"No dia 23 de março, de manhã, avistámos a chamada Pedra Branca, rochedo colossal isolado no meio do mar, e, navegando á vista della, proseguimos, até n'esse dia, pelo fim da tarde, darmos fundo no ancoradoiro do porto exterior, situado a és-sueste da cidade, e a que, sem attenção ao barbarismo do termo, chamam a rada de Macau. Bonito aspecto apresentava o porto, occupado por quatorze navios de alto bordo e de differentes nações, entre os quaes se notavam três de guerra americanos, uma fragata e um lugre de vapor, e uma corveta de vela.
A primeira belleza de Macau que observei foi a vista da Praia Grande, desfructada do ponto em que estavamos fundeados, a tres milhas de distancia. Uma extensa rua á beira-mar, com as frentes de magníficos predios ornando-lhe um dos lados, e com o outro a tocar na praia por um excellente paredão cortado por differentes caes, commodos e bem construidos, constitue o mais bello passeio da cidade, e orla a bonita curva da bahia. A fortaleza e quartel de S. Francisco, assente em penedos banhados das ondas, e do outro lado a do Bomporto, são os extremos d'aquella via aristocratica e elegante.
Praia Grande (ilustração não incluída no artigo) |
No sopé dos penedos sobre que se ergue o quartel de S. Francisco, e na extremidade léste da Praia Grande, um bonito passeio publico abre a sua porta á melhor sociedade de Macau, que de ordinario se reune alli ás tardes, principalmente nos domingos e quintas-feiras, em que a banda de musica do batalhão executa escolhidos trechos n'um elegante kiosko situado no centro d'aquelle logradoiro publico.
Desembarcando num dos caes da Praia Grande, por entre os europeus, trajando os nossos fatos usuaes, vê-se logo o china com o rabicho saindo-lhe de sob o gorro e pendendo-lhe sobre a cabaia, e começa-se a estudar aquelle typo, quasi geralmente reproduzido em todos os filhos do celeste imperio que habitam a cidade de Macau. Costumámo-nos a ver-nos constantemente rodeados d´aquellas figuras exoticas, e estranhámos a sua falta quando, saindo da China, aportámos a outra terra em que os não encontrámos. Eu, pela minha parte, já os conhecia, por ter visto a pequena colonia chineza que ha em Timor. Em toda a parte aquella gente conserva inalteraveis o seu typo e os seus habitos. É o povo china o que por excellencia possue uma individualidade de que não abdica, e que guarda incolume através de todas as vicissitudes.
Entre os palacios que occupam um dos extensos lados da Praia Grande avulta o do governo, habitação elegante e condigna da primeira auctoridade da provincia. Não te faço uma descripção minuciosa de Macau, não só porque para tal me não habilita a demora de quarenta dias que alli tive, mas porque pódes encontrar a disposição d'ella descripta em mais de um livro dos que andam nas mãos de todos. Só te direi que a cidade occupa toda uma pequena peninsula ligada á ilha de Hian-san por um isthmo que estabelece o limite do dominio portuguez na China. Além da cidade, são tambem actualmente sujeitas ao nosso governo as ilhas da Taipa, Ribeira da Prata(1), Colovan e Laichivan (2).
Já te levei á Praia Grande, onde travaste conhecimento com o typo chinez, se é que o não conhecias já pelo ter visto a bordo das lorchas que, com as suas velas de esteira, começam a encontrar-se pelo mar da China dias antes de chegarmos a Macau. Por uma das calçadas que sobem da Praia Grande, ou pelo campo de S. Francisco fóra, voltando á esquerda, vou agora levar-te á rua de Santo Agostinho, que é, sem contestação, o Chiado de Macau, titulo a que lhe dá direito a posse das mais luzidas e alindadas lojas (boticas lhes chamam os chins) da cidade. É alli que, dentro de vidraças, ao uso da Europa, tu vaes observar os mais perfeitos artefactos de seda, marfim, madreperola, porcellana, e filigrana de oiro e prata, que apparecem no mercado de Macau. (...)
Os chins mais relacionados com os portuguezes fallam o nosso idioma, modificado por terminações e pronuncias chinas, e por accepções translatas. Não é difficil entendel-os depois de pequeno uso de ouvir. É n'essa linguagem que elles denominam botica qualquer loja; botica de mèzinha as casas chinas em que se vendem as substancias medicamentosas de que elles usam nas suas enfermidades; e botica de mezinha christã as nossas pharmacias. Chamam christãos a todos os europeus indistinctamente.
Excerto de um artigo intitulado "Recordações de viagem, cartas ao meu amigo Xavier da Cunha" da autoria de João de Lacerda*" publicado no Archivo Pittoresco, semanario Illustrado, em 1867.
*João Cesário de Lacerda (1841-1903) foi médico naval, conselheiro, governador-geral da província de Cabo Verde, e director do hospital da Marinha.
Estudou na Escola Politécnica em Lisboa e depois na Escola Médico Cirúrgica de Lisboa, cujo curso terminou em 1865, aos 24 anos de idade. No verão de 1865 estava a bordo da corveta Sagres na esquadrilha comandada pelo visconde de Soares Franco, acompanhando o rei D. Luís e a rainha D. Maria Pia numa viagem a Inglaterra. Um temporal fez com que a viagem não passasse do porto de Vigo, dando-se o regresso a Lisboa. Em Outubro de 1865 embarcou na barca Martinho de Mello com destino a Macau e escala por Timor. Voltou a Portugal em 1866. É desta viagem que resulta o artigo de que publiquei o excerto acima.
(1) - Ilha da Lapa(2) - Lai Chi Vun, povoação da ilha de Coloane, no texto referida como Colovan.
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