“Um sermão em pedra” é o título do segundo capítulo do livro "A fachada de S. Paulo" da autoria do Padre Manuel Teixeira, editado pela Imprensa Nacional de Macau em 1941.
Do livro, impresso a propósito das comemorações dos Centenários da Fundação e da Restauração, retirei os seguintes excertos a propósito da fachada que, construída depois da igreja, ainda em 1640, estava por acabar...
“Desenhado por um mártir e executado por cristãos perseguidos, o Frontispício de antiga Igreja da Madre de Deus ainda hoje campeia, erecto e granítico, por sobre as velhas e modernas construções da Cidade do Nome de Deus, como para mostrar a todas as gerações a obra imortal de Macau na evangelização do Extremo-Oriente.”
“Sendo as Ruínas de S. Paulo ainda hoje admiradas por todos os turistas que nos visitam e sendo um dos mais soberbos monumentos históricos que Macau possui, cumpre-nos dar aqui a descrição da Fachada. Esta é toda de granito e as estátuas de bronze. Dá acesso ao adro da Fachada uma vasta escadaria de 68 degraus, maior que a do Capitólio de Roma. Agora, no adro, podemos contemplar com emoção a majestosa Fachada que, sem apoio de espécie alguma, desafia a fúria dos tufões, a lima do tempo e a incúria dos homens, há mais dum século.
Quatro ordens de colunas jónicas se nos apresentam com um entablamento coroado dum pequeno frontão, tudo repleto de simbólicos ornatos e encimado por remates e pináculos.
A primeira e segunda ordem tem dez colunas cada uma, jónicas na primeira e compósitas na segunda; a terceira tem seis colunas coríntias; a quarta ordem tem apenas quatro colunas a formar a base do frontão com uma cruz no acrotério e dois postes de cada lado.
Começando agora de cima para baixo, temos: no acrotério do frontão triunfa a cruz de Jerusalém; no tímpano do mesmo, a pomba simbólica do Espírito Santo, fundida em bronze, rodeada de quatro estrelas, com o sol à direita e a lua à esquerda; oito obeliscos, encimados por esferas, ornamentam os três corpos do frontão. (...)
Logo abaixo do Espírito Santo, na quarta ordem de colunas, aparece num nicho a estátua do Menino Jesus, estendendo a mão esquerda como a segurar um objecto, provavelmente o globo que lhe caiu da mão e tendo a mão direita entreaberta para o alto com o indicador estendido a apontar o céu; está rodeado dos instrumentos da Paixão, a saber: à sua esquerda, a escada, a cana verde, os cravos, a bandeira do Império Romano; à sua direita, a esponja, a coroa de espinhos, o azorrague, o martelo, a torquês, a lança; aos lados, duas colunas de ordem coríntia de cada banda, tendo entre si duas estátuas de anjos, em corpo inteiro; o anjo da esquerda, com brincos na orelha, suporta a coluna da flagelação; o anjo da direita, com o seu colar denticulado e com botões bem nítidos no peito, suporta a cruz, encimada pelas letras I.N.R.I. (ou seja, Jesus Nazarenus, Rex Judeorum: - ‘Jesus Nazareno, Rei dos Judeus’); ao lado do anjo da esquerda, um pouco mais para fora, vê-se um objecto que semelha um molho de trigo; nas bases dos dois obeliscos sem esferas, lêem-se as inscrições: SP ED RO SP AV LO, isto é, S. Pedro na extremidade do lado direito do Menino Jesus e S. Paulo na extremidade esquerda; ao lado da inscrição de S. Pedro vêem-se dois leões, um na parte da frente da Fachada e outro já na parte ocidental, a bica e a cabeça de Cristo coroada de espinhos também junto ao leão da parte ocidental; depois da inscrição de S. Paulo, vem um leão; quanto ao outro leão da parte oriental e respectiva bica, já lá não aparecem, tendo provavelmente caído com o tempo; ao lado do anjo da direita, aparece uma corda que alguns, sem razão, confundiram com uma serpente e, a seguir, um obelisco sem esfera, em cuja base, como dissemos, se lê o nome de S. Pedro.
“Na segunda ordem de colunas, há três janelas, hoje desguarnecidas, com flores na parte superior; nesta 2.ª ordem há dez colunas, como já dissemos, cinco de cada banda; do lado esquerdo da janela central, está uma palmeira entre a 1.ª e a 2.ª coluna; depois vê-se a estátua de S. Francisco Xavier num nicho entre a 2.ª e a 3.ª coluna; vem a seguir uma janela e depois a estátua de S. Luiz Gonzaga, então Beato, num nicho entre as duas colunas extremas; do lado direito da janela central, ostenta-se uma palmeira entre a 1.ª e a 2.ª coluna; depois a estátua de Sto. Inácio de Loyola, num nicho entre a 2.ª e a 3.ª coluna; segue-se uma janela e depois a estátua de S. Francisco de Borja, num nicho entre as duas colunas extremas. Na base de cada uma das estátuas lêem-se os seguintes dísticos: B. RC.º B. S. IGNA. S. RC.º X. B. LVIS G. que significam: Beato Francisco Borja, Sto. Ignácio, S. Francisco Xavier e Beato Luiz Gonzaga. Nas abreviaturas de Francisco, segundo o uso dos antigos, no R está incluído o F. Estas estátuas foram provavelmente trabalhadas na fundição de Manuel Tavares Bocarro, que então fabricava, em Macau, canhões de ferro e de bronze.
Na primeira ordem de colunas, há três portas, hoje guarnecidas com portões de ferro; sobre a porta principal, lê-se a inscrição: MATER DEI; esta inscrição vem emoldurada por quatro artísticos pólipos, um em cada canto, estendendo os seus tentáculos para sugar, e ligados por uma cadeia de pérolas e diamantes; sobre as duas portas laterais está um coração em chamas encimado pelo emblema da Companhia: JHS.
Na pedra da esquina ocidental, lê-se: VIRGINI MAGNAE MATRI CIVITAS MACAENSIS LIBENS POSSUIT AN. 1602
Na Fachada há vários degraus, pelos quais se pode subir desde o fundo, passando pelo centro até ao frontão superior.
Vemos, pois, que esta Fachada com os seus simbolismos tão significativos é um sermão em granito, que todos podem ler sem grande dificuldade; poucas fachadas haverá que narrem a sua história com tanta clareza como esta, que é mesmo um livro aberto. ‘Eis – exclamava há pouco tempo, nas páginas da revista The Rock, um ilustre jesuíta irlandês, o P. Y. D. Francis – eis todo o sermão: é uma verdadeira teologia em pedra; é a Comunhão dos Santos, em que Maria, a Mãe de Divina Graça, tem a sua parte gloriosa. Começando pela fileira de cima, podemos reduzir a lição toda a uma sentença: pela graça do Espírito Santo, num determinado momento (primeira fila), Cristo incarnou e com a sua Sagrada Paixão alcançou-nos a graça e libertou-nos da morte e do inferno, vencendo estes monstros (segunda fileira) e esta graça é-nos concedida por meio de Maria (terceira fila), por cuja poderosa intercessão todos podem nutrir a esperança de transpor as portas da Eternidade. De maneira que a economia da salvação consiste em que Deus nos devia salvar por meio de Cristo, cujos merecimentos são aplicados às nossas almas pela intercessão, em primeiro lugar, da Sua Santíssima Mãe e, depois, de todos os Santos’.
Foto de John Thomson em 1870 |
Esta é, em linhas gerais, a tradução daquele sermão em pedra, daquela teologia sistematizada. Procuremos agora tentar explicar todos os símbolos, começando pelo frontão da Fachada. Em cima, campeia a Cruz da Redenção, o símbolo mais vivo e impressionante do cristianismo, que não é mais que o amor de Deus em Cristo. O Espírito Santo baixa do céu, onde se vê o sol, a lua e as estrelas, a cobrir Maria com a virtude do Altíssimo; é que a Incarnação, realizada no tempo, é obra do céu.
Cristo apresenta-se Menino, porque como tal nasceu de Maria; mas esse Menino que aos 12 anos maravilhou os doutores da lei, aponta para o céu com o indicador, e com a outra mão sustenta o mundo; foi pela sua Paixão dolorosíssima, cujos instrumentos se representam naquela fileira, que remiu esse mesmo mundo do pecado e lhe abriu as portas do céu. – O molho de trigo, que se vê na mesma fileira, refere-se a José do Egito, tipo de Cristo Menino. Nossa Senhora está rodeada de anjos, uns em prece em atitude de veneração, outros embocando a trombeta e outros incensando; a fonte e a árvore da vida são símbolos de Maria, donde brotou Jesus, o fruto do seu ventre, que veio para a todos dar vida e uma vida mais abundante; a Virgem, pela sua Imaculada Conceição, calca a cabeça do dragão infernal, a hidra das sete cabeças, e triunfa da morte e do inferno, pois que tanto o esqueleto como o diabo se encontram derrotados e prostrados por um dardo; o navio representa a esperança, com que havemos de chegar ao porto de salvamento, às praias da Eternidade; a pomba inocente e pura representa também a Virgem sem mancha, e a coroa e as flechas o amor e a realeza de Cristo. Vêm então os Santos que, velejando em busca do porto, pela graça de Cristo e pela intercessão de Maria, já o alcançaram, lançando ferro nas praias da Eternidade.”
Sem comentários:
Enviar um comentário