“O mais tocante que ouvi contar em Macau sobre a "Guerra do Pacifico" foi no asilo da Horta da Mitra (Hô Lan Ûn) onde se encontravam senhoras portuguesas de Xangai chegadas, pelo menos em dois surtos de imigração. A primeira chegada que nos foi relatada sucedeu por ocasião da invasão de Xangai pelos japoneses durante a guerra Sino-Japonesa. A segunda teve lugar durante a Guerra do Pacifico, estas senhoras recordavam atrocidades e histórias dramáticas que tinham vivido. (...) A comunidade luso-descendente de Macau deu abrigo a alguns destes refugiados e seus parentes. Outros não encontraram familiares próximos que pudessem recebe-los. Uma das senhoras tinha perdido o marido que vira ser morto nas ruas de Xangai e o seu único filho que desapareceu durante a fuga e do qual nunca mais teve notícias. Também em Macau não encontrou parentes próximos. (...)
Sugestão de leitura |
Relativamente ao impacto desta chegada de refugiados incluindo pessoas de várias nacionalidades, principalmente muitos chineses, calcula-se que fizeram subir a população de Macau a cerca de meio milhão, principalmente depois da ocupação de Hong Kong pelos japoneses. Foi esta pressão demográfica e bloqueamento de algumas vias de acesso pelas tropas japonesas que levou á grave crise económica que Macau sofreu com falta de viveres e uma feroz especulação de preços. É sobre esta especulação que se contavam histórias citando-se nomes, histórias que não se podem contar porque não devem ser contadas.
Morria-se de fome nas ruas todos os dias a polícia recolhia cadáveres de desconhecidos, havia pessoas apenas de passagem em trânsito para qualquer ponto onde pudessem continuar a viver. A maioria principalmente dos que tinham menos posses ficavam, morriam ou acabavam por ser presos por delitos menores. A falta de arroz que encarecia constantemente foi o que mais afectou a cidade. Contava-se que havia perto das ruínas de São Paulo um matadouro de carne humana. Eram atraídos jovens, principalmente mulheres, com sedutoras ofertas de trabalho. Eram ali mortas e a sua carne destinava-se a ser vendida. Verdade? Mito urbano? Um exemplo de uma história verdadeira é o pequeno texto "A mãe" que consta do meu livro “Aguarelas de Macau, cenas de rua, histórias de vida”.
Monsenhor Manuel Teixeira e o Professor Charles Boxer, que foi prisioneiro japonês em Hong Kong e a quem torturaram a mão direita deformando-a, contaram-nos algumas dessas histórias e penso que também as publicaram. A informação oral é imensa. Da nossa memória apagaram-se alguns pormenores talvez porque muitas cenas foram rejeitadas por dolorosas demais.
Do ponto de vista cultural o maior impacto de toda esta imigração fez-se sentir nos traços culturais das famílias mais conservadoras de Macau. Muitas peças de mobília antiga e os famosos tabuleiros de chonca que as avós usavam para entreter as crianças ou as famílias aproveitavam para jogar e passar o tempo por altura dos tufões quando ficavam trancadas em casa á luz de velas. Toda essa madeira servia para combustível que para aquecer, quer para cozinhar. Com a chegada de luso descendentes de Xangai e de Hong Kong com usos e valores "modernos" por influência dos ingleses a cultura tradicional que se mantivera ao longo do século XX foi considerada "antigonsa" e abandonados velhos padrões como traje (uso do dó), certos preconceitos femininos, tornando-se as raparigas "garridonas". Começando a perder-se a partir daí grande para da identidade cultural dos luso descendentes filhos da terra”.
Depoimento inédito recolhido por João Botas em 2010. Professora catedrática, Ana Maria Amaro é autora de uma vasta obra sobre Macau. Viveu no território na década de 1960. Morreu em 2015.
As senhoras refugiadas de Xangai que a professora Ana Maria Amaro encontrou no asilo da Horta da Mitra da Santa Casa na década de 1960 numa visita em que levou um grupo de alunos a conviver com as senhoras tendo cantado e dançado para elas músicas tradicionais portuguesas.
ResponderEliminartinha um dia encontrado este video que mostra os refugiados chineses em Macau durante a guerra:
https://www.youtube.com/watch?v=_k0wgfYT_B0
Macau refugee problem in 1958
terá sido feito por um jornalista francês...