segunda-feira, 11 de junho de 2018

Tascas portuguesas em Macau

Tascas portuguesas em Macau – naquele tempo não havia fast food

A arte culinária é componente essencial da cultura de qualquer povo. Os portugueses que o digam: em cada recanto do mundo que percorremos, sempre levámos o incomparável sabor das nossas iguarias. Macau não constitui excepção a esta regra: há pouco mais de meio século, existiam aqui diversas casas de pasto, onde se provava a típica dobrada com feijão branco ou a suculenta caldeirada à nossa moda. Tudo regado com bom vinho de cepa lusa… O progresso, porém, veio alterar este panorama. Com o rodar dos tempos, as casas de pasto foram fechando para dar lugar aos incaracterísticos especializados em ‘fast food’. 
Hoje, praticamente só A Vencedora subsiste como derradeiro exemplo das velhas tascas portuguesas de Macau. É certo que os pratos confeccionados fora das paragens lusitanas pecam muitas vezes por falta de casticismo. Ou porque não existem condimentos apropriados, ou pelas carências provocadas pela distância, ou por excesso de improvisação dos cozinheiros, a verdade é que o gosto pela mestiçagem que sempre revelámos noutros domínios também se estendeu à gastronomia. De qualquer modo, geralmente a assimilação tem a virtude de fazer sobressair, ainda mais, a saudade dos mais variados petiscos – prova insofismável de que através do repasto também nos sentimos ligados ao torrão natal.
No caso específico de Macau, a culinária portuguesa foi desenvolvida não só pelos nossos compatriotas mas também pelos chineses que conviveram de perto com soldados e marinheiros, fazendo a sua aprendizagem nos ranchos e messes dos quartéis ou a bordo dos navios de guerra em missão de soberania. Nos alvores do século já havia diversas casas de pasto espalhadas pela cidade. Mas as que fizeram história concentravam-se, há cerca de 50 anos, na Rua do Campo ou suas imediações, como aconteceu com A Japonesa, nome que o seu proprietário registou por estar casado com uma filha do Império do Sol Nascente. Por essa altura, na mesma artéria, também abriram as portas a Casa do Povo e a Aurora Portuguesa - fundadas por Eugénio Jorge, que ainda mantém descendência no Território, embora nenhum dos filhos tivesse seguido a vocação do progenitor. Eugénio Jorge explorou igualmente o célebre Quiosque, que dispunha no andar térreo de um concorrido jogo de bilhar. Hoje, o Quiosque encontra-se no mesmo local – defronte do Centro Católico – mas foi transformado, há longos anos, em biblioteca chinesa. (...)
Ementas portuguesas fizeram igualmente fama no Restaurante Lisboa e, mais tarde, no Lusitano e no Kai San, fundado por um antigo miliciano na Travessa dos Anjos, onde se jogava a popular ‘laranjinha’, com as características do provinciano jogo da malha, mas jogado com bolas de madeira a tabelar numa bola mais pequena, chamada ‘carriça’. Este passatempo, muito vulgar nas antigas tascas portuguesas, também aqui já passou de moda. A Cecília, na Rua Pedro Nolasco da Silva, também se dedicava à confecção da nossa culinária, à semelhança de tantas outras casas de pasto que abriam e fechavam as portas consoante o fluxo do negócio. De propriedade de cidadãos chineses existiam, já no dealbar dos anos trinta, o Fat Siu Lau, na Rua da Felicidade, e A Vencedora, na Rua do Campo. Só estas duas acabaram por resistir à erosão dos tempos, chegando aos nossos dias. Mas o Fat Siu Lau veio a perder as características que o popularizaram até ao mais recôndito recanto de Portugal: a cozinha portuguesa de permeio com o pombo assado e o arroz ‘à Malo’ – distorção do nome de Mário pronunciado pelos empregados chineses, e que teve origem num dos seus mais assíduos clientes, Mário Morais Alves. 
Na verdade, só A Vencedora subsiste como casa de pasto, apesar de o ex-proprietário ter já entregue o negócio aos filhos. Foi o velho A Kuan, com o precioso auxílio de sua mulher, que fomentou o negócio legado por seu pai, negócio que resiste desde há 73 anos e que o tornou no mais popular poiso dos militares durante os períodos de licença. A Kuan, não só apresentava as ementas a preços módicos como também nos momentos de aflição monetária, auxiliava os habituais clientes a desenvencilhar-se dos seus problemas momentâneos.
Adamastor
Distante da maioria das casas de pasto, num ponto outrora pacato da cidade, existia o Adamastor, situado na Avenida Horta e Costa, a poucos metros do Mercado Vermelho. O proprietário, o chinês Lam Iu, baptizou a sua casa de comidas em homenagem ao vaso de guerra do mesmo nome, onde serviu como ajudante de cozinha e com tamanha dedicação que o comandante do navio o incorporou na guarnição, finda a comissão de serviço, durante a viagem de regresso a Lisboa. Depois de regressar a Macau, Lam Iu trabalhou no Palacete de Santa Sancha, ao tempo do Governador Tamagnini Barbosa, vindo anos depois a dedicar-se à exploração da cozinha portuguesa como ramo de negócio. Foi o Adamastor que em meados dos anos setenta viu entrar, como seu fortuito cliente, o filho de Tamagnini Barbosa, que, integrado na primeira romagem de saudade organizada pela Casa de Macau em Lisboa, aproveitou para dar um abraço ao velho cozinheiro após uma ausência de mais de trinta anos. Lam Iu nutria tanta admiração pelos vindouros da ocidental praia lusitana que em todas as suas refeições utilizava o azeite português. Nestes dias em que a ‘fast food’ se tornou moda citadina, do Adamastor só resta o imponente edifício duma instituição bancária.”

  1. Texto de Alberto Alecrim publicado na Revista Macau, Dezembro 1988

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