A
senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava vê-la logo de
manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos
vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar, embevecida, o presépio do
convento. Encontrava-a por fim à mesa. A senhora Tung viajava todos os anos da
Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo
na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou. Nesses dias, com as meninas em férias, o
refeitório do colégio parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu nos
sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença da senhora Tung, que
noutra ocasião passaria talvez despercebida (estirada a sala entre pátios de
cimento e plantas verdes), se tornar nessa altura notável.
Baixa,
seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a senhora Tung sorria
constantemente, falava inglês, gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As
criadas cortejavam-na nos corredores, preparavam-lhe pratos especiais,
levavam-lhe chá ao quarto. Além de ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica
e distribuía moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.
Nessa
noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não lhes permitia comer
connosco): a directora, a subdirectora e a mestra dos estudos. E muito
empertigada, segurando com ambas as mãos um tabuleiro de laca coberto com um
pano de seda, a senhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando
cerimoniosamente o presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora.
Eram bolos de farinha fina de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de
vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade no cabelo, a senhora Tung,
quando a superiora colocava o tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até
ao chão. Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas
espreitavam, curiosas.
Nem
no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a
senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao
jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que
noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês
formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung
balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha... a filha sabia. Talvez se
pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração
continuava apegado a antigas devoções... Todavia, vestira-se de gala para a
festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e
a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse.
Com
um sorriso meio complacente meio contrariado, a irmã Chen-Mou desconversava,
passando a bandeja dos bolos à superiora, que separava uns tantos para o
convento. Os restantes comê-los-iamos nós, ao fim da Missa do Galo, com
chocolate quente.
O
chocolate era a esperada surpresa da directora. A senhora Tung chamava-lhe, em
ar de gracejo, «chá de Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três
freiras ao refeitório do colégio para trocarem connosco o beijo da paz e nos
oferecerem a tigela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de
mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-franciscana, sempre
atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante, como quem
cumprisse um dever, e saía atrás delas.
Ficávamos,
assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À luz das velas olorosas do
centro de mesa, os seus olhos eram dois riscos tremulantes. Sorríamos.
Finalmente, o reposteiro ao fundo da sala apartava-se. Uma das criadas entrava,
silenciosa. Servia-se vinho de arroz. Creio
que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibidas no colégio e que
chegava ali por portas travessas. O certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a
acompanhar os bolos de sésamo, no grande e desertorefeitório, na noite de
Natal. O
vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas aos olhos. Quanto
à senhora Tung, saboreava-o devagar, molhando nele o bolo, e, como mal provara
o «chá de Paris», bebia dois cálices. Entretanto, Aldegundes, a criada macaense
mais antiga do colégio, aparecia com as especialidades da terra: aluares,
fartes e coscorões, dizendo que aluá era o colchão do Minino Jesus, farte
almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês para a senhora Tung, que achava
isto enternecedor e gratificavaa velha generosamente. Quando
por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob uma lua branca,
espantada, anunciadora do Inverno para a madrugada, a senhora Tung abria-se em
confidências. A menina sabia... ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a
subdirectora do colégio ―, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da
Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora
ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à
sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova
esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha
daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.
Parava
a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E
as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha.
Maria Ondina Braga leccionou no Liceu no início da década de 1960 |
...
E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo
tempo... Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a
sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê
então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres
onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos
lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à
da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na
estação própria.
Retomávamos
a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às
dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de
assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da
criada macaísta. Já
em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a
insenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia
de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas. Depois,
timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a deusa. O Menino Jesus
era de marfim. A Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo
de altura, trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua. Os olhos da
senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas
palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer
aquilo. A filha asseverava que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda,
por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha ? Eu já sentia
frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A
senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas.
Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de
certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por
causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal
com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de
qualquer jeito, não me acreditaria.
Maria Ondina Braga, A China Fica ao Lado, Lisboa, Panorama, 1968
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