O jornalista João Botas, autor de diversas obras sobre a história de Macau, diz ter descoberto um diário de uma norte-americana, esposa de um comerciante que vinha a Macau e à China com frequência. O acesso a uma versão dactilografada, com muitos anos, permite descobrir relatos de uma época em que o comércio fervilhava no sul da China
Chamava-se Sarah, acompanhou o marido, comerciante, nas inúmeras viagens que realizou para fazer negócios em Cantão e deixou um diário que hoje tem cerca de 200 anos. O jornalista João Botas, autor de diversos livros sobre a história de Macau, diz ter descoberto uma versão muito antiga, dactilografada, do documento, graças às constantes pesquisas que realiza para o blogue Macau Antigo. Trata-se, no relato que fez ao HM, de “um diário inédito”, sendo que, até à data, “se desconhece o paradeiro do documento original”.
“Depois de múltiplas verificações posso garantir que se trata de um relato verídico”, conta João Botas, que chegou ao contacto com descendentes de Sarah e do marido que não querem dar o nome. O jornalista espera vir a poder publicar este diário que se revela muito semelhante a tantos outros escritos deixados por estrangeiros, incluindo esposas de comerciantes franceses, ingleses ou americanos que passaram por Macau, graças ao comércio que se praticava na altura com a China.
João Botas diz mesmo que o diário de Sarah se revela semelhante aos escritos já divulgados e estudados de Rebecca Kinsman e Harriet Low, datados das primeiras décadas do século XIX, “mas com informação mais rica a vários níveis”.
Segundo o autor do blogue, este diário “foi escrito com o objectivo de ocupar os tempos livres”, pois o marido de Sarah “passava muito tempo em Cantão”. “Esta não era a primeira vez que viajava até Macau, mas foi a primeira vez que decidiu escrever um diário. Ao todo a viagem, ida e volta, durou 317 dias! Quase um ano. Só em navegação passaram cerca de 200 dias, ida e volta.”
“A estadia em Macau é de cerca de um mês, período em que, além dos passeios diários, eram frequentes as visitas às residências de outros estrangeiros, para beber chá, conversar, ouvir alguém tocar piano ou para participar em jantares mais formais.”
Sarah gostava ainda de ler, referindo, nas páginas do diário, “inúmeros livros, obras históricas de referência sobre a Ásia, o Japão ou a Índia”.Negócios florescentes
A época a que se remete o diário passa pelos anos em que a Companhia Britânica das Índias Orientais deixou de ter o exclusivo do comércio com a China e outras nações começaram a ter negócios no país, usando Macau como ponto de ligação. Era também a época dos cules, trabalhadores pouco qualificados da China que eram transportados quase como escravos para trabalhar na agricultura em diversos pontos do globo.
“A linguagem utilizada [no diário] é simples, mas o elevado número de pessoas mencionado obriga a muita pesquisa de contextualização, nomeadamente, sobre quem eram e o que faziam naquela época. É o que estou a fazer nesta altura, e está quase pronto”, relata João Botas, que diz estar em conversações com entidades públicas de Macau para a edição do livro.
Os escritos de Sarah permitem-nos “viajar até à Macau de meados do século XIX, com muitas descrições de espaços, ruas e edifícios, permitindo fazer o retrato da comunidade de estrangeiros ocidentais que viviam no território, que eram poucas dezenas” numa população que, à data, não tinha mais do que 35 mil pessoas, a maioria chineses, e com apenas 4.500 portugueses e macaenses.
“Como os estrangeiros ocidentais não podiam comprar propriedades no território, arrendavam casas aos portugueses e macaenses mais abastados. Esta era uma importante fonte de rendimentos numa altura em que já se fazia sentir algum declínio na actividade comercial fruto do surgimento de Hong Kong em 1842”, explica o jornalista.
Passear na ruaSarah escreveu sobre os passeios que realizou em Macau, um deles bem perto da fortaleza do Bom Parto, no sopé da Colina da Penha. “Desde que aqui cheguei tenho-me divertido muito. Todos os dias, às cinco e meia, saímos para passear. (…). À tarde fomos todos para a baía do Bispo*, um lugar lindo, com praia para caminhar e muitas conchas. (…) No domingo fui com eles à igreja. Confundimos a hora e só chegamos lá mais de meia hora depois do início do culto. O regresso da igreja para casa foi encantador já passava um pouco das seis da tarde. Esta cidade de Macau é um local encantador, repleto de cenários pitorescos. (…)”, lê-se, segundo tradução feita pelo próprio João Botas de um excerto do diário.
Sarah descreve ainda um outro passeio, feito numa segunda-feira, quando jantaram e tomaram chá “na casa da Sra. Nye”.
“(…) Levei a minha cadeira até à Praia porque as ruas são estreitas demais para uma carruagem. Fizemos um passeio bastante longo e agradável, conhecemos vários grupos que andavam a cavalo e duas ou três outras carruagens. (…)”, escreveu ainda a americana.
Não falta ainda um relato da Casa Garden, onde hoje funciona a sede da Fundação Oriente (FO), e a Gruta de Camões. “À tarde visitamos a Casa Garden. É de facto um local encantador – abundância de belas árvores que sombreiam os belos passeios sinuosos e é constante o encontro com imensas rochas, por vezes isoladas, outras vezes empilhadas umas sobre as outras. A gruta de Camões, poeta português, é um local de grande atracção. É um sítio curioso, composto por três rochas imensas – duas em pé, a vários metros de distância uma da outra, a terceira repousando imediatamente sobre a abertura, formando uma divisão fresca e protegida, aberta em cada extremidade. (…)” À data, a Casa Garden pertencia ao comendador Lourenço Marques que a arrendava aos comerciantes estrangeiros.
A americana descreve ainda no diário o ambiente de Cantão, cidade do sul da China. “Chegamos a Cantão por volta das cinco da manhã. (…) Depressa desembarcamos e fomos até à residência dos Parker. (…) Passamos três dias e três noites muito agradáveis na casa do médico. Saí para fazer compras em Cantão, mas apenas uma vez e fui com a Sra. Parker. Estas compras perderam para mim muito da novidade. Este ano foi muito desagradável por causa das multidões nas ruas que se preparavam para duas das suas festas religiosas – o ‘Festival das Lanternas’ e uma outra, de que não me lembro o nome, embora a tenha testemunhado no ano passado, quando estive em Cantão. (…)”
Segundo João Botas, a referência feita a Parker remete para Peter Parker, nascido em 1804 e falecido em 1888, médico e missionário dos EUA. Este chegou à China em 1834 onde deu a conhecer pela primeira vez as técnicas da medicina ocidental, incluindo a anestesia. Em 1838 criou um hospital ligado à oftamologia em Macau, onde viveu durante algum tempo.
Por sua vez, Harriet Colby Webster Parker era esposa de Peter Parker, tendo sido a primeira mulher ocidental a viver na China.
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