O comerciante Auguste Jeanneret-Oehl (1815-1891) nasceu em Neuchatel. Dedicava-se à relojoaria e foi numa altura em que a exportação destes produtos para a China estava em crescimento que rumou a Macau e Cantão em 1838 numa visita que se prolongou por vários anos até 1845. É um período deveras interessante já que nele ocorreu a primeira guerra do ópio.
As memórias de Auguste foram passados para o livro "Souvenirs du séjour d'un horloger neuchâtelois en Chine" ("Memórias da estadia de um relojoeiro de Neuchâtel na China") publicado em 1866. Uma das poucas ilustrações do livro é um desenho do pagode Whampoa. Aqui ficam alguns excertos do original e uma tradução/adaptação para português.
"A nossa viagem da Europa para a China tinha durado tanto tempo que estávamos felizes por finalmente chegar ao fim. A partir de agora, será tudo objecto de curiosidade, e o tancar em que navegamos foi o primeiro que nos intrigou. Era conduzida por três chinesas. Duas delas remavam à frente e a terceira na parte de trás dirigia o leme, transportando às costas numa cinta vermelha uma criança. Estas mulheres vivem nesta embarcação noite e dia, com bom ou mau tempo, pelo que esta residência flutuante tem tudo o que é indispensável (...). Apesar de vestidas com uma espécie de blusa em tela azul com mangas curtas sobre umas grandes calças do mesmo tecido, nas pernas nuas podem ver-se várias e bonitas braceletes. Os pés estavam cobertos apenas com sandálias. Uma tinha os cabelos entrançados, lisos, arranjados e apanhados na parte de trás da cabeça. As outras duas tinham chapéus pontiagudos de palha de largas bordas. (...) No cais vimos europeus totalmente vestidos de branco, protegendo-se do ardor do sol com guarda-sóis; outros tratavam-se ainda melhor, fazendo-se transportar em liteiras.
Macau está construída em forma de anfiteatro e, vista do porto, a cidade é muito bonita. Dois pequenos redutos protegem-na a este e a oeste, e fortalezas de uma certa importância dominam-na no topo de várias colinas. A sua principal rua, à beira-mar, forma uma semi-lua de casas com colunas, com varandas e terraços. Vista ao pormenor a cidade de Macau já não é tão bonita: a sua primeira linha é um bonito robe que mascara muitas deformidades. Ruas inteiras são compostas por habitações chinesas, outras são misturadas de portugueses, mas logo se percebe que estes são muito menos numerosos do que os primeiros e que Macau é muito mais chinesa do que portuguesa. (...)
As autoridades soberanas de Macau são representadas por um governador, um juiz, um vigário geral e um comandante. A cada ano o povo elege sete membros que os representam sob o nome de Senado que, por sua vez, elege um procurador que é o chefe da justiça, intermediário entre as autoridades portuguesas e chinesas. Estas últimas são representadas por um mandarim cujo poder é igual ao dos oficiais portugueses.
Encontrei nos meus papéis a lista das autoridades de Macau em 1842.
Governo: Adriano Acácio da Silva Pinto, governador; José Maria Rodrigues de Bastos, juiz; Pe. Cândido Gonçalves e Franco, vigário geral; João Teixeira de Lira, comandante.
Membros do Senado: João José Vieira e José Tomás de Aquino, juízes; Manuel Pereira, Alexandrino António de Melo e Lourenço Marques, vereadores; Francisco António Seabra, procurador; Manuel José Barbosa, tesoureiro.
Juízes de Paz: Cipriano A. Pacheco e José Simão dos Remédios.
A população chinesa de Macau era de cerca de 35.000 a 40.000 pessoas, enquanto os portugueses, quase inteiramente misturados de sangue malabar e chinês, era estimada em apenas 8.000. (...)
Como beleza natural, referiram-nos o jardim conhecido pelo nome de Patane onde Camões compôs em parte Os Lusíadas. Num rochedo perfurado vê-se o seu busto, junto do qual foram gravados os seguintes versos (...)
Entre os estrangeiros residentes em Macau, só os portugueses têm o direito de construir casa e os principais negociantes de Cantão arrendam algumas onde residem de tempos a tempos para descansar dos negócios ou para se juntarem às suas mulheres que não podem entrar em Cantão. (...) Fomos à (casa) do senhor Matheson, associado do tio do senhor Jardine, onde nos serviram um jantar. Existia ali um luxo completamente oriental misturado com tudo o que o conforto europeu pode oferecer de mais refinado. Cada um de nós tinha o seu criado para nos servir e é assim que se faz entre os comerciantes europeus na China.
Um tancar e um junco emMacau Pintura da autoria de Auguste Borget, 1837 (não incluída no livro referido) |
Macao est bâti en amphithéâtre et vue du port cette ville se présente très favorablement Deux petites re doutes la protégent à l est et à l ouest et des forts d une certaine importance la dominent de plusieurs côtés Sa principale rue la plus rapprochée de la mer forme une demi lune de maisons en partie à colonnes avec vé randas et terrasses Vu en détail Macao perd beau coup sa première ligne est une jolie robe qui masque bien des difformités Des rues entières sont composées de maisons chinoises d autres sont mêlées de portu gaises mais on s aperçoit bientôt que ces dernières sont moins nombreuses que les premières et que Macao est bien plus chinois que portugais. (...)
La population chinoise à Macao était d environ trente cinq à quarante mille âmes tandis que celle des Portugais presqu entièrement mêlée de sang malabar et chi nois n était évaluée qu à huit mille. (...)
Comme beauté naturelle on nous cita le jardin connu sous le nom de Patane où Camoëns composa en partie sa Lusiade Dans un rocher percé on y voit son buste. (...)
Parmi les étrangers résidant à Macao les Portugais seuls ont le droit de construire des maisons et les prin cipaux négociants de Canton en louaient quelques unes où ils venaient de temps à autre pour s y récréer de leurs travaux mercantiles ou pour y rejoindre leurs femmes qui alors ne pouvaient être admises à Canton. (...) nous allâmes dans celle de M Matheson associé de l'oncle de M Jardine où l on nous servit à dîner Il y avait dans cette maison un luxe tout oriental mêlé de tout ce que le confort européen peut offrir de plus raffiné. Chacun de nous avait son valet pour le servir ainsi que cela se pratique chez les négociants européens en Chine. (...)
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