domingo, 21 de janeiro de 2024

"Extincta a escravidão"

Em 1761 Portugal foi pioneiro na abolição do tráfico de escravos na metrópole, declarando libertos de forros os escravos que entrassem em Portugal. Era o primeiro passo para a abolição da escravatura o que só veio a acontecer, por decreto de 1869 que abolia a escravatura em todo o território português.
Na prática essa abolição demoraria muito mais tempo.
Em Macau, curiosamente, houve legislação para a abolição da escravatura mesmo antes de isso ter ocorrido em Portugal (anterior a 1869).
Uma portaria do Ministério da Marinha (Diário do Governo n° 175) de 25 de Julho de 1856 dá providência para em Macau - em resposta a um pedido do governador - "se declarar d'esde já extincta de facto a escravidão" e "adquirindo assim a honra de ser a primeira das Possessões portuguesas onde fosse proclamado este grande acto de civilisação".
Assim, a 23 de Dezembro de 1856 seria abolida por decreto a escravidão na cidade de Macau e suas dependências. A importação de escravos por mar já fora proibida por decreto de 10 de Dezembro de 1836 e a importação de escravos por terra, foi proibida por decreto de 14 de Dezembro de 1854.
A importação de escravos para Macau remonta aos tempos do comércio com o Japão, logo no século 16, aliás uma das razões para a expulsão dos jesuítas em 1586. Marca das sociedades desses tempos, um pouco por todo o mundo, os escravos em Macau - de várias nacionalidades - vão ter papéis determinantes ao longo dos tempos no território, não só nos trabalho que desempenhavam nas casas dos mais abastados (eram sobretudo mulheres em tarefas domésticas), como também acompanhando os comerciantes nas viagens marítimas e na defesa militar, como ficou provado nas várias tentativas de invasão por parte dos holandeses, nomeadamente a derradeira em 1622.

Sobre este tema na Cronologia da História de Macau, de Beatriz Basto da Silva pode ler-se:
"Em 1747, D. Fr. Hilário de St.ª Rosa, numa representação ao Rei em 1747, censura os de Macau por trazerem “Timores furtados, enganados, comprados e trocados por fazendas, fazendo-os escravos...a gente de Macau (faz o mesmo) com as chinas suas naturais, comprando-as em pequenas por limitado preço (dizem que para as fazer cristãs) e depois de baptizadas e adultas as cativam e reputam suas escravas por 40 anos, sem lei que permita, comprando-as, vendendo-as e dando-lhes (ainda com ferros) como escravas, bárbaros castigos”. O prelado e os jesuítas são os campeões da liberdade individual e da libertação dos escravos que, apesar de grandes oposições, conseguem alcançar. Em 1758, o Rei proibe esta escravatura; o Senado apressa-se também a lançar pregões para que “nenhuma pessoa de qualquer condição pudesse vender Atais, sob pena de perderem os ditos Atais e Amuis, ou a valia destes e pagarem 100 taeis de pena (e todo o que foi impossibilitado para dita satisfação será castigado corporalmente como a este Senado lhe parecer), a qual quantia será aplicada para a reedificação das fortalezas desta cidade”. (Atai - rapaz; Amui - moça. Ambos de origem chinesa)"

No dia 15 de Novembro de 1755, o Bispo D. Bartolomeu escreve ao Conselho Ultramarino sobre o cativeiro dos chinas, mostrando a inconveniência de os macaenses comprarem crianças para serem suas escravas. O Rei D. José I respondeu em 20 de Março de 1758, declarando “barbara e nula” a referida escravatura.

No dia 20 de Março de 1758, o Rei de Portugal escreve ao Conde d’Ega, V.R. da Índia: “Por lei de 19-11-1624, publicada em Goa no mês d’Abril de 1625 e logo participada ao Ouvidor de Macau, foi determinado que os chins não podiam nem deviam ser escravos”. No entanto, acharam-se subterfúgios e pretextos, dizendo-se “que ficariam as crianças expostas ao perigo de as matarem os ladrões chins que as levam a dita Cidade de Macau para os não apanharem com os furtos nas mãos, no caso de não acharem compradores”; outro é de os pais as matarem eles mesmos para evitar as despesas de as criar; “como se a culpa alheia e particular dos que cometessem semelhantes barbaridades pudesse bastar para escusa de pecado próprio e igualmente bárbaro dos que, debaixo de semelhante pretexto, introduziam e estão sustentando uma escravidão geral, que ainda sendo de 40 anos, como se está praticando e convencionando ao tempo dos baptizados pelo chamado Pai dos Cristãos”. Para arrancar pela raiz este absurdo, o rei determina: “não haja mais escravidão de chins nem ainda temporal de certos anos; antes, pelo contrario, todos os referidos chins de um e outro sexo sejam livres”... ordenando debaixo das penas que por minha lei se acham estabelecidas contra os que fazem cárceres privados e roubam o alheio; que nenhuma pessoa, de qualquer estado, qualidade ou condição que seja, possa reter os referidos chins como escravos mais de 24 horas, contadas da mesma publicação desta. Anulando e cessando toda a jurisdição temporal, que até agora teve o sobredito intitulado “Pai dos Cristãos” e seus constituídos, para que seja exercida pelos meus Governadores, Ministros Officiais, cada um na parte que pelos seus Regimentos lhes pertence”.

No dia 10 de Dezembro de 1836, Sá da Bandeira proclama a abolição da escravatura em todo o Território Português.

Dados sobre 1834 publicados aquando do recenseamento de 1897


Em 1817, por exemplo, a população portuguesa era composta por 4471 pessoas; destes, 1522 eram escravos. Em 1834 a "população de escravos" era composta por 1200 pessoas, a maioria mulheres.
Adolfo Loureiro escreve em 1884:
"No fim do seculo XVII esta população chegava a 19500 pessoas mas em 1821 não era de mais de 4600: homens livres, escravos e oriundos de todas as nações, incluindo os chins convertidos, sem contar 186 homens do batalhão, 19 freiras e 45 frades. Em 1830 esta população era avaliada em 4628 individuos, excluindo os militares e ecclesiasticos, sendo 1202 homens brancos, 2149 mulheres brancas, 350 escravos do genero masculino, 779 do feminino e mais 38 homens e 110 mulheres de differentes castas. Os portuguezes nascidos em Portugal ou nos seus dominios não passavam de 90."

Como se pode concluir esta "extinção" seria apenas formal já que na prática a situação pouco ou nada mudaria. Foram precisos muitos anos... 
Ao mesmo tempo, prosseguiu a actividade do chamado tráfico de cules (iniciada em 1851 e que de alguma forma pode ser classificada como uma forma de escravatura), algo que só sofreu sérias restrições em 1874. Depois desta data esse tráfico passou a ser feito sob a condição de "emigração voluntária".

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