Auguste Borget (1809-1877) iniciou em 1836 uma volta ao mundo, tendo vivido em Macau durante 8 meses entre 1838 e 1839. Regressou a França em 1840. Dois anos depois ilustrou o livro "La Chine et Les Chinois" de Honoré de Balzac numa edição dedicada ao rei Louis-Philippe que lhe viria a comprar um quadro intitulado "View of a Great Chinese Temple in Macao". Este livro inclui 9 desenhos de Macau com um texto do próprio Borget escrito em jeito de diário.
Em 1845 publicou "Fragments d'un voyage autour du monde" e ilustrou o livro "The open China".
Para além de desenhar e pintar, o francês , escrevia com detalhe os locais onde trabalhava. Nos próximos posts irei dar conta de algumas dessas passagens traduzidas para português, com os respectivos trabalhos artísticos de Borget. Em inglês podem ser lidos aqui.
Em 1845 publicou "Fragments d'un voyage autour du monde" e ilustrou o livro "The open China".
Para além de desenhar e pintar, o francês , escrevia com detalhe os locais onde trabalhava. Nos próximos posts irei dar conta de algumas dessas passagens traduzidas para português, com os respectivos trabalhos artísticos de Borget. Em inglês podem ser lidos aqui.
Macau, 3 de Janeiro de 1839
A Praia Grande é fechada ao sul por uma colina bastante alta, coroada de um convento rente às muralhas da cidade, as quais, descendo para o mar, chegam a uma fortaleza construída em cima do areal. Muitas vezes à noite, depois do trabalho, quando já não tenho tempo para empreender nenhuma longa excursão na península ou nas ilhas vizinhas, vou até ao terreiro do convento ou às colinas eriçadas de pedregulhos, que limitam a península a sudoeste; de todos os pontos o olhar mergulha em encantadoras paisagens; outras vezes desço do outro lado do forte e dirijo-me para uma uma baía arenosa em que se encontra uma fonte de água doce onde os chineses e os portugueses vêm lavar a roupa.
Dir-se-ia estarmos a cem léguas do lugar de que falava há bocadinho. Toda esta parte da península é deserta: praias áridas, rochas isoladas, aluimentos causados pelo mar, que deixam a nu os esqueletos das sepulturas situadas nestas colinas; não se encontra aí vivalma, tirando alguns pobres esfomeados - e aqui há muitos - que vêm procurar mariscos, que são muitas vezes o seu único alimento, e não se vêem casas. Às vezes, contudo, infelizes pescadores que, vendo que tudo lhes corre mal, se julgam vítimas de alguma fatalidade, vêm aqui implantar a sua cabana, esperando que, afastados de toda a concorrência, a sorte lhes seja mais favorável; mas, pobres deles, depois de terem lançado inutilmente as suas redes, afastam-se deste lugar maldito e são substituídos por outros que, do mesmo modo, se vão embora oito dias mais tarde. Triste pelo espectáculo desta miséria, volto os olhos para a cidade e encontro com prazer o convento, o forte e, na ponta este da Praia Grande, a Igreja e o Forte da Guia.
Vista geral de Macau; desenho a lápis de Auguste Borget |
Com frequência um dos juncos de guerra que rodeiam Macau vem lançar âncora nesta baía deserta; em vão tenho tentado ir a bordo para conhecer o interior destas embarcações, os aposentos do mandarim e o lugar onde dormem os marinheiros; nunca quiseram conceder-me este favor e muitas vezes nem consegui encontrar um marinheiro que me conduzisse a bordo. Tudo o que posso dizer é que sempre que o mandarim deixa o junco ou regressa, é saudado com três tiros de canhão, o navio é embandeirado e faz-se ouvir o tantã: são os únicos momentos de glória. Para enganar a sua inacção, saem muitas vezes sem necessidade; mas quando um navio de guerra, seja qual for a nação a que pertença, vem ancorar na enseada de Macau, então o rumor é grande; os juncos agitam-se e vão, digamos assim, inspeccioná-lo para fazerem o respectivo relatório; logo que chegam a certa distância, retiram-se descrevendo círculos à volta do inimigo; mas, mal este partiu, vão todos até três ou quatro léguas ao largo, disparando numerosos tiros de canhão e voltam três horas depois anunciando que o inimigo se retirou perante as forças invencíveis do Grande Imperador. (...)
Por tortuosas que sejam as ruas da cidade portuguesa, não nos podem dar ideia do inextrincável labirinto das que compõem a parte habitada pelos chineses, sobretudo do lado do Porto Interior; há aí tantos cantos e recantos que, apesar das minhas numerosas visitas a este bairro, ainda não sei reconhecer o caminho, eu que, ao fim de oito dias, andava sem hesitar nas ruas de Veneza. Mas é que aqui, as casas mudam de lugar como os homens; no sítio onde na véspera encontrara um beco, abre-se uma rua, e a rua onde antes havia passado torna-se um beco. Deste modo, quantos desenhos não perdi por ter deixado a sua conclusão para o dia seguinte. Quando se penetra na cidade chinesa, vão desaparecendo gradualmente as lojas elegantes, depois as lojas que se podem considerar apenas limpas e onde as mercadorias estão dispostas com ordem; as lajes da calçada são mais pequenas, muitas faltam, o que acaba por fazer poças aumentadas pelos porcos que nelas se vêm espojar, e sabe Deus que porcos! São esféricos e alcançam uma gordura fabulosa; o seu número incrível explica-se pela preferência que o povo dispensa à carne de porco; os ricos preferem o gato, o cão e, por vezes, o rato. Cada qual com seu gosto!
Por maior que seja a miséria destes bairros, não se compara à miséria das ruas aquáticas e das habitações empoleiradas em estacas. É impossível a um europeu, mesmo depois de ver, imaginar como é que tanta gente pode viver num espaço tão aperta-do. Ouvi-me bem e tentai fazer uma ideia justa do que vos vou contar. Os primeiros a chegar apoderaram-se do solo e aí puseram os seus barcos velhos, que já não podiam ir para a água; os que vieram depois cravaram fortes prumos de pau a toda a volta e assim fizeram um andar por cima dos outros, quer içando os barcos, quer, não os tendo, estabelecendo um sobrado, que rodearam de esteiras, e com cobertura semelhante. Outros vieram mais pobres ainda e, não tendo terreno, nem barco, nem sobrado, nem estacas, anicharam-se no intervalo deixado entre as duas outras habitações, suspenderam as suas camas de rede e, por pouco segura que seja tal moradia, chega contudo para uma família inteira. Por vezes uma só escada serve cinco ou seis habitações; não há nem direitos adquiridos para uns, nem sujeição para os outros; cada casa tem o seu pequeno terraço, de onde frequentemente pendem esteiras e trapos de toda a espécie, e que se atravessa sem a menor dificuldade. Subi a grande número deles; por toda a parte há flores, apesar da exiguidade do espaço, e senti um prazer infinito por encontrar alguma poesia no meio de tantas privações.
Por tortuosas que sejam as ruas da cidade portuguesa, não nos podem dar ideia do inextrincável labirinto das que compõem a parte habitada pelos chineses, sobretudo do lado do Porto Interior; há aí tantos cantos e recantos que, apesar das minhas numerosas visitas a este bairro, ainda não sei reconhecer o caminho, eu que, ao fim de oito dias, andava sem hesitar nas ruas de Veneza. Mas é que aqui, as casas mudam de lugar como os homens; no sítio onde na véspera encontrara um beco, abre-se uma rua, e a rua onde antes havia passado torna-se um beco. Deste modo, quantos desenhos não perdi por ter deixado a sua conclusão para o dia seguinte. Quando se penetra na cidade chinesa, vão desaparecendo gradualmente as lojas elegantes, depois as lojas que se podem considerar apenas limpas e onde as mercadorias estão dispostas com ordem; as lajes da calçada são mais pequenas, muitas faltam, o que acaba por fazer poças aumentadas pelos porcos que nelas se vêm espojar, e sabe Deus que porcos! São esféricos e alcançam uma gordura fabulosa; o seu número incrível explica-se pela preferência que o povo dispensa à carne de porco; os ricos preferem o gato, o cão e, por vezes, o rato. Cada qual com seu gosto!
Por maior que seja a miséria destes bairros, não se compara à miséria das ruas aquáticas e das habitações empoleiradas em estacas. É impossível a um europeu, mesmo depois de ver, imaginar como é que tanta gente pode viver num espaço tão aperta-do. Ouvi-me bem e tentai fazer uma ideia justa do que vos vou contar. Os primeiros a chegar apoderaram-se do solo e aí puseram os seus barcos velhos, que já não podiam ir para a água; os que vieram depois cravaram fortes prumos de pau a toda a volta e assim fizeram um andar por cima dos outros, quer içando os barcos, quer, não os tendo, estabelecendo um sobrado, que rodearam de esteiras, e com cobertura semelhante. Outros vieram mais pobres ainda e, não tendo terreno, nem barco, nem sobrado, nem estacas, anicharam-se no intervalo deixado entre as duas outras habitações, suspenderam as suas camas de rede e, por pouco segura que seja tal moradia, chega contudo para uma família inteira. Por vezes uma só escada serve cinco ou seis habitações; não há nem direitos adquiridos para uns, nem sujeição para os outros; cada casa tem o seu pequeno terraço, de onde frequentemente pendem esteiras e trapos de toda a espécie, e que se atravessa sem a menor dificuldade. Subi a grande número deles; por toda a parte há flores, apesar da exiguidade do espaço, e senti um prazer infinito por encontrar alguma poesia no meio de tantas privações.
Vivem tão amontoados que têm dificuldade em descobrir nos seus tugúrios lugar para o altar doméstico que, contudo, não falta em parte nenhuma; consiste muito simplesmente num pequeno armário com dois batentes, ocupado por uma estátua de cera ou de madeira, vestida do melhor que podem, e por todos os objectos que guarnecem os altares dos templos, mas em proporções reduzidíssimas; de manhã à noite oferece-se chá a esta divindade e acende-se-lhe uma velinha vermelha. Não julgueis, meu caro amigo, que a miséria desta pobre gente tenha influência na sua alegria; não, nestes redutos de cinco pés de altura e de largura, e do dobro de comprimento, todas as caras são alegres e, sempre que têm um momento livre, jogam aos dados. Ao menor grito que se oiça, todas as casas que parecem desertas se animam num instante, vê-se formigar inumerável quantidade de cabeças e perguntamo-nos de onde saem e como tanta gente se pode alojar em tão pouco espaço.
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