O Governador Ferreira do Amaral (g.1846-1849) é unanimemente tido pelos historiadores como uma figura essencial e de viragem. Com ele findaram três séculos de jurisdição mista, de convivência de autoridades chinesas e portuguesas, e começou o período colonial. Uma história de Macau que dele não fale é incompleta ou errada. É conhecido o seu papel na imposição da soberania portuguesa e na adopção de importantes medidas: o não pagamento do foro do chão, a abertura do porto ao comércio com todas as nações e o fecho das alfândegas chinesa e portuguesa, a ocupação das ilhas, o lançamento de novos impostos, a efectiva redução do Senado a um município (já prevista na lei), entre outras medidas controversas de um líder de personalidade forte e abrasiva, que enfrentou muitas resistências. E que pagou com a vida. Sobre esta época a melhor leitura é sem dúvida o estudo ímpar do Prof. Vasconcelos de Saldanha, “Um estabelecimento a refundir e criar de novo”. Macau e a política externa portuguesa na China (1842-1853).
Porém, nos relatos desta época só os aspectos político-constitucionais são normalmente salientados. A natureza das mudanças económicas ocorridas tende a ser omitida. Dando assim uma visão incompleta de como tal viragem se deu perante a concorrência esmagadora dos britânicos em Hong Kong. Na historiografia da acção de Ferreira do Amaral sempre fica na sombra o seu papel de fundador dos jogos chineses legalizados em Macau.
É algo que cabe salientar, a par das suas outras importantes medidas. No tempo de Amaral esperava-se ainda contrariar os nefastos efeitos da criação bem perto de um estabelecimento inglês permanente. Tal não aconteceu. A partir de 1846-49, e apesar da abertura do porto, o comércio não renasceu. Em vez disso, Macau sobreviveu e tornou-se financeiramente auto-suficiente na base da lotaria Pacapio, do jogo do Fantan, do ópio e do tráfico de “coolies”. Este modelo económico imprevisto teve grande sucesso: os défices desapareceram em poucos anos. A refundação económica deu-se na base do jogo e de indústrias menos recomendáveis. Não havia outra alternativa. O estabelecimento de Hong Kong em 1841 após a derrota da China na primeira Guerra do Ópio teve um impacto económico destrutivo. O comércio mudou-se para Hong Kong. E muitos macaenses, à procura de empregos. Macau teve de buscar novas fontes de receita para cobrir os défices causados pela concorrência devastadora da nova colónia inglesa e seu poderio marítimo superior.
Consideramos que o Governador Ferreira do Amaral é o “pai fundador” da indústria do jogo: autorizou a exploração comercial da lotaria chinesa Pacapio e do jogo chinês de fortuna ou azar Fantan, que sobrevivem até hoje. No entanto, numa omissão flagrante, o seu papel na legalização do jogo não tem sido enfatizado.
No seu primeiro ano de mandato, em Janeiro de 1847, Amaral autorizou o Pacapio, que então se jogava de forma ilegal. A base da decisão não é conhecida mas pode ser reconstruída: a problemática da legalização do jogo é relativamente imutável. O jogo é normalmente legalizado durante crises económicas. Como noutros lugares e épocas, perante uma procura sustentada ter-se-á considerado que a proibição seria inexequível na prática, moralmente duvidosa e indesejável dos pontos de vista fiscal e da segurança. Com a proibição o jogo continuaria de modo ilegal, gerando criminalidade. Pelo que o razoável seria autorizar, regulamentar e tributar o jogo, como um exclusivo permitido a particulares, a título temporário, gerador de receitas.O Fantan veio de seguida, em Abril de 1849. Sendo um jogo bancado, operado de modo contínuo, é mais viciante e nele se pode perder muito mais do que numa lotaria. Mas também pode fornecer maiores lucros e impostos do que o Pacapio, como sucedeu. Uma vez permitido o Pacapio, vistos os seus resultados, quebrada a resistência moral ou religiosa, e criadas estruturas e procedimentos, terá sido iniciada uma dinâmica para a legalização: seria inaceitável ter lado a lado uma lotaria Pacapio legal e um jogo ilegal de Fantan. O Pacapio e o Fantan continuam, após mais de 160 anos. A sua permissão por Ferreira do Amaral é outra razão pela qual o lugar na história deste governador é incontornável.
Artigo da autoria de Jorge Godinho Jurista e professor da Universidade de Macau publicado no jornal Ponto Final de 23-8-2012
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