Manuel da Silva Mendes morreu a 30 de Dezembro de 1931 na sua casa em Macau. Na imprensa da época o facto não passou despercebido. Neste post reproduzo excertos dessas notícias.
Jornal Eco Macaense, 2 de Janeiro de 1932, título “In Memoriam”
“Figura simpática e vulto de destaque nesta terra, a inesperada morte do sr. Dr. Manuel da Silva Mendes foi profundamente sentida em Macau, onde viveu metade da sua vida e onde em cada pessoa contava um amigo e admirador das suas lídimas qualidades intelectuais e morais.
Para Macau veio há cerca de 30 anos como professor do Liceu, onde leccionou até ainda há bem poucos anos quando, tendo atingido o tempo de reforma, se retirou já cansado do esgotante trabalho do seu magistárrio, ao qual se dedicou com vontade e carinho, e enfraquecido de saúde. Como professor, foi um dos mais eruditos que o Liceu teve. As suas lições foram sempre atentamente escutadas porque soube sempre com raro tacto fazê-las interessantes de maneira a captar a atenção dos seus alunos, aos quais tratava com bondade e estima, que o admiravam e respeitavam.
Também foi advogado, e dos melhores deste auditório em todos os tempos. Mestre no Liceu, também o foi no foro. Como poucos, soube exercer a sua nobre profissão com dignidade, aprumo moral e elevação. Foi, na verdade, como advogado, segundo a definição do Dr. Henri Robert ‘le défenseur de la veuve et de l’orphelin, le champion desintéressé de toutes les nobles causes, celui dont le dévouement est acquis à tous les désherités de la fortune et qui fait entendre, devant la justice, la voix de l’humaine pitié et de la miséricorde’.
Trabalhador incansável, apesar de doente e entrevado, recostado na sua cadeira de rodas, à beira da sua secretária cheia de livros e papelada, bastas vezes o fomos encontrar no seu escritório, transformado em precioso museu de arte, enfronhado em perseverantes investigações e profundos estudos. Mais de uma vez o vimos trabalhar, nestes últimos tempos, em processos judiciais, mais por amor à arte (como nos explicava) do que em mira de interesses materiais, e, geralmente, para tirar de embaraços algum colega menos experiente que à sua brilhante inteligência e vasta cultura recorria.
A sua obra está pouco divulgada, porque a sua modéstia tornou-o em severo e exigente crítico de si mesmo. Ainda assim, dispersos pelos jornais e revistas publicaram-se muitos escritos seus, versando geralmente assuntos chineses em que era uma autoridade respeitável, e em muitos processos judiciais se encontram trabalhos jurídicos seus, inconfundíveis pelo seu cintilante estilo de laureado escritor da língua portuguesa. Há bem pouco tempo acabámos de reler os seus ‘Excertos da filosofia taoísta’ em que, a par da cultura, demonstrada, se nos revelou um profundo filósofo.
Professor erudito, causídico brilhante, excelente poeta; cintilante escritor, perseverante estudioso da literatura, da história, da arte e da filosofia chinesa, a sua inteligência e vasta cultura tornaram-no Mestre em muitos ramos do saber. Roubou-o a Morte no momento em que ele quase que concluía a revisão de mais uma obra de vulto à qual, durante anos de paciente trabalho, dedicou o melhor dos seus esforços.
Morreu o Mestre! Mas ‘morrer não é acabar’. À nossa admiração e agradecida amizade ficou a saudosa e perdurável lembrança dos seus doutos ensinamentos e dos seus modelares exemplos, em homenagem dos quais prestamos hoje publicamente o preito sentido da nossa imensa saudade e profunda gratidão pelas lições que deste Mestre e Amigo querido recebemos”.
Jornal A Voz de Macau, 3 de Janeiro de 1932; título “O funeral do Dr. Manuel da Silva Mendes”.
"Morreu o Dr. Silva Mendes! Esta notícia tão inesperada colheu-nos com a mais dolorosa surpresa. É que se sente, profundamente, o abalar inesperado de um amigo bom, um colaborador dos mais distintos de ‘A Voz de Macau’ cujas páginas abrilhantou com a sua colaboração distinta, um camarada ilustre cuja convivência nos honrava pela lhaneza de trato e amizade desinteressada com que nos distinguia.
Os seus conhecimentos vastos e profundos, quer como advogado distintíssimo, quer como escritor de raro mérito, nunca desmentidos na vasta e douta obra que legou à posteridade, impõe-se à nossa consideração e respeito como exponente de uma inteligência invulgar ao serviço de uma proficiência e probidade profissionais verdadeiramente raras.
As facetas variadas do seu saber, manifestam-se irradiando o fulgor da sua erudição profunda, no conhecimento e manejo hábil da língua difícil de Camões; na vastidão dos seus escritos nos jornais de Macau, nos arquivos dos tribunais da comarca, em documentos de subido valor, pela profundeza de argumentação, pela clareza da linguagem e pela elevação e singeleza de conceitos e beleza da forma.
Vindo novo ainda para Macau, em Fevereiro de 1901, em Maio desse ano tomava posse do seu lugar de professor do Liceu de Macau, onde, no ensino das letras pátrias e da língua latina, demonstrou durante 25 anos do magistério secundário, profundo e sólido conhecimento na regência das disciplinas que lhe foram entregues. Assim o declaram os seus inúmeros alunos que hoje lamentam a perda de tão ilustre ornamento do corpo docente do Liceu de Macau.
Durante os seus 30 anos de residência em Macau, foram-lhe confiados, em diversos períodos da sua vida, elevados cargos de responsabilidade da administração pública, como substituto do Juiz de Direito e do Delegado do Procurador da República, tendo por várias vezes entrado em exercício dessas funções; como Presidente do Leal Senado, Administrador do Concelho, membro de várias comissões públicas nomeado pelo governo, tendo em todos estes cargos relevado uma inteligência lúcida, uma cultura e ponderação invulgares e um saber profundo que nas mais insignificantes circunstâncias se revelavam, e impunham ao respeito de todos os que o ouviam.
No exercício da advocacia mostrou-se sempre pronto a acolher todos os que recorriam ao seu saber profissional, jamais se preocupando em distinguir pobres de ricos, a todos tratando com o maior desvelo e o mesmo carinho.”
Acompanharam o féretro, no Cemitério de S. Miguel, onde foi sepultado este respeitado professor e causídico, as mais altas entidades públicas, colegas, alunos e muitos amigos. Na sua lápide ficaram gravadas estas palavras: “Nascer não é começar. Morrer não é acabar.”
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