sexta-feira, 9 de setembro de 2022

"Ainda me parece impossível que esteja na China"

No "Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1858" publicado em Lisboa no ano anterior, Alexandre Magno de Castilho reuniu 453 artigos e 99 gravuras.
Um dos artigos é assinado por José Feliciano de Castilho Junior, guarda-marinha do brigue Mondego, que chegou a Macau em 1856.
Castilho começa por explicar a origem do artigo: "O que passa a ler se são trechos de algumas cartas escriptas d aquella cidade por meu sobrinho José Feliciano de Castilho, filho de meu irmão de igual nome e que alli se acha como guarda marinha a bordo do brigue Mondego. Nada disso foi escripto para ser publicado releve se lhe pois a singeleza tão propria de sua curta idade."
Eis então o teor de algumas cartas de José Feliciano onde fala da paisagem, de uma ida ao teatro-china muito atribulada, das nhonhas, dos piratas, da qualidade de construção das casas, do comércio, do ópio, etc... O português é do início do século 19 mas consegue-se perceber perfeitamente.

"Ainda me parece impossivel que esteja na China. Na China não pode ser, é sonho! Mas que remedio senão acreditar se sempre que vou aquella terra alli fronteira me vejo rodeado d'aquellas carantonbas largas olhinhos de toupeira dentes alvissimos rostos de velha e enormes rabichos reaes ou postiços. Parece um carnaval permanente Tem me custado a conformar com a vista de tal gente e a entender-me com ella porém vou me amestrando e já me não enganão como nos primeiros dias. São de uma esperteza extraordinaria e de rara habilidade trabalhando em marfim primorosamente e por preços inacreditaveis.
Os inglezes têem aqui introduzido as suas fazendas de tal modo que é difficil encontrar louça da China por ser da ingleza que todas as lojas estão abundantemente sortidas. Assim mesmo ainda se vêem d aquellas riquissimas jarras de 4 o 5 pés de altura que na Europa tanto valor teem.
A cidade não é feia porém as ruas são quasi todas estreitissimas: aquellas em que os chins se achão estabelecidos distinguem-se por um nauseabundo cheiro de opio, camphora, etc ... estão sempre atulhadas de gente. É grande o movimento na cidade onde aliás se encontrão poucos europeus; a povoação de 20,000 almas é quasi toda chineza.
As nhônhas filhas da terra são em geral exquisitas. O seu modo de fallar assemelha se um tanto ao das mulheres do interior da provincia de S Paulo no Brasil mas é mais affectado tenho summa difficuldade em percebe-las. São muito escarnicadeiras uma das cousas que lhes dá mais no goto é o comprimento das nossas casacas porque se usão aqui abas de uma polegada. Ha um largo arborisado á borda do mar onde se reunem ás quintas e domingos e onde nós vamos para as vermos cortar nos nas abas e ouvirmos a musica do batalhão é o nosso Passeio Publico.
Os piratas já desappareceram. Quando eu esperava practicar actos de valor que dessem brado, quando eu me queria immortalisar é que elles me fogem. Queria ganhar uma condecoração e o posto de 1º Tenente ainda que fosse na cola de uma bala. Quem sabe se não anda em mim o embryao d'um Nelson!...
Fui ha poucos dias por curiosidade ao theatro chinez. A disposição macaqueia a dos nossos theatros mas toda a casa é de bambú. Tudo aquillo está em osso. As vistas não mudão e os actores em scena levão todo o tempo a dar guinchos e pinotes. Em honra da verdade confesso que os gatos lhes devem ter inveja. Apresentão se porém magnificamente vestidos. Talvez que seja muito bonito para quem entende a mim fez me somno O que alli se acha muito aperfeiçoado é o roubo. Houve sujeito a quem estando sentado furtaram os sapatos pelos intervallos do taboado e até a um tal Miranda tiraram do nariz os oculos d ouro sem elle sentir percebendo o apenas pela differença da vista. A policia anda vigilante mas o divertimento dos larapios é illudi la.
A cidade de Macáu está toda a desmoronar-se. Já cahiram 70 casas com as chuvas. É um precipicio n'estes tempos andar pelas ruas pois se corre perigo de ficar debaixo de algum muro. É tão má a construcção das casas que os habitantes se viram obrigados a requerer ao Governador para que o brigue não salvasse no dia 31 do passado, com medo de què viesse a terra o resto da cidade!"

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