O Centro Histórico de Macau constitui o produto do intercâmbio cultural entre o mundo ocidental e a civilização chinesa. O estabelecimento de Macau por navegadores portugueses em meados do século XVI, viabilizou quase cinco séculos de contacto ininterrupto entre o Ocidente e o Oriente. As origens e desenvolvimento de Macau como porto comercial internacional constituem o único e mais significativo exemplo do intercâmbio cultural entre a Europa e a Ásia. A génese de Macau e a consubstanciação da sua função primordial enquanto porta de entrada para a China e janela da China Ming para o mundo, reflecte um processo de progressiva tolerância e crescente abertura em relação a anteriores restrições comerciais ligadas ao antigo sistema tributário da China, definindo um ponto de viragem na História da China e da Europa.
Macau, como primeira porta de acesso do Ocidente à China, foi notável no estabelecimento de uma rede de contactos que possibilitou o enriquecimento de ambas as civilizações, em várias áreas do conhecimento e do desenvolvimento do espírito humano, na sua expressão tangível e intangível, ultrapassando um momento crítico da história.
Durante quase três séculos, até à colonização de Hong Kong em 1842, a localização estratégica de Macau na foz do Rio das Pérolas conferia à cidade uma posição única no Mar do Sul da China, assumindo um papel central no contexto de uma complexa rede de comércio marítimo, que acabaria por trazer grande riqueza e um fluxo constante de pessoas ao território. Pessoas de várias nacionalidades deslocaram-se até Macau ao longo dos tempos, trazendo diferentes culturas, profissões e tradições, permeando o próprio modo de vida da cidade e influenciando, de forma tangível e intangível, os costumes da comunidade local. Estas influências são mais evidentes pela introdução de diferentes construções e tipologias, tais como fortalezas e outras produções arquitectónicas de raiz ocidental.
Macau também herdou outras experiências culturais e influências regionais, desenvolvendo estas vertentes ainda mais, em conjunção com a cultura chinesa local, misturando todos estes contextos para dar reconhecida no legado histórico excepcional da cidade. As várias culturas a que Macau esteve exposta ao longo dos tempos acabariam por beneficiá-la, dotando a cidade de um espólio de património cultural de extrema riqueza.
Desde o final da dinastia Ming até ao início da dinastia Qing, missionários de diferentes ordens religiosas europeias, incluindo os jesuítas, os dominicanos, os agostinhos e os franciscanos, entraram na China através de Macau, promovendo activamente missões de evangelização e trazendo consigo uma certa influência cultural. Estes missionários foram responsáveis pela introdução de conceitos ocidentais de bem-estar social, tendo estabelecido os primeiros hospitais de modelo ocidental na China, dispensários, orfanatos e várias instituições de caridade. Foram igualmente responsáveis pela introdução da primeira prensa móvel e publicaram os primeiros jornais de língua estrangeira na China. Sendo Macau o ponto de partida para as missões jesuítas na China e noutras regiões da Ásia Oriental, os padres jesuítas que tinham a intenção de seguir para a China, passavam sempre primeiro por esta cidade onde, no Colégio de São Paulo, aprendiam a língua chinesa e outras disciplinas do saber chinês, incluindo Filosofia e Religião Comparada.
Macau foi, assim, a base principal de preparação e formação dos jesuítas, que, posteriormente, seguiam em missões para a China e para outros pontos da Ásia. O Colégio de S. Paulo era o maior seminário do Extremo Oriente daquela época, sendo aclamado como a primeira outros contributos dos missionários cristãos em Macau incluem a produção do primeiro dicionário inglês-chinês e a primeira tradução chinesa da Bíblia, por Robert Morrison. A devoção pela Deusa A-Má em Macau teve origem em crenças populares de pescadores que viviam ao longo da costa sul da China. Neste contexto, e tendo em conta a vocação única de Macau na mediação de um intercâmbio cultural entre o Ocidente e o Oriente, o Templo de A-Má assumiu um papel crucial na promoção da veneração da Deusa A-Má no mundo exterior.
áreas de protecção do património |
Desde o momento em que os portugueses primeiro se estabeleceram em Macau que a cidade desenvolveu uma dualidade cultural que ainda permanece até aos dias de hoje, tratando-se da herança de um processo histórico que está patente nas suas estruturas administrativas e na tipologia dos edifícios, jardins e espaços públicos. Este valioso legado cultural é testemunhado sob a forma de valores tangíveis e intangíveis, tanto pela mistura de estilos arquitectónicos como pela tolerância religiosa que faz parte da vivência local, ou mesmo pela fusão de tradições culinárias de Macau, reflexo de diferentes influências históricas e geográficas. Acima de tudo, deve realçar-se a extrema riqueza do legado intangível de Macau, entendido não apenas como um produto inerente à própria
cidade, mas como um valor que resulta do longo intercâmbio entre a China e o resto do mundo, e, como tal, representa um conceito de significado bastante mais abrangente, assumindo-se como um legado cultural de valor universal excepcional.
O Centro Histórico de Macau engloba o mais antigo legado arquitectónico europeu existente em solo chinês na actualidade. Coexistindo com a arquitectura tradicional chinesa de Macau, constitui um testemunho de pluralismo cultural e retrata uma simbiose única de tradições arquitectónicas ocidentais e orientais.
“O Centro Histórico de Macau” é um retrato completo da permanência duradoura de uma colónia ocidental em território chinês. A grande variedade de estilos e a consolidação de um vasto património na Península de Macau, oferecem uma perspectiva abrangente sobre as origens da antiga cidade portuária. O conjunto dos edifícios e o traçado original das ruas, definidos na candidatura, apresentam claramente a dimensão multicultural das raízes históricas de Macau, onde a estrutura urbana original ilustra a fusão única de conceitos ocidentais e orientais, misturando concepções distintas de organização de espaços urbanos, estilos arquitectónicos, ideais estéticos, expressões artísticas e intercâmbio de conhecimentos técnicos.
Conceitos urbanos tradicionais foram incorporados em Macau com base em modelos relativos a anteriores povoados portugueses, com particular destaque para os modelos implementados no antigo Estado da Índia (Goa e Malaca), que podem ser igualmente identificados no tecido urbano das zonas de protecção da candidatura. A ambiência arquitectónica, paisagística e urbana de Macau reflecte claramente o espírito original do velho porto comercial português-chinês, desde o século XVI em diante. Em conjunto, a natureza espontânea e orgânica da estrutura urbana de raiz portuguesa encontra-se misturada com conceitos tradicionais chineses de organização de espaço, incluindo princípios de geomância (feng-shui) e outras concepções chinesas de espaço urbano, baseados em escalas de hierarquia tradicionais.
“O Centro Histórico de Macau” inclui os primeiros exemplos de arquitectura barroca e maneirista na China – A Igreja do Seminário de São José e a fachada da Igreja de S. Paulo são exemplos referenciados no Atlas mundial de la arquitectura barroca da UNESCO. Expressões do neoclassicismo podem ser encontradas na arquitectura de monumentos como a Biblioteca Sir Robert Ho Tung, o Teatro D. Pedro V, o Edifício do Leal Senado, a Santa Casa da Misericórdia. A mistura de tradições canónicas ocidentais foi ainda mais enriquecida pela fusão e integração adicional de conceitos relativos ao contexto cultural asiático, culminando num produto final que corresponde a uma arquitectura vernacular que é específica de Macau. Como exemplos, podem mencionar-se a integração de motivos esculturais temáticos produzidos por artesãos do Japão, Filipinas e China na importante fachada maneirista das Ruínas de S. Paulo, ou mesmo as representações chinesas de temas bíblicos patentes nas pinturas murais do interior da Capela da Guia ou, ainda, a influência mourisca incorporada na arquitectura neoclássica do Quartel dos Mouros, no qual se pode observar uma tipologia que integra arcos inflectidos. Para além de produções resultantes da mistura de conceitos arquitectónicos ocidentais e orientais, existem também exemplos de vários tipos de arquitectura regional chinesa no contexto do grupo dos monumentos históricos apresentados.
O Templo de A-Má é um exemplo típico dos templos tradicionais do sul da China; a Casa do Mandarim surge como um bom exemplo de uma casa do último período da dinastia Qing, enquanto a Casa de Lou Kau é uma construção com características típicas da arquitectura nacional xiguan.
Enquanto testemunho histórico do mais duradouro encontro entre o Ocidente e o Extremo Oriente, Macau apresenta vários casos que se assumem como situações pioneiras resultantes do seu longo processo histórico. As Igrejas de S. Lourenço, Santo Agostinho e S. Domingos são algumas das estruturas católicas mais antigas que ainda mantêm a sua função original na actualidade; o Seminário e Igreja de S. José constituem um dos mais antigos complexos de ensino missionário na China e o mais antigo a permanecer em funcionamento até aos nossos dias; a fachada das Ruínas de S. Paulo é anterior a quaisquer outras ruínas de igrejas em toda a China; as fortalezas de Macau também se encontram entre as construções de carácter militar mais antigas de todo o território chinês. Além destes exemplos, Macau também possui o primeiro cemitério protestante da China. O primeiro teatro de estilo ocidental (Teatro D. Pedro V) e o primeiro farol de modelo ocidental (Farol da Guia) na China, são outras construções que ainda hoje estão em funcionamento.
Em simultâneo, Macau mantém igualmente viva a memória de tradições e técnicas de construção antigas, que, actualmente, já não são, na generalidade, utilizadas, incluindo:
• Técnicas que foram criadas para fins específicos e que já foram substituídas por outras metodologias mais modernas, como por exemplo a produção de um material local denominado “chunambo” (uma mistura feita a partir de uma argamassa contendo terra, areia, palha de arroz e pó de cascas de ostras moídas), utilizado na construção das antigas estruturas militares de Macau;
• Técnicas decorativas que surgiram do contexto multicultural típico de Macau, incluindo a aplicação de pedaços de vidro curvo espelhado em arcos decorativos de janelas e portas, como pode ser observado na Casa de Lou Kau ou na Casa do Mandarim;
• A aplicação de finas placas de madrepérola nas janelas de residências tradicionais chinesas, uma técnica que encontra as suas origens mais remotas na Índia;
• Técnicas tais como a instalação de tectos em madeira perfurada em igrejas, bem como em várias residências tradicionais chinesas, em resposta aos efeitos adversos do clima local, à semelhança de técnicas que podem ser encontradas na América Latina;
• Técnicas de construção, tais como as que são descritas em antigas obras jesuítas, descrevendo pormenorizadamente a estrutura e os elementos decorativos que podiam ser encontrados no interior da antiga Igreja da Madre de Deus, exemplificando a adaptação de métodos de construção chineses para a construção de igrejas, com pilares de madeira maciça colocados no topo de fundações e bases de granito, uma técnica que também pode ser encontrada nos templos antigos de Macau;
• A utilização de tijolos cinzentos chineses e outros materiais locais nos vários monumentos que compõem o percurso rbano, tanto em edifícios de cariz ocidental como noutros de traça arquitectónica chinesa, aludindo a técnicas tradicionais que estão directamente relacionadas com Macau;
• A utilização de cerâmica vidrada em Macau constitui também uma adaptação ao clima tropical local. Esta técnica foi aperfeiçoada por artesãos chineses locais para produzir materiais de construção capazes de aguentar os efeitos adversos do clima sazonal e as condições nefastas verificadas em áreas • A utilização de telhas vidradas de cor vermelho-escuro nas igrejas de Macau, as quais são igualmente aplicadas nas decorações policromáticas dos templos chineses locais. É também importante referir que a arte da cerâmica vidrada e a produção de telhas vidradas chegou a Portugal através de Macau;
• A famosa porcelana azul e branca portuguesa tem raízes em processos artesanais e fórmulas que foram desenvolvidas originalmente na China, inspirando, mais tarde, padrões e desenhos decorativos distintos, ainda que observando as orientações técnicas dos processos de produção chineses, conhecimentos que seriam transmitidos através de Macau.
O Centro Histórico de Macau integra uma grande diversidade de edifícios construídos durante um importante período da História da Humanidade, nomeadamente, no que diz respeito ao capítulo que marca o primeiro e mais duradouro encontro entre as civilizações ocidental e oriental. A arquitectura apresentada incorpora um claro intercâmbio de valores culturais, reflectido na introdução de estilos de edifícios de origem distinta e os próprios pormenores arquitectónicos desses mesmos edifícios. A simbiose subjacente ao intercâmbio social, com influências não só ao nível da arquitectura, mas também ao nível do processo de desenvolvimento urbano da cidade, revela valores estéticos singulares ainda visíveis no ambiente urbano actual.
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