terça-feira, 17 de abril de 2012

Padre Manuel Teixeira, Silva Mendes e o mistério de um manuscrito

Neste ano de 2012, mais concretamente em Abril, evoca-se o centenário do nascimento do Padre Manuel Teixeira (15 de Abril de 1912, Freixo-de-Espada-à-Cinta – 15 de Setembro de 2003, Chaves), o que é um pretexto para lembrar a figura e para convocar a história do Território enquanto "ars inveniendi", esse processo lógico de criação de narrativas interculturais com um assinalável peso valorativo.
O valor do trabalho histórico e historiográfico, empreendido pelo Padre Teixeira ao longo de uma vida, não deixa ninguém indiferente, tal a sua magnitude e pluralismo temático. Dificilmente se lobriga um palmo da história de Macau onde ele não tenha tocado, salvo um documento, cerzido uma teoria, aventada uma hipótese, recolhido um testemunho ou valorizado o papel da Igreja. Sem esquecer que escreveu imensa Poesia, boa parte dela editada no ‘Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau’, onde refulgem temas místicos e apologéticos. Todos lamentamos que não tenha tido tempo e oportunidade para escrever as Memórias da sua vida em Macau, e das suas andanças em Singapura, muito embora tenha derramado na imprensa (por exemplo, no "Macau Hoje" ou na "Gazeta Macaense") inúmeros textos autobiográficos e memorialísticos.
Como tantos compatriotas, conheci e privei com o Padre Manuel Teixeira numa Macau de fim de século que já não existe, e dele guardo a memória de um vero embaixador cultural de Portugal, para além da estima pessoal e da admiração intelectual por uma obra ímpar. E a obra aí está, mais de cem volumes (muitos a carecer de reedição), alguns traduzidos para chinês, inglês ou japonês, centenas de estudos dispersos em revistas e milhares de artigos espalhados na imprensa (todos à espera de uma laboriosa inventariação a fazer por gente que ame o ofício), tudo dedicado a Macau e à presença dos portugueses no extremo oriente. De resto, é bem conhecida esta resposta do Padre Teixeira quando lhe perguntaram sobre o modo como gostaria de ser lembrado: "o homem é pó, a fama é fumo e o fim é cinza … só os meus livros permanecerão … e essa é a minha consolação !". E é verdade.
Gostaria de, muito ao de leve, comentar a forma como o Padre Teixeira tratou de alguns pormenores da biografia de Manuel da Silva Mendes, um dos mais categorizados intelectuais portugueses radicados em Macau, ainda Portugal era uma monarquia. Os seus ideais abertamente republicanos, a sua afeição ao socialismo libertário (publicou em 1896, "Socialismo Libertário ou Anarquismo", reeditado há poucos anos) e a sua ligação à filosofia taoista chinesa, cedo o deixaram indiferente e imune à tutela moral e religiosa exercida por alguns elementos mais interventivos do padroado português do oriente sobre a comunidade portuguesa. Esta hostilidade educada e cortês, mais céptica do que cínica, magistralmente descrita por Flaubert, não obstava a colaborações pontuais, para integrar comissões diocesanas de belas artes, a solicitação, por exemplo, do padre José da Costa Nunes, ou para colaborar em publicações dessa mesma área.
Manuel da Silva Mendes tinha aprontado um livro, "Macau Antigo", cujo manuscrito fora entregue, para ser composto, à Tipografia do Orfanato da Imaculada Conceição. A inesperada e prematura morte do autor fez com que o manuscrito ficasse esquecido, provavelmente até da própria família, legítima proprietária do documento. No importante livro, "Liceu de Macau"(publicado pela Direcção dos Serviços de Educação, cuja 3ª edição é de 1986), o Padre Manuel Teixeira traça a biografia de Manuel da Silva Mendes, porque ele tinha sido Professor e Reitor do Liceu. Aí é referido esse lamentável episódio da destruição do manuscrito, de um livro póstumo, "Macau Antigo", de Manuel da Silva Mendes, invocando-se o testemunho de Luís Gonzaga Gomes e dos autores materiais dessa mesma destruição, os padres salesianos que dirigiam a Tipografia do Orfanato da Imaculada Conceição, possivelmente aterrados com as heresias e com a expressão de um pensamento jacobino e maçónico. Dizia o Padre Teixeira "é que essas páginas dum homem que morreu sem sacramentos eram irreligiosas e ofensivas das instituições monásticas de Macau" e, ainda, afirmando com indignação, "essas páginas, se fossem publicadas, seriam não só um insulto à Igreja, mas também à memória de Silva Mendes, que em geral era equilibrado e moderado".
Nesses anos trinta, a par da lenta alvorada do Estado Novo, ainda se vivia na ressaca das perseguições religiosas da primeira república, pelo que o comentário do Padre Manuel Teixeira, umas dezenas de anos depois, ainda se assemelha a um ajuste de contas vindo lá do fundo da história. Ficamos a saber que a intolerância não se dissolve com o tempo, nem com a cultura. O manuscrito continha setenta páginas e foram destruídas sessenta e oito. O Padre Manuel cita abundantemente essas duas páginas remanescentes com um escusado acinte, pouco cristão de resto, chegando ao ponto de dizer que Austin Coates era um discípulo de Silva Mendes no respeitante às pretensas calúnias dirigidas aos franciscanos e às clarissas. E o que escreveu Manuel da Silva Mendes?: "quis, em primeiro lugar, rir-me um pouco, e também, em segundo abaixar alguns pontos, por me parecer mais conforme com a verdade, vista do século vinte, no geral superlativo de virtudes a que os antigos escritores elevaram tudo, todos os frades e todas as freiras". O comentário do Padre Teixeira é lacónico na sua rispidez moral: "pois bem; os Salesianos deram um golpe de misericórdia nesta tacanha pretensão".
Mas, a história não acaba assim. Uma pessoa não identificada, talvez um sacerdote salesiano desavindo com a ortodoxia interna, talvez um tipógrafo, leu o manuscrito na sua integralidade e, provavelmente devido ao prestígio intelectual e social de Manuel da Silva Mendes teve a intuição clara da polémica nascente e tomou a decisão de fazer, confidencialmente, uma cópia manuscrita. Previa a sua destruição, à revelia da família do autor, e estaria seguro de que esse texto era realmente importante para o delineamento do pensamento do seu autor. É crível que tenha sido um tipógrafo, fazendo jus a uma aura de ilustração e saber de que essa corporação merecidamente gozava. Imagine-se, agora, quem terá sido o destinatário desse documento? Nem mais nem menos do que um professor no Seminário de S. José, amigo do Padre Manuel Teixeira, de nome José Maria Braga, conhecido também como Jack Braga. Essa sorte poderia ter calhado a Charles Boxer, outra figura central no estudo da história de Macau.
Esse misterioso manuscrito não saiu de Macau, esteve sempre bem acondicionado na biblioteca particular de Jack Braga. O mistério continua. Jack Braga publicou tantos títulos, publicitou imensos documentos, este, porém, permaneceu intocável e inédito. Por outro lado, Jack Braga não teve a coragem de desvendar este segredo ao Padre Manuel Teixeira, de quem era amigo. A doação do manuscrito teria implicado um perpétuo sigilo, quanto à fonte e quanto à publicidade? O mistério terminou justamente após a alienação da Biblioteca de Jack Braga à National Library of Australia, cujo Catálogo tem o título "The Portuguese in Asia and the Far East: The Braga Collection in the National Library of Australia". O manuscrito aí repousa, com 69 páginas, disponível mediante microfilmagem.
Bem andaria o Arquivo Histórico de Macau em providenciar a sua aquisição, enriquecendo assim o seu fundo documental, e promovendo a sua edição. Este pequeno episódio não merece uma linha na biografia intelectual do Padre Manuel Teixeira, sequer belisca a sua grandeza, mas pode ilustrar como uma combatividade obsessiva redunda, invariavelmente, numa infeliz tautologia moral.
Neste ano em que se celebra o centenário do nascimento do Padre Manuel Teixeira, tomo a liberdade de sugerir à doutora Edith Silva, directora da Escola Portuguesa de Macau, que pondere a criação do "Prémio Padre Manuel Teixeira" destinado a galardoar o estudante melhor classificado na disciplina de História, honrando-se a memória e o legado de um homem que dedicou a sua vida e a sua inteligência a Macau.
Artigo de António Aresta publicado no JTM de 16-04-2012

2 comentários:

  1. Felizmente após um século, em 2014 todo esse mistério vai acabar, graças a este blogue e ao João Botas, um enorme agradecimento em nome de Manuel da Silva Mendes.
    Bem haja...

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    1. Eu tive varios manuscritos dele nas mãos. Teclei muitos, para o Jornal Macau Hoje. Ele Monsenhor era era especial para mim. Chamava-me a Menina dos Cabelos Bonitos. E pediu-me em casamento, e não aceitei.. Pena... Ou brincadeira dele nao aceitei. Mas era-mos Grandes Amigos.... Pena nao ter sabido da Morte dele a tempo... Pena e adoraria ter algum manuscrito dele.... Será que tenho essa Sorte??

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