No dobrar da primeira metade do século XIX o que restava do império ultramarino português vogava entre sentimentos redentoristas de uns e abatida descrença de outros. Portugal saído de três invasões francesas (1807-14) e de uma guerra civil (1828-1834) encontrava-se completamente exausto em todos os sentidos. Os cofres do estado estavam vazios, o país vivia a letras de crédito e o pessimismo imperava na política e na cultura.
A dívida externa era colossal. A situação dos dias de hoje, comparada com esses tempos, não seria mais do que a falta de pagamento de um mês de renda de casa e condomínio indevidos que poderiam ser pagos quando Deus quisesse. Nesse tempo, o investimento público e privado interno era praticamente inexistente. Restavam como pulmões económicos ainda que cronicamente “asmáticos” os proventos do Vinho do Porto das vinhas do Alto Douro (que os ingleses geriam e de que retiravam a maior parte dos lucros), os reduzidos têxteis da Covilhã e algumas indústrias de vidros e porcelanas de Sacavém e da Marinha Grande que despontavam e que, se mantinham a fortuna pessoal de alguns, eram claramente insuficientes para fazer sair Portugal, por inteiro, da crise profunda em que estava mergulhado. O resto do povo sobrevivia na miséria a cavar a magra terra.
O Exército estava reduzido à expressão mais simples. Quanto à Marinha, com meia dúzia de fragatas e corvetas, mal navegava para não gastar o dinheiro do orçamento disponível que não chegava sequer para pagar o concerto dos navios, quanto mais para patrulhar o ainda imenso império ultramarino português. Por isso, ficavam ancoradas no Tejo à espera de melhores dias, vogando de quando em vez até ao porto do Rio de Janeiro, do outro lado do Atlântico e vice-versa a fim de manter as aparências de um reino unido, como consagrado umas décadas antes entre Portugal e o Brasil, por tratado, visado, mas que para todos os efeitos não existia desde o momento em que foi assinado (se é que alguma vez chegou a estar em vigor de facto e de direito).
Nas bolsas de Londres e de Paris, os títulos do tesouro português valiam apenas o que os grandes especuladores da bolsa, como Mendizabal (o Soros de então e os Rotshild anglo americanos e igualmente especuladores internacionais) faziam crer que valiam. Ou seja, de facto, nada... Nesse contexto de crise e desespero, diga-se, Portugal não se encontrava sozinho. De facto a vizinha Espanha igualmente saída recentemente das mesmas e sucessivas crises (invasões francesas, e guerra civil, para além dos movimentos independentistas bolivarianos das Américas) encontrava-se em condições semelhantes.
Portugal tinha, por força de todas essas circunstâncias, políticas e económicas, perdido o Brasil. A Espanha, por seu turno e por semelhantes circunstâncias, perdera um continente inteiro, ou seja: - as Américas do centro e do Sul. Nesse paralelo não admira que entre os dois rivais ibéricos surgisse, nessa conjuntura de “desgraça”, um certo sentimento de solidariedade. Salvar os dois impérios ultramarinos sempre desavindos desde o “Tratado de Tordesilhas” contra a crescente supremacia das restantes potências europeias que chegavam, bem mais de dois séculos tardios à corrida global: – Inglaterra, França, Alemanha e Holanda - já não contando com os modernos Estados Unidos da América do Norte (EUA) que entravam na liça como hodiernosconquistadores (Estes ainda que apostassem na força das armas, como os outros, mas diferentemente entendiam que os exércitos e as marinhas não eram mais do que suportes pragmáticos para fazer valer negócios e extrair lucros do comércio que, no século XIX, tudo movimentava e a tudo se começava a sobrepor) parecia ser imperativo.
Nesse contexto a tal solidariedade ibérica poderia ser uma solução? Foi assim que, então, se colocou a possibilidade do Iberismo. Uma eventual federação entre Portugal e a Espanha que salvasse os interesses do Portugal ultramarino a Leste do tratado de 7 de Junho de 1494 (o tal de Tordesilhas). Uma proposta que se no Extremo Oriente faria todo o sentido em Portugal e Espanha pouco faria como se viria a verificar (falei deste assunto em artigos anteriores aqui no “JTM”). Foi nesse ambiente datado que os defensores dos passados imperiais comuns e de sebastianismos inconsequentes, manobraram em Lisboa e Madrid no sentido de sair da depressão com um passo resoluto para a China.
Perdido o Ocidente, e periclitante o Oriente, a China poderia ser uma saída airosa e de futuro. Principalmente para Espanha que o único pé que tinha no Levante eram as Filipinas. O objectivo táctico de Lisboa, em eventual consonância com Madrid (ainda que duvidosa) seria o de enviar para o outro lado do mundo, as tais fragatas e corvetas que descansavam no Tejo à espera de reparo decente. Isto, claro, depois de armadas, municiadas e completadas com o embarque de companhias de infantaria devidamente preparadas para iniciarem uma campanha que se destinaria a desembarcar em Macau com fardas e clarins, tambores; engenharia, apoio de artilharia de campanha, estabelecimento de bivaques e em seguida conquistar toda a ilha de Sheong Sam (onde Macau se situa). Politicamente a operação afigurava-se fácil para quem nela queria acreditar. O exército chinês como era sabido (através dos despachos dos correspondentes dos jornais europeus sedeados na China e dos relatórios dos governadores de Macau e dos oficiais de “inteligência” da Marinha, era evidentemente antiquado e não teria força para se opor a duas centenas de fuzileiros armados com armas de repetição, obuses e morteiros capazes de disparar em pouco minutos rajadas de chumbo e dezenas de granadas explosivas que destruiriam qualquer forte medieval que se lhe opusesse, como eram os que rodeavam a colónia portuguesa e defendiam a “Boca do Tigre”, embocadura do Rio das Pérolas. A Espanha faria o mesmo, como de facto fez (embora com um atraso de quase seis anos) enviando para o arquipélago filipino, igualmente, o melhor que tinha em termos de poderio naval consubstanciado no primeiro navio de guerra a vapor e casco de ferro sob o comando do almirante José Malcampo Monje. E certo é que assim foi.
A facção redentorista portuguesa enviou para Macau as jóias da sua marinha, ou seja a “Corveta Íris” e a “Fragata D. Maria II”. Só que desígnios políticos mal sustentados raramente surtem efeitos e foi o que aconteceu. Os redentoristas certos de que a China se encontrava na ultima das depressões da sua história esqueceram-se de que na conjuntura global do tempo, as únicas forças militares credíveis eram as das grandes potências e Portugal estava longe de se encontrar entre elas, tal como a Espanha. Mas esta constatação é apenas um parêntesis. O que aconteceu a seguir foi que, depois da luz verde política de enviar expedição militar para Macau, cumprir os traçados do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Lisboa em consonância com Madrid se revelou missão impossível. O comandante da Corveta “Íris” ancorada no Rio de Janeiro, recebidas as ordens para rumar para a China fez o que pode, mas depois de ter zarpado e a poucas milhas de rumo não teve mais do que reconhecer a impossibilidade de continuar por deficiências técnicas. O navio não estava, de todo, em condições de se fazer ao mar para tão longa distância. Por isso não houve remédio senão o de “dar à ré” e rumar de novo ao socorro do porto das ilhas brasileiras de S. Paulo para reparações porque estava a meter água. Perante todos esses contratempos a “Íris” acabaria por chegar a Macau muito fora do calendário da missão que lhe estava destinado, tal como a “Corveta D. João II” mandada zarpar de Goa com uma companhia de “cipaios”, mas que, igualmente, não chegou a fazer junção em tempo útil.
Quanto à soberana fragata “D. Maria II”, partida de Lisboa, a viagem decorreu sem incidentes e no tempo previsto até arribar a Macau onde ancorou no porto da Taipa, mais, ou menos no local onde actualmente se encontra a embocadura da “Ponte de Sai Wan”. A tripulação da “D. Maria II” que vinha preparada para a guerra manteve-se no interior do navio desembarcando apenas alguns oficiais encarregados de levar despachos ao Governador e meia dúzia de doentes que careciam de tratamento. O resto da marinhagem permaneceu a bordo. Subitamente porém sem que nada o fizesse prever no dia 29 de Outubro de 1850, dia de “mornaça” como se diz no calão da marinha e quando se celebrava o aniversário da rainha que dava nome à imponente embarcação o Mundo explodiu com a fragata. O fragor foi tão forte que os vidros das janelas das casas da Baía da Praia Grande em Macau, do outro lado do canal, a mais de dois quilómetros de distância, se estilhaçaram. O imponente navio de velas alçadas soçobrou em minutos. Em torno dele, igualmente se repercutiu o desastre.
Uma fragata francesa, pela força da explosão, perdeu todo o velame e registou entre a tripulação mortos e feridos. Um brigue inglês que ao lado descarregava ópio sofreu, igualmente, um número indeterminado de vítimas em quantos marinheiros se encontravam no convés. Milagrosamente a corveta americana ”Marion” que se encontrava ainda mais perto do que os outros, como por milagre, quase nada sofreu e foi a primeira a enviar socorro, ainda que já nada houvesse a socorrer. Estava tudo perdido e reduzido a tábuas fumegantes e informes que boiavam nas águas. Nem sequer cadáveres havia a recuperar.
Mas o pior de perdas em vidas foi o que se registou entre homens e mulheres dos inúmeros juncos e tancares que, nesses tempos constituam uma espécie de mercado flutuante que girava em torno dos grandes e inúmeros navios que ancoravam na Taipa. Morreram todos, ou quase todos, nas pequenas embarcações que manobravam na feira permanente que era o Porto da Taipa nesse tempo. De entre esses o número de mortos e feridos nunca se soube ao certo, nem ficaram registados oficialmente. Para todos os efeitos eram anónimos carentes de cédula de identidade, mas terão sido o dobro dos perecidos na fragata e nos outros navios estrangeiros que a rodeavam. Ao todo, cálculos feitos, sem estatísticas, o número de vítimas mortais terá ascendido a mais de meio milhar.
Diz-se que o atentado foi inspirado pela “Sociedade dos Rios e dos Lagos”, uma “tríade” cujos iniciados eram, essencialmente, militares do exército da China e que teriam aliciado numa das várias tabernas do “ Bairro do Monte” (adjacente ao que é hoje conhecida como “Rua das Mariazinhas”) um dos tripulantes da “D. Maria II” para a fazer explodir. Se foi assim o aliciado terá sido precursor, em mais de duzentos anos dos terroristas suicidas de que estamos habituados a ouvir falar nos telejornais dos dias de hoje. O suspeito era um primeiro grumete, fiel da pólvora, alcoólico e conhecido por relapso em matéria de disciplina militar, moral e cívica. Segundo relatórios oficiais, no dia seguinte a ter sido castigado por mais um acto de desobediência, perante toda a tripulação da Fragata, terá descido ao porão e posto fogo ao paiol. Morreu no acto e por isso o inquérito que se sucedeu ficou privado de uma testemunha (ou réu) essencial, para contar a verdadeira história. Os outros pereceram todos no desastre.
Neste contexto de mistérios atrás de mistérios acresce ainda um outro que vale a pena transcrever dos jornais portugueses da época e é o seguinte: - “pela mala chegada em Outubro (a Macau) recebeu um dos oficiais da fragata o falecido e de todos lastimado tenente Luís Maria Bordalo (oficial da tripulação), uma carta de Lisboa de seu irmão, em que lhe dizia que naquela capital corria a notícia, de ter voado com uma explosão a “Fragata D. Maria II” carta que por esta singularidade o dito oficial mostrou a alguns dos seus camaradas, e hoje se acha em Macau o cavalheiro que a escreveu, que é o actual secretário do Governo (Francisco Bordalo), que plenamente confirma o facto”.
Na verdade é bem extraordinário falar-se em Lisboa de um sucesso que nada tem de comum e que só daí a dois meses se viria a verificar, de facto, a 3.600 léguas de Lisboa”. Que estranha e ominosa missiva!...
A catástrofe custou a vida a 191 membros da tripulação da Fragata. Os poucos que se salvaram foram 36 tripulantes que se encontravam na cidade. Uns por doença, internados no Hospital Militar Conde de S. Rafael, outros de licença e outros ainda em serviço de estafeta. Também o filho, criança, do comandante da “D. Maria II”, Francisco de Assis e Silva (que igualmente pereceu no desastre) e viajava a bordo, se salvou pelo facto de ter ido, a terra, singularmente, por sugestão, do próprio marinheiro a quem foi atribuído o atentado. Porque razão o comandante terá dado ouvidos a um dos menos graduados e mais indesejáveis dos seus tripulantes acedendo a desembarcar o filho? Outra interrogação insondável a somar a um episódio que permanece desde então rodeado das mais negras sombras. Creio que o mistério da explosão da mais imponente fragata portuguesa do século XIX e a verdade do drama nunca será verdadeiramente esclarecida a não ser nos romances que o irmão do malogrado tenente Bordalo (Francisco Maria Bordalo) deixou escritos e que jazem, mais ou menos ignotos no pó das estantes da Biblioteca Nacional de Lisboa e na Torre do Tombo e mal constam da história da literatura portuguesa. Creio que neste caso a verdade nunca virá a ser conhecida mas apenas a nossa imaginação poderá deixar campo a quem queira pegar no tema e fazer dele uma novela baseada em factos autênticos, como se diz, nos filmes de ficção ou nas telenovelas.
A dívida externa era colossal. A situação dos dias de hoje, comparada com esses tempos, não seria mais do que a falta de pagamento de um mês de renda de casa e condomínio indevidos que poderiam ser pagos quando Deus quisesse. Nesse tempo, o investimento público e privado interno era praticamente inexistente. Restavam como pulmões económicos ainda que cronicamente “asmáticos” os proventos do Vinho do Porto das vinhas do Alto Douro (que os ingleses geriam e de que retiravam a maior parte dos lucros), os reduzidos têxteis da Covilhã e algumas indústrias de vidros e porcelanas de Sacavém e da Marinha Grande que despontavam e que, se mantinham a fortuna pessoal de alguns, eram claramente insuficientes para fazer sair Portugal, por inteiro, da crise profunda em que estava mergulhado. O resto do povo sobrevivia na miséria a cavar a magra terra.
O Exército estava reduzido à expressão mais simples. Quanto à Marinha, com meia dúzia de fragatas e corvetas, mal navegava para não gastar o dinheiro do orçamento disponível que não chegava sequer para pagar o concerto dos navios, quanto mais para patrulhar o ainda imenso império ultramarino português. Por isso, ficavam ancoradas no Tejo à espera de melhores dias, vogando de quando em vez até ao porto do Rio de Janeiro, do outro lado do Atlântico e vice-versa a fim de manter as aparências de um reino unido, como consagrado umas décadas antes entre Portugal e o Brasil, por tratado, visado, mas que para todos os efeitos não existia desde o momento em que foi assinado (se é que alguma vez chegou a estar em vigor de facto e de direito).
Nas bolsas de Londres e de Paris, os títulos do tesouro português valiam apenas o que os grandes especuladores da bolsa, como Mendizabal (o Soros de então e os Rotshild anglo americanos e igualmente especuladores internacionais) faziam crer que valiam. Ou seja, de facto, nada... Nesse contexto de crise e desespero, diga-se, Portugal não se encontrava sozinho. De facto a vizinha Espanha igualmente saída recentemente das mesmas e sucessivas crises (invasões francesas, e guerra civil, para além dos movimentos independentistas bolivarianos das Américas) encontrava-se em condições semelhantes.
Portugal tinha, por força de todas essas circunstâncias, políticas e económicas, perdido o Brasil. A Espanha, por seu turno e por semelhantes circunstâncias, perdera um continente inteiro, ou seja: - as Américas do centro e do Sul. Nesse paralelo não admira que entre os dois rivais ibéricos surgisse, nessa conjuntura de “desgraça”, um certo sentimento de solidariedade. Salvar os dois impérios ultramarinos sempre desavindos desde o “Tratado de Tordesilhas” contra a crescente supremacia das restantes potências europeias que chegavam, bem mais de dois séculos tardios à corrida global: – Inglaterra, França, Alemanha e Holanda - já não contando com os modernos Estados Unidos da América do Norte (EUA) que entravam na liça como hodiernosconquistadores (Estes ainda que apostassem na força das armas, como os outros, mas diferentemente entendiam que os exércitos e as marinhas não eram mais do que suportes pragmáticos para fazer valer negócios e extrair lucros do comércio que, no século XIX, tudo movimentava e a tudo se começava a sobrepor) parecia ser imperativo.
Nesse contexto a tal solidariedade ibérica poderia ser uma solução? Foi assim que, então, se colocou a possibilidade do Iberismo. Uma eventual federação entre Portugal e a Espanha que salvasse os interesses do Portugal ultramarino a Leste do tratado de 7 de Junho de 1494 (o tal de Tordesilhas). Uma proposta que se no Extremo Oriente faria todo o sentido em Portugal e Espanha pouco faria como se viria a verificar (falei deste assunto em artigos anteriores aqui no “JTM”). Foi nesse ambiente datado que os defensores dos passados imperiais comuns e de sebastianismos inconsequentes, manobraram em Lisboa e Madrid no sentido de sair da depressão com um passo resoluto para a China.
Perdido o Ocidente, e periclitante o Oriente, a China poderia ser uma saída airosa e de futuro. Principalmente para Espanha que o único pé que tinha no Levante eram as Filipinas. O objectivo táctico de Lisboa, em eventual consonância com Madrid (ainda que duvidosa) seria o de enviar para o outro lado do mundo, as tais fragatas e corvetas que descansavam no Tejo à espera de reparo decente. Isto, claro, depois de armadas, municiadas e completadas com o embarque de companhias de infantaria devidamente preparadas para iniciarem uma campanha que se destinaria a desembarcar em Macau com fardas e clarins, tambores; engenharia, apoio de artilharia de campanha, estabelecimento de bivaques e em seguida conquistar toda a ilha de Sheong Sam (onde Macau se situa). Politicamente a operação afigurava-se fácil para quem nela queria acreditar. O exército chinês como era sabido (através dos despachos dos correspondentes dos jornais europeus sedeados na China e dos relatórios dos governadores de Macau e dos oficiais de “inteligência” da Marinha, era evidentemente antiquado e não teria força para se opor a duas centenas de fuzileiros armados com armas de repetição, obuses e morteiros capazes de disparar em pouco minutos rajadas de chumbo e dezenas de granadas explosivas que destruiriam qualquer forte medieval que se lhe opusesse, como eram os que rodeavam a colónia portuguesa e defendiam a “Boca do Tigre”, embocadura do Rio das Pérolas. A Espanha faria o mesmo, como de facto fez (embora com um atraso de quase seis anos) enviando para o arquipélago filipino, igualmente, o melhor que tinha em termos de poderio naval consubstanciado no primeiro navio de guerra a vapor e casco de ferro sob o comando do almirante José Malcampo Monje. E certo é que assim foi.
A facção redentorista portuguesa enviou para Macau as jóias da sua marinha, ou seja a “Corveta Íris” e a “Fragata D. Maria II”. Só que desígnios políticos mal sustentados raramente surtem efeitos e foi o que aconteceu. Os redentoristas certos de que a China se encontrava na ultima das depressões da sua história esqueceram-se de que na conjuntura global do tempo, as únicas forças militares credíveis eram as das grandes potências e Portugal estava longe de se encontrar entre elas, tal como a Espanha. Mas esta constatação é apenas um parêntesis. O que aconteceu a seguir foi que, depois da luz verde política de enviar expedição militar para Macau, cumprir os traçados do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Lisboa em consonância com Madrid se revelou missão impossível. O comandante da Corveta “Íris” ancorada no Rio de Janeiro, recebidas as ordens para rumar para a China fez o que pode, mas depois de ter zarpado e a poucas milhas de rumo não teve mais do que reconhecer a impossibilidade de continuar por deficiências técnicas. O navio não estava, de todo, em condições de se fazer ao mar para tão longa distância. Por isso não houve remédio senão o de “dar à ré” e rumar de novo ao socorro do porto das ilhas brasileiras de S. Paulo para reparações porque estava a meter água. Perante todos esses contratempos a “Íris” acabaria por chegar a Macau muito fora do calendário da missão que lhe estava destinado, tal como a “Corveta D. João II” mandada zarpar de Goa com uma companhia de “cipaios”, mas que, igualmente, não chegou a fazer junção em tempo útil.
Monumento de homenagem às vítimas existente na Taipa. foto de João Tavares |
Uma fragata francesa, pela força da explosão, perdeu todo o velame e registou entre a tripulação mortos e feridos. Um brigue inglês que ao lado descarregava ópio sofreu, igualmente, um número indeterminado de vítimas em quantos marinheiros se encontravam no convés. Milagrosamente a corveta americana ”Marion” que se encontrava ainda mais perto do que os outros, como por milagre, quase nada sofreu e foi a primeira a enviar socorro, ainda que já nada houvesse a socorrer. Estava tudo perdido e reduzido a tábuas fumegantes e informes que boiavam nas águas. Nem sequer cadáveres havia a recuperar.
Mas o pior de perdas em vidas foi o que se registou entre homens e mulheres dos inúmeros juncos e tancares que, nesses tempos constituam uma espécie de mercado flutuante que girava em torno dos grandes e inúmeros navios que ancoravam na Taipa. Morreram todos, ou quase todos, nas pequenas embarcações que manobravam na feira permanente que era o Porto da Taipa nesse tempo. De entre esses o número de mortos e feridos nunca se soube ao certo, nem ficaram registados oficialmente. Para todos os efeitos eram anónimos carentes de cédula de identidade, mas terão sido o dobro dos perecidos na fragata e nos outros navios estrangeiros que a rodeavam. Ao todo, cálculos feitos, sem estatísticas, o número de vítimas mortais terá ascendido a mais de meio milhar.
Diz-se que o atentado foi inspirado pela “Sociedade dos Rios e dos Lagos”, uma “tríade” cujos iniciados eram, essencialmente, militares do exército da China e que teriam aliciado numa das várias tabernas do “ Bairro do Monte” (adjacente ao que é hoje conhecida como “Rua das Mariazinhas”) um dos tripulantes da “D. Maria II” para a fazer explodir. Se foi assim o aliciado terá sido precursor, em mais de duzentos anos dos terroristas suicidas de que estamos habituados a ouvir falar nos telejornais dos dias de hoje. O suspeito era um primeiro grumete, fiel da pólvora, alcoólico e conhecido por relapso em matéria de disciplina militar, moral e cívica. Segundo relatórios oficiais, no dia seguinte a ter sido castigado por mais um acto de desobediência, perante toda a tripulação da Fragata, terá descido ao porão e posto fogo ao paiol. Morreu no acto e por isso o inquérito que se sucedeu ficou privado de uma testemunha (ou réu) essencial, para contar a verdadeira história. Os outros pereceram todos no desastre.
Neste contexto de mistérios atrás de mistérios acresce ainda um outro que vale a pena transcrever dos jornais portugueses da época e é o seguinte: - “pela mala chegada em Outubro (a Macau) recebeu um dos oficiais da fragata o falecido e de todos lastimado tenente Luís Maria Bordalo (oficial da tripulação), uma carta de Lisboa de seu irmão, em que lhe dizia que naquela capital corria a notícia, de ter voado com uma explosão a “Fragata D. Maria II” carta que por esta singularidade o dito oficial mostrou a alguns dos seus camaradas, e hoje se acha em Macau o cavalheiro que a escreveu, que é o actual secretário do Governo (Francisco Bordalo), que plenamente confirma o facto”.
Na verdade é bem extraordinário falar-se em Lisboa de um sucesso que nada tem de comum e que só daí a dois meses se viria a verificar, de facto, a 3.600 léguas de Lisboa”. Que estranha e ominosa missiva!...
A catástrofe custou a vida a 191 membros da tripulação da Fragata. Os poucos que se salvaram foram 36 tripulantes que se encontravam na cidade. Uns por doença, internados no Hospital Militar Conde de S. Rafael, outros de licença e outros ainda em serviço de estafeta. Também o filho, criança, do comandante da “D. Maria II”, Francisco de Assis e Silva (que igualmente pereceu no desastre) e viajava a bordo, se salvou pelo facto de ter ido, a terra, singularmente, por sugestão, do próprio marinheiro a quem foi atribuído o atentado. Porque razão o comandante terá dado ouvidos a um dos menos graduados e mais indesejáveis dos seus tripulantes acedendo a desembarcar o filho? Outra interrogação insondável a somar a um episódio que permanece desde então rodeado das mais negras sombras. Creio que o mistério da explosão da mais imponente fragata portuguesa do século XIX e a verdade do drama nunca será verdadeiramente esclarecida a não ser nos romances que o irmão do malogrado tenente Bordalo (Francisco Maria Bordalo) deixou escritos e que jazem, mais ou menos ignotos no pó das estantes da Biblioteca Nacional de Lisboa e na Torre do Tombo e mal constam da história da literatura portuguesa. Creio que neste caso a verdade nunca virá a ser conhecida mas apenas a nossa imaginação poderá deixar campo a quem queira pegar no tema e fazer dele uma novela baseada em factos autênticos, como se diz, nos filmes de ficção ou nas telenovelas.
Artigo da autoria de João Guedes publicado no JTM de 01-03-2011
Nota: no blog existem outros post's sobre o tema que já serviu de inspiração a livros/romances como "Sansão na Vingança" de Francisco Maria Bordalo.
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