Manuel Cardoso, um dos fotógrafos que melhor registou os últimos 50 anos em Macau, morreu. Ainda há dias ele recordava os primeiros tempos da sua paixão pela fotografia (começou em 1964) a propósito de uma imagem do istmo Taipa-Coloane que dizia ter-lhe valido 100 patacas na década de 1960. Conheci-o em Macau e de vez em quando falávamos. Sempre admirei as suas fotografias e ele gostava muito deste projecto. Quando precisava de alguma imagem para ilustrar um texto Manuel Cardoso esteve sempre disponível. Agradeci-lhe sempre que isso acontecia e volto a fazê-lo agora de forma pública. Obrigado! Obrigado pelas fotos de paisagens, das cenas de rua, das flores de lótus... mas sobretudo pela essência humana que captou em muitos dos seus registos.
"Macau - a ponte da China para a Lusofonia Global", foi uma das suas últimas exposições. Amanhã recordarei mais detalhes sobre a sua vida e obra. A seguir recordo uma entrevista dada ao JTM em 2011 e intitulada "O preservador de memórias em papel fotográfico"
"Macau - a ponte da China para a Lusofonia Global", foi uma das suas últimas exposições. Amanhã recordarei mais detalhes sobre a sua vida e obra. A seguir recordo uma entrevista dada ao JTM em 2011 e intitulada "O preservador de memórias em papel fotográfico"
Fotografa no mínimo entre três a cinco horas por dia. Solitário. A máquina faz parte do seu quotidiano há décadas. Já na altura em que o Governador Nobre de Carvalho tomou posse registava, no Palácio, os momentos da História. Na lente de Manuel Cardoso tudo cabe, desde que misture arte e técnica. Depois de em Janeiro ter inaugurado uma exposição que findou no mês seguinte, partilha ao JTM algumas das imagens que enquadram uma vida ligada às lides da fotografia. Um paixão que chegou aos tempos modernos.
Anda sozinho com toda a calma. Vai para o terreno tirar fotografias, volta a casa vê o resultado, se não gostou, por causa do ângulo, da exposição ou da luz, regressa para fazer a mesma coisa – duas, três, quatro, cinco ou dez vezes, se for necessário. Como uma paixão que não cessa. Um dia, Manuel Cardoso, estava no jardim do Mirabelle, em Salzburgo, com uma “paisagem muito bonita”, mas “infelizmente a hora certa já tinha passado”. O sol tinha espalhado muitos raios. “E agora?”, pensou. Não havia nada a fazer se não arranjar outro espaço de tempo perfeito para fotografar. “No ano seguinte, na mesma data, [mas] duas horas antes estava lá. No mesmo dia duas horas antes, porque sabia que na altura do nascer do sol é que era o momento mais bonito”.
Ao mesmo tempo que recorda aquele episódio, levanta-se e encaminha-nos. “É que às vezes o contra-luz dá coisas lindíssimas. Vai verificar como o contra-luz é bonito”, diz e observa no Jardim de Lou Lim Ioc os pelinhos do pé da folha que nem sempre são visíveis a quem vagueia. É disto que também vive, de um olhar que não pára quieto, que repara, absorve a realidade para uma imagem, em qualquer latitude. Manuel Cardoso é assim quase puramente fotografia. E não é de agora. Já muitas épocas correram, muitos ventos varreram Macau, e a máquina não lhe sai das mãos. As milhares de imagens que captou são uma espécie de rolo gigante que revela a cidade (escondida). No papel fotográfico cabe-lhe tudo com arte e técnica – flores, as cenas do quotidiano, as gentes da terra e da tradição, os gatos.
O gosto pela fotografia surgiu ainda nos tempos de escola. Tornou-se amigo de um fotógrafo. Tinha 17 ou 18 anos e nunca mais parou, já o cabelo desponta grisalho. Ainda se lembra da primeira máquina uma Pentax, das que já nem existe. Aprendeu dentro e fora de paredes. Começou a traçar o conhecimento no antigo Foto Maxim, quando ainda era um espaço propício aos retratos. Teve lá dois grandes mestres, mas não se ficava por aqui o menino que nasceu em Macau. Já no término da década de 60 viria ao território um fotógrafo da “National Geographic” com quem aprenderia uns truques. “Eu era um rapazote que andava com a mala dele de borla para aprender os truques da fotografia. Foi um grande mestre meu. Ensinou-me muita coisa, porque também não recebi um centavo dele”, conta Manuel Cardoso. E como é que aprendia? “Andava a ver como é que ele trabalhava. A minha aprendizagem não foi ele ensinar-me directamente. Disse-me: ‘agora vais ver como é que eu faço, e através daquilo que vês um dia mais tarde hás-de perceber. E assim foi”, acrescentou. Isto tudo aconteceu quando ainda trabalhava no Turismo de Macau.
Cardoso avança e recua no tempo como se tivesse na mão um elástico que permite viajar em momentos diferentes desta terra. É quase impossível não juntar na mesma página as suas lentes e a história. Até quando o governador Nobre de Carvalho (1966-1974) “tomou posse já estava a fotografar para o Notícias de Macau e para a Gazeta”. Este mundo das figuras políticas voltar-lhe-ia a entrar no quotidiano várias vezes quando começou a trabalhar no Gabinete de Comunicação Social, após a sua criação. Nem sempre é fácil, mas aprendeu muito. E depois “tinha sempre uma coisa em mim: o chamado brio profissional. Era um fotógrafo incapaz de fazer uma reportagem e depois ver num jornal qualquer pessoa que fazia um trabalho melhor do que o meu; ficava logo pior do que estragado”, ri-se.
Manuel Cardoso preza muito o conhecimento. Chegou a ir para Portugal e tirar um curso de realizador de Televisão, na RTP, mas acabou por ser a fotografia o grande enquadramento da sua vida. “Para dizer a verdade o meu pai [português natural de Proença-a-Nova e casado com uma mulher nascida em Coloane] partiu-me cinco vezes a câmara escura antes de ser fotografo profissional (...) depois disse-lhe já ganho a vida com isto”, e foi-se desfazendo o receio. É que “ser fotógrafo naquelestempos era como ser músico ou pintor, era ser artista [pelo] que [pensavam que] não dava para ganhar a vida”, explicou. E foi de imagens que viveu por dentro e por fora. De tal maneira, que não se cansa de dizer, mesmo que soe a frase feita, “para se ser um bom fotógrafo é preciso ter paixão”. Já lho indicam há décadas os ossos do ofício.
Em Janeiro, Manuel Cardoso inaugurou uma exposição comemorativa do 11º aniversário da criação da RAEM. Falhámos a mostra, no antigo mercado da vila da Taipa, mas a sua generosidade trouxe até à mesa de pedra do jardim alguns dos exemplares do seu trabalho. “As fotografias eram sobre o ciclo de Lótus e a Ópera de Cantão”, prontifica-se a elucidar, acrescentando que a “história dos 11 anos da RAEM era um pretexto”. Em “Macau funciona assim”, lamenta. Para algumas das fotografias, o fotógrafo, que não perdeu a locomotiva das novas tecnologias, deixou-se também perder em técnicas de outrora. “Esta folha toda desfocada foi com a vaselina colocada na lente, é uma coisa já antiga, já esquecida, [mas] como estava a fazer um trabalho sobre a Flor de Lótus resolvi utilizar para ser um bocadinho diferente”, diz. E desengane-se quem pense que técnica velha não dá trabalho. “Tive de aprofundar muito em teoria, porque não é tão fácil como as pessoas pensam – que é só colocar a vaselina na lente e já está, não é bem assim”, ressalva. É preciso, por exemplo, “saber um pouco de física e depois vai-se experimentando. Há coisas que se podem fazer e outras não. Tem limites”, esclarece.
O mesmo acontece com as máquinas. Não é preciso um último modelo para se tirar boas fotografias. “Depois de tantas voltas resolvi utilizar a maquineta [uma qualquer de 3.000 patacas] e não é que dá resultado?! Seja qual for a máquina, desde que se faça o trabalho dentro dos seus limites tudo é possível”, assegura, dando como exemplo as fotografias que nos mostra. Agora é que voltou a comprar uma melhorzita, com a qual se prontifica para nos ajudar a tirar as fotografias. E, na verdade, um fotógrafo deve saber de física, matemática, química, meteorologia, salienta.
Nas lides da fotografia “é preciso ter muita técnica e arte”, insiste. E apesar de ser uma paixão que consome, o estado de apaixonado por si só não é suficiente para progredir. “Só gostando muito não se pode. A fotografia é como outra arte qualquer, a prática e a teoria vão sempre juntas”, reitera sublinhando que sem uma daquelas vertentes “chega-se a um certo patamar e fica-se parado”. Para não estagnar tentou sempre ler livros, procurar informar-se sobretudo na era das novas tecnologias e claro perder-se do tempo a fotografar horas diárias. “Agora na época digital – coisas de que eu estava fora do assunto – tive de aprender tudo de novo... quem tem bases tudo aprende”, foca o homem que já viu o seu trabalho condecorado com mérito.
Na linha das mudanças aproxima-se para conhecer mais um pouco e não despreza as novidades. “As novas tecnologias deram um grande avanço à fotografia sem dúvida. As coisas são mais fáceis, mais baratas, acessíveis e é possível fazer certos trabalhos em computador, que antigamente demorávamos dias a fazer”, ilustra. Mas rejeita que o computador substituta o trabalho que o esforço humano é capaz de produzir ao mover-se na realidade.Da fotografia em Macau considera que se tem desenvolvido, contudo, os traços poderiam ser melhores se houvesse mais estudos, atesta. A fotografia sempre “exige”. Já olhando para trás, depois de milhares de fotografias que também agrupa em álbuns na Internet, exposições cá e em Portugal, “o macaense, português ligado a Macau”, deixa nas mãos do futuro o legado. Se o muito que já fotografou contribuirá para a história de Macau? “O tempo o dirá não posso julgar esse aspecto”, afirma. Mas é um preservador de memórias, "evidentemente".
Artigo da autoria de Fátima Almeida publicado no JTM de 28-04-2011
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