho distinguiu-se, entre nós, como o iniciador de uma escola de cientistas da linguagem. Não lhe escapou, pois, o estudo dos crioulos que são a expressão idiomática da expansão dos Portugueses no mundo a partir do século XV. De facto, o crioulo de Macau pode colocar-se a par de outros dialectos com os quais, de resto, apresenta muitas semelhanças, no Brasil, na África e na Ásia.
Após Francisco Adolfo Coelho e na sua esteira, outro notável filólogo português contemporâneo, José Leite de Vasconcelos (1858-1941), também se ocupou do crioulo de Macau numa memória destinada ao X Congresso dos Orientalistas, embora de uma maneira rápida e aproveitando-se sobretudo de Adolfo Coelho.
Todavia, e ainda anteriormente a estes filólogos, a mais antiga referência que existe sobre o patoá de Macau deve-se a um autor chinês, Tcheng Ulam, que também escreveu uma monografia sobre a cidade do Santo- Nome-de-Deus com o título de Oi-Mun-Kei-Leok, redigida em 1745-1746, em que se referia à língua macaense.
Mas o dialecto teve ainda um intérprete apaixonado no orientalista João Feliciano Marques Pereira (1863- 1909), nascido em Macau, de onde se dirigiu a Portugal para frequentar o Curso Superior de Letras, onde foi discípulo de Adolfo Coelho. Ficou, porém, sempre fiel à terra onde nasceu. Professor efectivo da antiga Escola Superior Colonial, deputado pelo círculo de Macau, funcionário do Ministério da Marinha e do Ultramar, dedicou-se, quer pelo jornalismo, quer pela publicação de várias obras, aos interesses de Macau que sempre defendeu ardorosamente. Contudo a sua coroa de glória é a edição da revista Ta-ssi-yang-kuo (Grande Rumo do Mar do Oeste, isto é, Portugal). Esta revista, pela colaboração que contém, representa, ainda hoje, uma contribuição notável para o conhecimento da história de Macau.
Ora, foi na referida publicação que em sucessivos artigos, subordinados ao título de «Subsídios para o Estudo do Dialecto de Macau», o autor, quer com a inserção de textos apropriados, que lhe eram enviados do território do Extremo-Oriente, quer com notas esclarecedoras, empresta o maior desenvolvimento à análise do dialecto de Macau. Apesar de outros trabalhos publicados posteriormente, os artigos assinados por João Feliciano Marques Pereira são indispensáveis para o conhecimento da língua de Macau, pelo menos numa fase da sua evolução histórica.
Ultimamente a Dr.ª Graciete Nogueira Batalha, professora no Liceu Infante D. Henrique e residente no território há longos anos, tem-se consagrado afincadamente à prospecção do dialecto com a publicação de numerosos e valiosos trabalhos.
Finalmente um escritor macaense, José dos Santos Ferreira, deu à luz uma série de obras em que reconstitui com toda a fidelidade a língua de Macau.
Além de referências esparsas em outras obras são estes os principais elementos que se podem consultar sobre um dos dialectos mais característicos e originais da língua nacional.
Como acontece em todas as outras estruturas linguísticas o dialecto de Macau, língua macaísta, ou ainda mais vulgarmente patoá (do francês patois) tem sofrido uma evolução, mais notória no actual século. Graças a vários factores e, nomeadamente, uma maior aproximação com a Metrópole e à acção dos metropolitanos, só restam alguns traços fundamentais do antigo crioulo, tanto na fonética, como na morfologia. Além disso, é actualmente falado por um número mais reduzido de macaenses.
De facto, os textos publicados na revista Ta-ssi-yangkuo revelam-nos uma linguagem muito mais distante da do nosso tempo e, por vezes, incompreensível, com o emprego de um vocabulário estritamente macaense. Deve ainda notar-se, como vimos atrás, que o dialecto chegou a ter expressão literária.
Como já foi notado, a língua praticada em Macau já não pode merecer a designação de dialecto. É antes um falar próprio, com características que não são exclusivamente de Macau e se revelam ainda no português das nossas antigas províncias ultramarinas e, naturalmente, no Brasil.
As influências que sofreu a língua de Macau são certamente de diversas origens, representando os diversos grupos sociais que foram constituindo a população do território nas suas relações com os povos vizinhos, numa área geográfica bem determinada.
Assim, como teremos ocasião de apreciar adiante, muitos vocábulos originais das línguas malaias foram introduzidos desde o início da fixação dos Portugueses no século XVI na pequena península chinesa. Por um lado, segundo a versão dos historiadores, os colonos portugueses ligaram-se com mulheres da Malásia e, por outro lado, os macaenses tiveram sempre contactos muito frequentes com a Malásia. Foi da cidade de Malaca que partiram os primeiros navegadores e comerciantes com destino aos mares da China. Do mesmo modo, e por motivo das relações mútuas, o português influiu nas línguas da Malásia que conservam bastantes vocábulos de origem lusitana.
Além do malaio, foram adaptados pelos habitantes de Macau termos do canarim ou língua de Goa, porque, como se sabe, a colónia dependeu administrativamente, durante muito tempo, do governo da Índia. A língua espanhola também deixou aqui alguns vestígios pela proximidade das Filipinas, onde até ao fim do século passado dominaram os Castelhanos.
Todavia, uma grande parte dos elementos lexicais e ainda outras formas gramaticais provêm do chinês, o que nada nos pode surpreender, porque a etnia propriamente macaense representa hoje uma percentagem mínima, cerca de três por cento, da população chinesa que em ondas sucessivas, e principalmente depois da segunda guerra mundial, tem invadido o território e nele se conservou com os seus usos e costumes.
De resto, os Chineses de Macau distinguem claramente entre o significado dos termos Chông Kwó Kian, Sai Yeóng Iân e Ou-Mun-Iân, isto é, gente de Portugal, (metropolitanos) e «gente de Macau» (Macaenses). Também na linguagem corrente do território, quando se fala do «filho de Macau» ou «filho da terra», pretende-se apenas aludir ao macaense genuíno, ou seja o descendente de portugueses, nascido em Macau, embora nele se misturassem os sangues chinês, malaio, indiano, javanês ou mesmo filipino, os mestiços, como são designados os indivíduos destas proveniências, sem quaisquer complexos.
Tanto o filho de Macau como o chinês se consideram um ao outro como estrangeiros. Mas se um autêntico chinês entrou no grémio da Igreja Católica, adquiriu a nossa língua e assimilou a nossa identidade, passa a ser considerado como um verdadeiro macaense.
De uma maneira geral ― é ainda outro aspecto a considerar na língua de Macau ― nota-se uma ausência quase completa de vocábulos relacionados com a agricultura e mesmo com a horticultura. Evidentemente não se trata de um povo de lavradores ― o pequeno solo de Macau não o permitia ― mas de gente empregada no funcionalismo de todos os graus, ou, quando muito, em actividades que se designam como terciárias. Portanto, o léxico macaense revela uma influência culta. São, no entanto, muito abundantes os termos referentes à culinária em que participa um receituário não só português mas também chinês, malaio e indiano.
Na fase do século passado, segundo a análise de João Feliciano Marques Pereira, a língua de Macau apresentava-se sob três formas que se podiam assim distinguir: 1) o macaísta cerrado ou macaísta puro, que era, sem dúvida, o mais interessante, no ponto de vista filológico, essencialmente falado pelas classes populares; 2) O macaísta que se aproximava do português corrente, usado pelas famílias de maior nível social e em contactos frequentes com os recém-vindos da Metrópole; 3) O macaísta falado pelos Chineses 53. Nos últimos tempos, a acrescentar às influências que acima citámos e são as mais antigas, temos de notar as da língua inglesa, dada a proximidade de Hong Kong e das mais variadas dependências, sobretudo comerciais, de Macau daquela colónia britânica. Ainda hoje nos surpreende o facto de que a segunda língua praticada em Macau, depois do chinês, seja o inglês e não o português. Pode dizer-se, sem exagero, que a nossa língua só é usada em Macau nos actos administrativos e por funcionários macaenses ou recém-vindos da Metrópole e mais raramente por comerciantes ou outras pessoas, apesar dos grandes esforços empreendidos ultimamente pelo Governo para expandir e valorizar a língua lusitana.
Um dos aspectos mais significativos da língua de Macau, como de resto acontece com outros crioulos portugueses e com a língua insular, é a conservação de termos arcaicos que caíram em desuso no português corrente. Citemos alguns de maior expressividade: «Ade» por «adem» do português antigo pato-real; «afião», igualmente do português antigo «anfião», do árabe «afium», nome do ópio extraído da papoula; «ama», criada, serviçal doméstica; «amestê» por há mister; «asinha» com o sentido de depressa; «autochina», nome de teatro chinês tradicional; «botar», deitar; «botica», farmácia; «bredo», significando hortaliça; «bugio», macaco; «cachorro», cão; «cafre», negro africano; «carreta», carro pequeno; «chunambo», cal de conchas de ostras; «obreiro», artífice de cobre; «cuscus», pão ou bolo cozido em vapor de água; «cuspidor», escarrador; «de ficada», acção de ficar ou de se conservar num lugar; «figo» de banana; «papear», conversar, falar português, papear; «pramor», por amor, por causa de; «mariscar», vocábulo muito usado pelos nossos clássicos no sentido de comer mariscos; «mercê», graças, mercê de; «tem mercê», tem direito; «mezinhas», remédios; «mofina», triste, infeliz.
Mas, como acima dissemos, é, porém, o malaio e depois o chinês que se tornam a fonte mais abundante, como é natural, do léxico macaense. Não provém somente do contacto secular entre os Macaenses e estes dois povos, mas ainda um grande número de vocábulos designam objectos que só se encontram em Macau. Citaremos das línguas malaias aqueles de uso mais corrente, aditando, quando possível, a sua origem:
«Achar», conserva; «baju», casaquinho; «balechão», tempero, do malaio «balachan»; «bilimbi», fruto, de «balimbing»; «cachipe», avarento, de «kachip»; «cacus», latrina; «cancom», espécie de couve, de «kang kong»; «catiaca», cheiro de sovacos, de «ketiak»; «chareta» ou «xareta», colher, nádegas, de «chiratta»; «chilicate», alicate, de «chelikati»; «choler», tocar com os dedos, de «cholek»; «chubi», ou «chubir», beliscar, dar beliscões, de «chubit»; «chupa», medida, de «chupak»; «copo-copo», borboleta, de «kupu-kupu»; «cudum», indivíduo baixo, de «kudong»; «curum», espécie de cesto, de «kurong»; «cutão», corpete, de «kutang»; «daiom» ou «daiong», um pau com feitio de remo com que se mexe a «alúa», um doce fabricado em Macau, de «dayong», remo; «dodol», doce; «estrica», ferro de engomar, de «istrika»; «gambel», substância para mascar, de «gambir»; «godão», armazém nos baixos de uma casa, de «gudang»; «gunde», saco pequeno, de «guntil»; «jaca», fruto de «chakka»; «jamboa», fruta; «jangom», milho, maçaroca de milho, de «jagong»; «lacassá», sopa, de «laksa»; «lichim», escorregadio; «mangostão», fruto, de «mangistan»; «maz», peso de 1666 gramas; «mongus» e «murum», triste; «ná», interjeição, com o sentido de «deixa-me»; «onde-onde», bolinho; «paço», recipiente de barro, de «pasu» e «paço-buião», boião de barro grosseiro, de «pasu-buyong»; «pala-palã», de par em par; «parão», facalhão, de «parang»; «pico», peso equivalente a 100 cates, ou seja aproximadamente 6100 quilos; «pipis», bolinhos; «pulu», arroz; «rota», espécie de cana fina de junco, de «rotang»; «saião», pena, desgosto, saudade, de «sayang»; «sambal», compota; «sanco», escarrador, de «sangku»; «santã», leite de coco; «sapão», madeira, de «sapang»; «sapeca», moeda, de «sapaku»; «saraça», mantilha, de «sarásah»; «sará saru», pesado, de «sarat»; «savan», doença, de «sawan»; «sipute», caracol; «tael», 16.ª parte do cate. (...)
Excerto do capítulo "A Língua de Macau" in A Influência da Cultura Portuguesa em Macau, de Rafael Ávila de Azevedo. Edição: Inst. Cultura e Língua Portuguesa, 1984.
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