quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Filipe Emílio de Paiva e o "Álbum de Viagem"

Volto hoje ao livro/diário de Filipe Emílio de Paiva (1871-1954), "Um marinheiro em Macau 1903-1905" para mostrar mais algumas imagens do livro, mais alguns excertos e, pela primeira vez, uma fotografia do próprio.
Emílio de Paiva foi oficial da armada - com o nome de Filippe - em todas as colónias portuguesas do seu tempo. Em Macau assumiu as funções de oficial imediato da canhoneira Diu, em missão de serviço na Estação Naval de Macau entre 25 de Abril de 1903 e 28 de Fevereiro de 1905.
Foi ainda escritor tendo registado a sua passagem pelo Extremo-Oriente, incluindo Macau. Num dos poucos registos publicados na imprensa da época podemos encontrar um artigo da sua autoria na edição de 20 de Outubro de 1903 da Revista Portugueza Colonial e Marítima.


(...) "Anda nas ruas a procissão chinesa em honra do deus Kuang-ti, suponho que é o deus dos Exércitos, por isso durante estes três últimos dias de Julho de 1903, tem vivido, o bairro china, uma contínua agitação e barulho. Vindos de Cantão, de Sam-Sui, de Hong Kong, de todas as ilhas, da Taipa, da Lapa, de Ma-lau-chau, Coloane, etc., estão continuamente a desembarcar das lorchas, juncos, tancás e vapores, milhares de forasteiros que, risonhos, de fatos ricos, se dirigem para os colaus, hospedarias e restaurantes chineses a tomar lugar, sobraçando leque, sombrinhas e maletas forradas de pele de porco, cestos e embrulhos. Talvez estejam mais de cem mil forasteiros.
No bairro china, ou Bazar, naquelas vielas e estreitas ruas, na Rua da Felicidade, na do Auto, na do Jogo, e noutras, acotovela-se gostosamente uma multidão alegre, de cabeças bem escanhoadas e de rabichos bem entrançados acabando em delicada borla de torçal negro, ou branco, se se está de luto. Estala a panchonada, e os tantans soam por todas as ruas, vendedores ambulantes ajoujados sob o peso dos tabuleiros e canastras de bambu e rota atravessam a turba e fazem bom negócio com os bolos, frutas, refrescos, chá, sopas diferentes, carnes de porco, patos, galinhas, rodas de ananás, confeitos, pevides, amendoim, enfim mil comestíveis que se compram a ínfimas sapecas.
As pipa-t'-chai, ou sejam rapariguitas gentis que foram desde pequeninas educadas a saber cantar e tocar, e que adornam os colaus com as suas caritas pintadas e penteados cobertos de flores e de alfinetes de pérolas finas, falsas ou não, estrearam cabaias novas ornadas com desenhos e bordados exóticos, e andam doidas de contentes em grupos alegres, correndo nos jerinxás, de lenço bordado e lequezinho nas finas mãos de esfusiados deditos. (...)"

"Permanecendo um certo tempo em Macau, mais tarde ou mais cedo, tem que se ir aos tintins, ou lojas de bricabraque chinesas. Aglomeram-se estas lojas por detrás da Igreja de Stº António. Tudo o que há de mais esquisito e disparatado em mobílias, loiças, antigas e modernas, chinesas ou europeias, aparece no amontoamento destas lojas, de envolta com lixo, maus cheiros, a cozinha e o menage dos proprietários.
Quem tem paciência para andar de um para outro tintin, rebuscando, regateando, consegue às vezes, mas raramente, encontrar algum bordado antigo e raro, alguma porcelana, jarra ou chávena de algum valor, e que se adquire barato. Porém isto já está tão explorado, e como em Hong Kong o mercado é maior e mais rico, os tintins de Macau nada dão ao curioso, que recompense a maçada de regatear com os chineses, discutir, entrar e sair em recusas de oferecimentos cinco ou seis vezes na mesma loja. (...) Mas nestas lojas está tudo amontoado! São barracas que extravasam a rua. louças, botas e sapatos, ferragens, armas, pratos e estatuetas, oleografias, números dos jornais ilustrados, ingleses ou franceses, tudo isto abrigado do sol ou da chuva por toldos seguros por varas de bambu, ou ripados de tábuas negras ardidas pelo sol e pela chuva. (...) É isto o que se chama um tintin."
Imagens de "Um Marinheiro em Macau -1903 - Álbum de Viagem"
de Filipe Emílio de Paiva. Museu Marítimo de Macau, 1997

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