quarta-feira, 5 de março de 2014

Tunas: Mário José Nogueira e Filomeno Rocha

Excertos da entrevista de Mário José Nogueira à revista Macau (Veiga Jardim)
O que é que o senhor sabe sobre a história das tunas em Macau? Já havia tunas antes da guerra do Pacífico?
 As tunas começaram em força depois de 1920 e foram morrendo a partir da década de 50.
Naquele tempo, naturalmente o senhor era criança, mas, mesmo assim, tem alguma lembrança de quantas tunas havia em ?
Que eu me lembre, havia em Macau cerca de 4 ou 5 tunas. Cada bairro formava a sua tuna. Era praticamente distribuído por freguesias: a freguesia de São Lázaro tinha a sua tuna...
...era como as bandas...
....as bandas eram outra coisa. Formadas por instrumentistas de sopro, os seus elementos eram polícias, fiscais da Câmara, etc.. Tocavam nos coretos do Jardim Vasco da Gama (já demolido), ao lado da Escola Luso-Chinesa e do Jardim de São Francisco, em frente ao Colégio Santa Rosa de Lima, a pouca distância do lugar onde hoje funciona uma biblioteca chinesa. Havia também um outro em Santo António, naquela praça em frente à Casa Garden.
 As tunas também se apresentavam nos coretos?
 Não. Os coretos eram utilizados quase exclusivamente pelas bandas. Para além das bandas oficiais, da PSP e do Município, havia, naquela altura, outras que eram constituídas por elementos civis, militares reformados ou semi-militarizados, os quais se apresentavam regularmente nestes espaços que há pouco citei. As tunas eram outra estória. Eram formadas por elementos civis, na sua maioria, que percorriam as ruas da cidade em marcha. Atrás, acompanhando, vinha um cortejo de pessoas fantasiadas de bobo, mascarados, etc.. Era uma coisa típica do Carnaval.
Mas também se apresentavam fora do Carnaval. Ou não?
De um modo geral a existência das tunas estava condicionada às comemorações do Carnaval. É claro que durante o resto do ano não ficávamos completamente inactivos. A cidade mudou muito. Antigamente realizavam-se enormes feiras, quermesses, festas religiosas e, muitas das vezes íamos lá tocar.
O senhor recorda-se das tunas que havia no seu tempo de rapaz?
Não de todas, mas posso citar algumas: Tuna Esperança, era a mais afamada e completa, com cerca de 30 elementos. Funcionou durante as décadas de 30 e 50, se a memória não me falha; anteriormente, entre as décadas de 20 e 30, existiu também a Tuna Águia, com cerca de 20 e tal músicos. Lembro-me também da Tuna Lyra.
(Neste ponto da conversa aproxima-se o sr. Filomeno da Rocha, também músico e remanescente dos bons tempos das tunas de Macau. É colega e amigo do professor Mário José Nogueira. Junta-se para nos ajudar, através de suas lembranças, a recontar um pouco dessa história.)
No total existiam umas 4 ou 5. Para além destas que já foram citadas, havia mais duas, uma em Santo António e outra na Rua Nova à Guia cujo nome, assim de repente, não consigo lembrar. Já la vão muitos anos...
Recordo-me que havia também a Tuna Lusitânia, que teve o seu período áureo nos anos 30 e 40. Nos anos 50 houve a Tuna Negro Rubro que durou perto de dez anos. Nos finais da década de 60, princípios de 70, foi fundada a antiga Tuna Macaense, que, no entanto, não tem nada a ver com o actual agrupamento que recebe o mesmo nome.
Como é que surgiam as tunas?
As tunas de Macau surgiram como imitação das tunas de Portugal. Praticamente foi a transposição de uma tradição. Mesmo cá eles eram constituídas exclusivamente por amadores, o que significa que a grande maioria tocava mesmo de ouvido... Eram compostas indistintamente por macaenses e metropolitanos. Por outro lado, Macau possui várias freguesias: São Lourenço, Santo António, São Lázaro, Sé, Nossa Senhora de Fátima e, normalmente, cada uma delas formava a sua própria tuna. No entanto, não quero dizer com isso que não houvesse elementos de uma determinada freguesia que participassem simultaneamente de uma tuna "rival".
Então havia alguma rivalidade...
...exactamente pelo facto de todos os anos eles inventarem uma marcha nova. Esta marcha era estreada nas vésperas do Carnaval e as tunas disputavam quem é que tinha a marcha mais bonita. Havia um compositor muito afamado chamado Alderico Viana que escreveu algumas marchas que obtiveram um grande sucesso naquele tempo. Muitas vezes as tunas encontravam-se nas ruas, entrecruzavam as bandeiras, em modo de cumprimento, faziam uma contradança e, em seguida, cada uma seguia o seu caminho, sem hostilidades.
O senhor já disse que, para além do Carnaval, as tunas também se apresentavam em outras circunstâncias. Que tipo de repertório era então executado?
As tunas, de um modo geral, tinham um repertório muito vasto. Eu pessoalmente cheguei, durante toda a minha vida, a tocar de memória mais de 150 melodias, entre slows, marchas, rumbas, valsas, etc.. No Carnaval inevitavelmente tocávamos marchinhas. Nos bailes fechados tocávamos música de dança. Mas deixe-me contar-lhe a história: dois meses antes do Carnaval, reuníamo-nos duas vezes por semana para ensaiar. É bom frisar que nenhum de nós recebia um avo. Mesmo os uniformes e as fantasias eram comprados com dinheiro do nosso próprio bolso. Aqueles que não podiam, recorriam ao presidente da tuna que, de um modo geral, era alguém com mais recursos e que garantia este tipo de despesas. Também era através do presidente que os clubes e as pessoas em geral convidavam as tunas para participar dos bailes e festas. Havia em Macau diversos clubes que organizavam grandes bailes, durante os quatro dias do Carnaval. Estes eram o Clube Macau (no Largo de Sto. Agostinho), Clube Militar (no Jardim de São Francisco), Clube dos Sargentos (cujo verdadeiro nome era Clube Recreativo 1° de Junho, situado perto do mercado da Mitra). e o Clube MELCO (situado na Areia Preta. onde hoje é o Bairro Hip-On). Havia os bailes do Sábado Gordo e do Domingo de Carnaval. Na terça-feira havia o Carnaval dos Casados e na quarta-feira de cinzas praticamente já não havia mais nada. Éramos convidados para tocar no Clube Macau. durante um baile que começava às 9.30 da noite. A tuna saía da sua freguesia de origem e. tocando, marchava pela cidade até o clube, Muitas vezes fizemos longos percursos debaixo de chuva. desde o Tap-Seac até lá em cima. no Largo de Sto, Agostinho. Tinha horário para começar mas não tinha para acabar, Tocávamos até às 5 da manhã e depois ainda íamos à Novena de N.S.dos Passos, que normalmente coincidia com a época do Carnaval. Comíamos qualquer coisa - depois de já termos, durante a noite. comido não sei quantas vezes - e finalmente voltávamos para casa. Era divertido, mas muito cansativo.. .
Tuna Negro Rubro
Como eram os "assaltos" às casas?
Havia as casas das famílias de mais posses que. quase sempre eram escolhidas para os assaltos de carnaval. Entrávamos e tocávamos música de dança. O mais curioso disso tudo é que, de um modo geral. eles sempre tinham uma ceia previamente preparada para nos oferecer.
Mas era feito de surpresa ou combinado com antecedência? As pessoas não se assustavam com a chegada das tunas?
Conforme. Às vezes era absolutamente de surpresa e outras vezes era combinado com um elemento da família que queria fazer uma surpresa aos outros. Tinha muita graça mas, muitas vezes. já tocados pelo vinho. cometíamos pequenas imprudências. No entanto, as famílias tradicionais macaenses e metropolitanas que cá viviam já conheciam estas brincadeiras de modo que, mesmo quando estávamos mascarados, ninguém se assustava. Era uma coisa bastante familiar,
 A que factor (ou factores) atribui o senhor a diminuição de interesse pelas tunas?
 A grande crise económica que passámos após a II Guerra Mundial levou a que muitos macaenses deixassem a sua terra em favor de destinos como o Canadá, Estados Unidos, Brasil e Austrália. Para além disso, parece-me que a sociedade macaense ocidentalizada de antigamente tinha uma outra estrutura. Era composta maioritariamente por locais e metropolitanos. Os casamentos realizados entre macaenses. ou entre macaenses e metropolitanos, faziam com que as tradições se perpetuassem através das novas gerações, Mesmo aqueles casamentos realizados entre homens macaenses e mulheres chinesas mais ocidentalizadas não comprometeram as nossas tradições portuguesas. Havia um grande interesse pela cultura e pelas coisas que os antepassados fizeram. Em Macau, naquela altura, havia perto de 3 ou 4 mil militares, muitos dos quais se casaram com macaenses e ainda hoje aqui residem. Com o passar dos anos. e, mais tarde, com a revolução de 25 de Abril de 1974. aquelas centenas de militares que nos acostumamos a ver pelas ruas, desapareceram. Ficaram os macaenses e os chineses. O cenário da cidade mudou completamente. Com todas estas alterações, os macaenses acabaram por sofrer alguma influência deste convívio mais próximo com a comunidade chinesa, seja na língua, na culinária ou nos costumes.
Naqueles casamentos onde a componente chinesa é mais forte, as nossas tradições foram sendo esquecidas. dando lugar a usos e costumes que não são nossos.
Outro factor importante que também contribuiu de alguma forma para o declínio das tunas foi um decreto do governo que começou a vigorar depois da II Guerra, o qual proibia o uso de máscaras durante os festejos populares.
Com aquela confusão, fruto da rivalidade entre japoneses, comunistas e nacionalistas, era muito perigoso para a população civil que pessoas mascaradas transitassem pelas ruas.
Os músicos não se mascaravam, mas havia umas boas dezenas ou centenas de foliões que se fantasiavam e aos quais se poderia, eventualmente. misturar um grupo de agitadores pondo em risco a segurança das pessoas. Em Macau havia um carnaval de rua espontâneo e as tunas eram, de certa forma, o ponto alto destas festividades. Os sócios dos clubes juntavam-se ao grupo, durante a marcha. de modo que quando chegávamos ao fim do percurso a festa já estava bastante animada... 
Edital
Eduardo de Madureira Proença, capitão de cavalaria, Administrador do Concelho e Comissário de Polícia de Macau. Faço saber que, durante os dias do próximo Carnaval, é proibido, sob pena de desobediência aos mandados da autoridade, o seguinte:
A Exibição de danças, música, paródias e grupos carnavalescos, cujos directores não tenham obtido a necessária licença do Govêrno da Colónia, não podendo os mesmos solicitar, sob pretexto algum, esmolas ou dádivas; Atirar das casas, ruas e outros I ugares quaisquer cousas que possam molestar, sujar ou, por qualquer forma, incomodar as pessoas ou deteriorar as suas propriedades; A divagação de mascarados no bairro chinês;
A apresentação de mascarados com trajos ofensivos das crenças religiosas, da moral e dos bons costumes. Para conhecimento de todos e para que se não possa alegar ignorância, é êste edital, com a respectiva versão chinesa, publicado no Boletim Oficial desta colónia, e afixado nos lugares públicos do costume.
Administração do Concelho e Comissariado de Polícia em Macau, 8 de Janeiro de 1945
O Administrador do Concelho e Comissário de Polícia, Eduardo de Madureira Proença, capitão de cavalaria

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