São dois marcos do centro da cidade. Com 70 anos de história, a relojoaria Meng Kei e a tabacaria da senhora
Lai vão fechar portas no final do mês, depois do proprietário ter vendido o
espaço a uma empresa de Hong Kong. Restam as memórias de duas lojas que dividem
um espaço apertado, mas que se enche de gente diariamente. Ali foram criadas
quatro crianças por uma mulher que cruzou fronteiras e chegou a Macau por destino.
A conversa é interrompida por clientes – turistas de mochila, homens de fato
que procuram gás para o isqueiro prateado ou famílias perdidas no centro da
cidade – e balança entre as memórias de crianças que dormiam em caixas cheias de
volumes de tabaco quando o fornecedor chegava carregado antes do ano Novo
Chinês. Leong Fong Hei ou “senhora Lai”, como é conhecida, trabalha há 58 anos
na tabacaria que divide um espaço apertado com uma relojoaria. Ali é também a
sua casa. Sempre o será, mesmo quando a 31 de Dezembro o negócio fechar as
portas e uma empresa de Hong Kong abrir uma nova loja, minguando a história das
ruas. Lai também fala com os braços de tão habituada a receber quem chega,
mas a conversa volta a parar. Agora porque uma menina irrompe pela loja e lhe
toca na mão, lhe manda um beijo e só volta a desaparecer depois de um sorriso.
“A geração mais nova vai ter saudades minhas. Vão chegar aqui e não me vão
encontrar”, lamenta enquanto regressa à pequena cozinha para preparar o
almoço.
E não se imagina como depois de um corredor fininho - que obriga os
corpos a adelgaçarem-se a partir das pontas dos pés para dar passagem - houve
espaço para criar quatro filhos com a família do marido. “Os rapazes dormiam lá
em cima e as minhas filhas aqui em baixo comigo. Fiquei viúva oito anos depois
do casamento”, recorda-nos.
Foram os laços do matrimónio a desencadear esta história. E Lai nunca perdeu as forças. Quando se debruça sobre o balcão às vezes ainda se vê um retrato da juventude. “Quando cheguei, aos 18 anos, a cidade era mais pobre e não tinha muitas oportunidades. Primeiro ajudei como doméstica. Para os emigrantes não era fácil”, descreve. “Também trabalhei numa fábrica de fósforos e depois quando os comerciantes de Hong Kong chegaram comecei no sector têxtil”.
Sete anos depois de adversidades deu o nó. “Nasci no Continente chinês e casei com um homem que trabalha aqui e vim viver com a família dele”, disse, sem saber que o seu nome ficaria escrito na história desta terra. Trabalhar fora de casa não era uma cenário comum para as mulheres. “Eram discriminadas. Até tinha alguns estudos para a época, tendo em conta que na altura a sociedade não deixava as mulheres estudarem para não serem mais inteligentes. Os maridos iriam ter medo de casar. Hoje com esta geração já é diferente”, conta, alargando a sua visão sobre a sociedade moderna. “Agora já há igualdade e se não correr bem podem divorciar-se”. Se lhe pedirmos para pensar no rumo da sua vida diz-nos logo: “tal como uma pessoa vem da América trabalhar aqui também eu vim da China. Era o meu destino vir para Macau”. E a crença mantém-se. “Toda a gente tem o seu destino”, afirma admirada quando perguntamos se acredita mesmo nas linhas que dizem ser o mundo a desenhar. Mesmo que não fossem as forças externas a traçar-lhe o caminho seria a pobreza. O instinto da sobrevivência. “Na altura, na China era complicado. Ou saía ou podia morrer”, desabafa.
Apesar das picadas do passado, a senhora Lai esboça sempre um sorriso até na hora de partir. Entre os armários que têm mais de um século entranha-se a vida, mas mais uma vez a senhora Lai resigna-se com o destino. E guarda a saudade. “Tenho de aceitar não é minha a propriedade, por isso não mando. E sei que não vou apanhar o autocarro para ver como transformaram esta loja”, refere. “Claro que vou ter saudades daqui, mas tenho de sair”, disse tentando conformar-se.
O aviso de que o proprietário iria vender a loja chegou ainda no Verão e a partir daí a história de dois negócios tradicionais foram postos em causa. “Não fiquei surpreendida que tivéssemos de sair daqui, porque há uma grande diferença já nesta rua - as lojas são vendidas e vemos marcas de luxo. Sabia que mais dia menos dia também nos ia acontecer a nós”. A relojoaria, cujo dono fala português, também terá de fechar as portas. As duas bancas ficam frente a frente a uma distância de três ou quatro passos. Quando os clientes entram quase não há espaço para caminhar. É assim desde há 70 anos, quando as duas famílias transformaram um antigo espaço de ópio em duas lojas com ambiente familiar. “Sinto mais pena pelas pessoas de Macau. Os moradores daqui vão sentir a nostalgia”, refere a filha da senhora Lai, que ajuda a mãe na loja depois de leccionar as suas aulas. Apesar do tempo que passa na loja ser agora pouco é ali que persistem os retratos de infância. “Morávamos aqui. Aliás, eu nasci aqui. Durante o Ano Novo Chinês os exportadores fechavam e por isso encomendávamos muita quantidade de produtos e como o espaço era pequeno tínhamos de dormir em cima das caixas... eram muitas”, lembra. Olhando para os móveis de madeira carregados de maços de tabaco, cachimbos, Lai não descreve apenas uma loja. “Este não é apenas um estabelecimento, mas um local de convívio. As pessoas vêm aqui porque já nos conhecem. Como é um espaço familiar os turistas também se sentem confortáveis para pedir informações sobre a cidade”, conta-nos a filha.
Ao longo dos anos, o Largo do Senado e as ruas adjacentes têm vindo a ser “roubadas” pelas grandes marcas. Malas de luxo ou jóias estão a formar grandes corredores, à medida que a história se vai apagando. Contra o lucro apenas os lamentos. “As pessoas sentem pena porque esta rua tem vindo a ser invadida pelas grandes empresas de Hong Kong e deixam pouco espaço para a tradição, para o que é original de Macau”, acrescenta. Segundo nos conta, o Instituto Cultural e o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais já mostraram interesse em recuperar o mobiliário antigo para depois ser preservado.
Foram os laços do matrimónio a desencadear esta história. E Lai nunca perdeu as forças. Quando se debruça sobre o balcão às vezes ainda se vê um retrato da juventude. “Quando cheguei, aos 18 anos, a cidade era mais pobre e não tinha muitas oportunidades. Primeiro ajudei como doméstica. Para os emigrantes não era fácil”, descreve. “Também trabalhei numa fábrica de fósforos e depois quando os comerciantes de Hong Kong chegaram comecei no sector têxtil”.
Sete anos depois de adversidades deu o nó. “Nasci no Continente chinês e casei com um homem que trabalha aqui e vim viver com a família dele”, disse, sem saber que o seu nome ficaria escrito na história desta terra. Trabalhar fora de casa não era uma cenário comum para as mulheres. “Eram discriminadas. Até tinha alguns estudos para a época, tendo em conta que na altura a sociedade não deixava as mulheres estudarem para não serem mais inteligentes. Os maridos iriam ter medo de casar. Hoje com esta geração já é diferente”, conta, alargando a sua visão sobre a sociedade moderna. “Agora já há igualdade e se não correr bem podem divorciar-se”. Se lhe pedirmos para pensar no rumo da sua vida diz-nos logo: “tal como uma pessoa vem da América trabalhar aqui também eu vim da China. Era o meu destino vir para Macau”. E a crença mantém-se. “Toda a gente tem o seu destino”, afirma admirada quando perguntamos se acredita mesmo nas linhas que dizem ser o mundo a desenhar. Mesmo que não fossem as forças externas a traçar-lhe o caminho seria a pobreza. O instinto da sobrevivência. “Na altura, na China era complicado. Ou saía ou podia morrer”, desabafa.
Apesar das picadas do passado, a senhora Lai esboça sempre um sorriso até na hora de partir. Entre os armários que têm mais de um século entranha-se a vida, mas mais uma vez a senhora Lai resigna-se com o destino. E guarda a saudade. “Tenho de aceitar não é minha a propriedade, por isso não mando. E sei que não vou apanhar o autocarro para ver como transformaram esta loja”, refere. “Claro que vou ter saudades daqui, mas tenho de sair”, disse tentando conformar-se.
O aviso de que o proprietário iria vender a loja chegou ainda no Verão e a partir daí a história de dois negócios tradicionais foram postos em causa. “Não fiquei surpreendida que tivéssemos de sair daqui, porque há uma grande diferença já nesta rua - as lojas são vendidas e vemos marcas de luxo. Sabia que mais dia menos dia também nos ia acontecer a nós”. A relojoaria, cujo dono fala português, também terá de fechar as portas. As duas bancas ficam frente a frente a uma distância de três ou quatro passos. Quando os clientes entram quase não há espaço para caminhar. É assim desde há 70 anos, quando as duas famílias transformaram um antigo espaço de ópio em duas lojas com ambiente familiar. “Sinto mais pena pelas pessoas de Macau. Os moradores daqui vão sentir a nostalgia”, refere a filha da senhora Lai, que ajuda a mãe na loja depois de leccionar as suas aulas. Apesar do tempo que passa na loja ser agora pouco é ali que persistem os retratos de infância. “Morávamos aqui. Aliás, eu nasci aqui. Durante o Ano Novo Chinês os exportadores fechavam e por isso encomendávamos muita quantidade de produtos e como o espaço era pequeno tínhamos de dormir em cima das caixas... eram muitas”, lembra. Olhando para os móveis de madeira carregados de maços de tabaco, cachimbos, Lai não descreve apenas uma loja. “Este não é apenas um estabelecimento, mas um local de convívio. As pessoas vêm aqui porque já nos conhecem. Como é um espaço familiar os turistas também se sentem confortáveis para pedir informações sobre a cidade”, conta-nos a filha.
Ao longo dos anos, o Largo do Senado e as ruas adjacentes têm vindo a ser “roubadas” pelas grandes marcas. Malas de luxo ou jóias estão a formar grandes corredores, à medida que a história se vai apagando. Contra o lucro apenas os lamentos. “As pessoas sentem pena porque esta rua tem vindo a ser invadida pelas grandes empresas de Hong Kong e deixam pouco espaço para a tradição, para o que é original de Macau”, acrescenta. Segundo nos conta, o Instituto Cultural e o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais já mostraram interesse em recuperar o mobiliário antigo para depois ser preservado.
Às 19h os clientes continuam a chegar.
Compram tabaco, garrafas de água, cartões ou apenas anseiam por simpatia. Na
banca dos relógios há quem peça pilhas, despertadores, daqueles que dificilmente
se encontram nas superfícies comerciais mais modernas, pedem sobretudo soluções
para que o tempo acompanhe as suas rotinas, para que os pulsos não falhem
atrasando a vida. Os donos da Meng Kei trabalham sem parar. Em
português, chinês e inglês. “Volte amanhã às 11h”, pede o senhor da Meng Kei a uma cliente que lhe
confia o relógio que parou de bater. Ali os ponteiros movem-se com alegria,
apesar dos rostos, sobretudo quando carregam uma lupa redonda, parecerem duros
de concentração. Entre as pessoas que chegam, os donos da Meng Kei preferem o silêncio,
guardar para si uma vida inteira atrás de um balcão que mais parece uma montra
de relíquias. Restam-nos as imagens e a inevitável certeza que o portão de ferro
não volta a ser corrido por aquelas mãos depois de 31 de Dezembro. A
movimentação não nos deixaria adivinhar que a loja estava à beira do fim. Só os
papéis, em chinês, informam que há descontos de 50 por cento porque aqueles
ponteiros não vão ter outra casa.
Depois de observarmos uma banca de relógios diversos, como se fossem peças raras em exposição, retomamos a conversa com a filha da senhora Lai. Esta é uma história comum, iniciada pelas famílias dos actuais arrendatários. “Na altura esta era uma casa de ópio e depois o Governo não permitia que isso acontecesse e as nossas famílias juntaram-se para ocupar o espaço dividindo-o ao meio, metade para o tabaco e metade para os relógios”.
O último capítulo escrever-se-á em 26 dias. “Não vamos continuar o negócio. A minha mãe já está a ficar velha. Se não tivessem vendido a loja continuaria aqui e viria ajudá-la”, refere. E depois de ver a cidade crescer, este desfecho nem chegou a ser uma surpresa para a senhora Lai. E foi por isso que não permitiu aos filhos seguir as suas pisadas. “Não deixei que ficassem a trabalhar aqui. Sabia que este espaço não era nosso. Depois, um dia quando lhes pedissem para sair teriam de começar do zero, à procura de um novo emprego”. Quando fala dos rebentos olha-nos com alegria enquanto segura uma taça de arroz. Todos conseguiram voar, depois de ter lutado quase sozinha para os educar. E tal com os ponteiros a senhora Lai não para um segundo. Monta uma mesa na cozinha, arrasta bancos, serve chá. E leva-nos a crer que mais ninguém poderá conhecer tão bem os cantos daquela casa.
Depois de observarmos uma banca de relógios diversos, como se fossem peças raras em exposição, retomamos a conversa com a filha da senhora Lai. Esta é uma história comum, iniciada pelas famílias dos actuais arrendatários. “Na altura esta era uma casa de ópio e depois o Governo não permitia que isso acontecesse e as nossas famílias juntaram-se para ocupar o espaço dividindo-o ao meio, metade para o tabaco e metade para os relógios”.
O último capítulo escrever-se-á em 26 dias. “Não vamos continuar o negócio. A minha mãe já está a ficar velha. Se não tivessem vendido a loja continuaria aqui e viria ajudá-la”, refere. E depois de ver a cidade crescer, este desfecho nem chegou a ser uma surpresa para a senhora Lai. E foi por isso que não permitiu aos filhos seguir as suas pisadas. “Não deixei que ficassem a trabalhar aqui. Sabia que este espaço não era nosso. Depois, um dia quando lhes pedissem para sair teriam de começar do zero, à procura de um novo emprego”. Quando fala dos rebentos olha-nos com alegria enquanto segura uma taça de arroz. Todos conseguiram voar, depois de ter lutado quase sozinha para os educar. E tal com os ponteiros a senhora Lai não para um segundo. Monta uma mesa na cozinha, arrasta bancos, serve chá. E leva-nos a crer que mais ninguém poderá conhecer tão bem os cantos daquela casa.
Artigo de Fátima Almeida e Viviana Chan publicado no JTM de 5.12.2012
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