Decorre a época do Carnaval decretado pela tradição, o carnaval de máscaras grotescas e de gargalhadas forçadas, o carnaval de duração efémera, o carnaval que foge assustado após três dias de folia, o carnaval que é como que uma válvula de escape para aqueles que, afivelando ao rosto uma máscara de seda ou papel, revelam as feições peculiares do seu carácter, dando largas à sua tendência natural que as convenções obrigam a esconder aos olhos estranhos, para poder aparecer com toda a liberdade na época do entrudo, sem responsabilidades nem desprestígio. A época do Carnaval permite tudo quanto é proibido pelo Carnaval da época. Que importa que senhoras que se dizem de educação esmerada tenham atitudes que não perdoam noutras, passado o entrudo? Tudo é engraçado, desde as conversas equívocas às brincadeiras ofensivas. Ninguém pode levar a mal, sem ser apodado de snob, todas as liberdades que se tomam durante estes dias, de tanta folia para uns mas que continuam sendo de penas e mágoas para outros. A Humanidade, vivendo constantemente escondida por detrás duma máscara imposta pelas convenções e pela praxe, descansa durante os dias do entrudo, pois que ninguém leva a sério os actos, ainda que maliciosos, praticados durantes estes dias.
É a época do Carnaval e as coisas tomam um colorido diferente. As verdades amargas que se não dizem normalmente, são propaladas em voz alta por máscaras espirituosas, dançando doidamente pelas salas, apontando a dedo os defeitos alheios e dando gargalhadas sonoras de mistura com conversas tendenciosas. Mas a época do Carnaval passa célere e não deixa senão uma lembrança muito vaga de quanto se disse e se fez. Porém o Carnaval da época, esse que preside a tantos actos sérios da vida, esse que domina até as nações e impera como déspota na Sociedade, esse jamais passará, descansa apenas durante três dias, porque o mundo teria de ser outro e bem outro para que ele desaparecesse completamente. O carnaval de todos os dias, o carnaval das relações de conveniência, o carnaval das mentiras ditas com serenidade, o carnaval da hipocrisia mascarada de virtude, do vício vestindo o hábito da santidade, da intriga e da inveja, o carnaval dos apertos de mão escondendo intenções reservadas, dos sorrisos a encobrir projectos maldosos, da honestidade a disfarçar ambições ilegais, enfim o carnaval que a época presente vive, esse é que é o verdadeiro carnaval. Olha-se em roda e o cortejo carnavalesco não tem fim. São nações que, falando da paz se preparam para uma guerra de extermínio. São estadistas que, professando o amor da humanidade, sacrificam a flor da mocidade a uma morte inútil, despovoando os lares e lançando neles o luto e dores espantosas com a perda de entes queridos. São homens que se dizem de bem, mas que zelam apenas os seus interesses, sacrificando em proveito próprio o seu semelhante. Há os que se apresentam como cordeiros inofensivos mas que são verdadeiras feras no seio das famílias incautas.
O carnaval de todos os dias, o carnaval de uma vida incompatível com a doutrina pregada, o carnaval das máscaras reluzentes de boa vontade, escondendo projectos criminosos, impera nesta época de mentiras e falsidades, de constantes afirmações feitas sem intenção recta. A época do carnaval não é senão uma pausa feita para tomar fôlego, para que o carnaval de todos os dias possa continuar sem interrupção forçada. E, no entanto, há quem queira abolir para sempre o entrudo, como se esse carnaval não fosse menos nocivo, menos mentiroso, menos equívoco do que o carnaval que se verifica nesta época tão prenhe de garantias em que ninguém acredita, mas que todos fazem, em que a Humanidade aceita por bom aquilo que sabe que de bom não tem senão as aparências, mas que não pode rejeitar porque lhe falecem coragem e forças. E o cortejo carnavalesco percorre os caminhos do tempo sorrindo em esgares horripilantes, cantando hinos à hipocrisia e dançando incansavelmente por entre olhares entristecidos daqueles que não consegue arrebanhar e que vão curvando a fronte sofredora às exigências desse monstro que mata nas almas inocentes a verdadeira virtude e sufoca os corações amorosos e ternos que assistem apavorados à grande luta travada entre o egoísmo e a generosidade sincera e verdadeira. A época do Carnaval não representa senão um período de tréguas para o Carnaval da época.
Texto (visado pela Censura) da autoria de Deolinda da Conceição publicado no jornal Notícias de Macau, a 23 de Fevereiro de 1952 (sábado).
Carnaval no Club de Macau (Teatro D. Pedro V) em 1948 |
O carnaval de todos os dias, o carnaval de uma vida incompatível com a doutrina pregada, o carnaval das máscaras reluzentes de boa vontade, escondendo projectos criminosos, impera nesta época de mentiras e falsidades, de constantes afirmações feitas sem intenção recta. A época do carnaval não é senão uma pausa feita para tomar fôlego, para que o carnaval de todos os dias possa continuar sem interrupção forçada. E, no entanto, há quem queira abolir para sempre o entrudo, como se esse carnaval não fosse menos nocivo, menos mentiroso, menos equívoco do que o carnaval que se verifica nesta época tão prenhe de garantias em que ninguém acredita, mas que todos fazem, em que a Humanidade aceita por bom aquilo que sabe que de bom não tem senão as aparências, mas que não pode rejeitar porque lhe falecem coragem e forças. E o cortejo carnavalesco percorre os caminhos do tempo sorrindo em esgares horripilantes, cantando hinos à hipocrisia e dançando incansavelmente por entre olhares entristecidos daqueles que não consegue arrebanhar e que vão curvando a fronte sofredora às exigências desse monstro que mata nas almas inocentes a verdadeira virtude e sufoca os corações amorosos e ternos que assistem apavorados à grande luta travada entre o egoísmo e a generosidade sincera e verdadeira. A época do Carnaval não representa senão um período de tréguas para o Carnaval da época.
Texto (visado pela Censura) da autoria de Deolinda da Conceição publicado no jornal Notícias de Macau, a 23 de Fevereiro de 1952 (sábado).
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