"No
último dia do ano, no 30.º do derradeiro mês lunar, as inscrições
vermelhas apostas nos muros fronteiros às casas e nos umbrais das portas
(…) são arrancadas, desprezadas e destruídas, depois de haverem
cumprido com sucesso a missão de que eram encarregadas, e substituídas
por outros dizeres semelhantes.
Ao
romper do novo ano, o Deus da Cozinha – Tsao Wang – dedicado
companheiro que não guarda rancores, entre estrondosos foguetes
regressa, mais uma vez, disposto, com a sua presença, a conceder uma
indicação de bom augúrio, uma promessa de amparo. À sua chegada, aumenta
o número de fogos a queimar, a alegria intensifica-se, a festa atinge
proporções de uma batalha: é preciso amedrontar e afugentar os maus
espíritos, que, desleais e pérfidos, quisessem aproveitar-se do descuido
geral para se implantar na casa e influenciar, perniciosamente, o
destino e sorte da família, durante o decorrer do ano que desponta. Todos
os cuidados são poucos; e, para salvaguarda maior, os cautos chineses
preparam-se com astúcia e habilidade e colocam guerreiros armados à
entrada das portas. Dois bravos generais, que remontam às idades
passadas e usufruem um prestígio enriquecido pelo mérito demonstrado em
séculos sucessivos, desde os Tangs, impedem o ingresso dos espíritos
intrusos e malévolos. (…)
Os
celebrados ninhos de andorinhas, as deliciosas barbatanas de tubarão,
os ovos de 100 anos, dezenas e dezenas de iguarias famosas e
requintadas, servem-se em família, no meio de intermináveis partidas de
mah-jong, bulhentas, onde o matraquear das cartas de bambu batidas na
mesa faz como que parte do jogo e, até altas horas da noite, –
predilecto passatempo –, serve de ocupação aos Celestes, que, encantados
e absorvidos, nem se apercebem do correr das horas… Urge
que fiquem saldadas as dívidas ao encerrar do ano; desculpas não são de
admitir. Com o Ano Novo, vida nova. Todo aquele que tem uma existência
difícil busca, ansioso, o meio de livrar-se de embaraços e, em último
recurso, realiza um empréstimo, possivelmente em condições ruinosas,
para saldar a antiga dívida. É uma questão de honra que tem de ser
resolvida. Se a infelicidade teima em perseguir o indivíduo, se as
contas não podem ser prestadas, a fuga impõe-se como solução.
No
entanto, o regozijo público é a lei que vigora: desgostos e mágoas
devem ser abandonados para dar lugar ao ruído, ao prazer, à alegria. E,
de facto, os caprichos luminosos dos fogos de artifício rasgando,
esplêndidos, o firmamento sereno, em voos alucinados, as explosões
repetidas dos mais violentos petardos a relembrar a cada instante a data
festiva que se comemora, os sons extravagantes e estrondosos das
orquestras improvisadas, expandindo-se com estampido nas ruas, – todo
este bizarro e atraente conjunto tem o condão de formar uma atmosfera
característica, singular, que consegue imprimir, no espírito de todos os
que a presenciaram, uma recordação duradoura e rara, dificilmente
extinguível.”
Final do excerto que seleccionei a propósito das celebrações do novo ano lunar. Da autoria de Luís
Esteves Fernandes, faz parte do livro “China de ontem, China de sempre” (1948). LEF foi um
diplomata português. Em Pequim foi Encarregado de Negócios na década de 1920-30; entre 1940 e 1945 foi enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário de 2ª classe no Japão. A
sua carreira abrange os períodos de 1920 a 1961. No livro "De Pequim a Washington: memórias de um diplomata português",
escrito entre 1964 e 1966 e editado em 2007 fica-se a conhecer mais sobre a sua vida.
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