terça-feira, 1 de março de 2022

"Collegio de Macau: cabeça da provincia do Japão"

Collegio de Macau: cabeça da provincia do Japão 
É certo que, primeiro houve padre da Companhia de Jesus, e boa christandade em Japão, do que fosse fabricada a cidade de Macau e o collegio que a Companhia nelle tem: naquelles tempos não havia na India mais que uma só provincia de que era cabeça o collegio de S Paulo de Goa; dividiu se Japão da provincia de Goa, tendo já collegio na cidade de Macau no anno de 1570 sendo primeiro vice provincia e seu primeiro vice provincial o padre Francisco Cabral de que foi auctor o padre Alexandre Valignano: dividiu se tambem da de Goa a provincia de Malavar por diligencia do padre Alberto Laertio fazendo cabeça no collegio de Cochim; dividiu se ultimamente a missão da China da provincia de Japão no anno de 1615 de instancia do padre Nicolau Trigantio; aos padres estrangeiros devemos a multiplicação de provincias que temos na India com tanta gloria de Deus e bem da christandade.
Mas tornando a Macau commerciavam os portuguezes com os chinas na ilha de Sancho até que pelos annos do Senhor de 1570 com certa occasião concederam os mandarins de Cantão aos portuguezes se avizinhassem e levantassem casas uma peninsula chamada Amacau, que quer dizer porto ou enseada, de idolo Ama; a povoação era de chinas pescadores e propriamente colheita de ladrões e piratas que d ali saíam a roubar; o mais era um penhasco esteril; com a frequencia dos portuguezes cresceu em breve e com o trato e commercio da India e Japão melhorou tanto sua ventura que pelos annos chegou a ser não só cidade mas um dos grandes emporios de toda a India.
E posto que vulgarmente se chama Macau, o seu proprio nome é cidade do nome de Deus da China, fechada hoje com muros e fortes baluartes guarnecidos de boa artilheria que se faz na mesma cidade. Fica na jurisdicção da villa de Ansam distante doze leguas, e trinta de Cantão, metropole de toda a provincia de Japåo, para a parte do norte distante quatrocentas legoas, de Cochinchina duzentas, na sua enseada fica o reino de Annam, e correndo a costa de Cochinchina, segue se o reino de Champa, Camboja; na enseada do reino de Siam, no archipelago as muitas ilhas que nelle estão lançadas, Borneu, Macassá, Molucas, Philippinas e Lioquios recebe Macau as drogas de todo o sul, a prata de Europa e muito mais a de Japão a troco das riquezas da China.
Em monte de Macau, fundou a Companhia de Jesus, um collegio com igreja dedicada á Mãe de Deus, cresceu tudo a par com a mesma cidade porque a piedade e liberdade dos portuguezes vence a todas as mais nações: com esmolas dos cidadãos de Macau se fez a igreja que hoje tem muito capaz, bem ornada, frequentada e bem servida; por estar em alto é necessario subir muitos degraus mas tao bem lançados proporcionados e faceis alem de magestosos que não se acharão outros semelhantes até Roma.
D'esta real fortaleza sairam e saem quasi todos os annos os prégadores evangelicos a fazer guerra a toda a gentilidade que tem em roda arvorando o estandarte real da sagrada cruz sobre os mais altos e fortes baluartes da idolatria pregando a Christo crucificado sujeitando ao suave jugo de sua santissima lei os reinos e imperios mais soberbos e fechados com tanto successo e applauso como se verá claramente do successo d esta Batalha.
Fundadores d'este real collegio de Macau são os serenissimos senhores reis de Portugal, o senhor rei D Sebastião o dotou com mil cruzados de renda cada anno; no de 1574 consignados na alfandega de Malaca. O senhor rei e cardeal D Henrique lhe accrescentou mais outros mil cruzados, no anno de 1579, a Magestade de el rei nosso senhor D João IV que Deus guarde lhe restituiu os dois mil cruzados que estavam perdidos no anno de 1649 em razão que pois o senhor rei D João III fundou o collegio de S Paulo de Goa com mão tão liberal para seminario de todo o Oriente, e o collegio de Cochim o senhor rei D Sebastião, collegios ambos principaes e cabeças de suas provincias no collegio de Macau concorressem tres reis para sua fundação restituindo a Magestade de el rei D João IV nosso senhor, que Deus tem em gloria, o que estava perdido; dois mil cruzados tem toda a provincia de Japão, ha fazenda real tem alguma outra ordinaria, nem ainda as missões tão gloriosas.
E pois a devoção de Sua Magestade á Immaculada Conceição da Virgem Maria Senhora Nossa é tão concluida não só nos reinos de Portugal e seus senhorios mas em toda a christandade manifesta pelo decreto que Sua Magestade fez nas côrtes de 1646 de defender sempre a Immaculada Conceição, ficára o real Collegio de Macau com o titulo de Immaculada Conceição e parece foi já providencia divina que no frontispicio que se fez de pedraria na fechada da igreja do mesmo Collegio no anno de 1640 se puzesse no nicho do meio uma imagem da Senhora fundida de bronze como triumpho da Immaculada Conceição em roda aberto na pedra, obra de meio relevo com que realça mais a magestade ao frontispicio e agora o titulo da igreja e collegio a devoção de Sua Magestade, que esse foi sempre o alvo, como foi principal das conquistas dos senhores reis de Portugal a propagação da fé catholica e conversão dos gentios debaixo do amparo e protecção da Virgem Amantissima.
E em Macau, á sombra do trato e commercio dos portuguezes recolhessemos os prégadores evangelicos muitas almas para o céu. Ensina-se no collegio de Macau das primeiras letras do ABC até os mais altos pontos e apices da sagrada theologia, tem um mestre de ler e escrever e contar, dois mestres de latim, um de philosophia, dois da sagrada theologia, um de moral e casos de consciencia com seu prefeito dos estudos.
Na igreja do Collegio se dá o grau de mestre em artes aos que o merecem, vindo de suas terras os candidatos acompanhados dos amigos e padrinhos todos a cavallo com suas charamellas deante como se costuma nas universidades da Europa. Não só no collegio se attende a letras mas a todos os mais ministerios da Companhia como se fosse casa professa. Na igreja ha grandes concursos nas prégações, muita frequencia nos santos sacramentos da confissão e communhão; cada domingo parece um jubileu porque muitos portuguezes se confessam e communyam cada oito dias. Não fallo nas amizades que se fazem nem nas esmolas occultas que se buscam e dispendem a pessoas honradas e pobres, nem na diligencia e cuidado que se teve em acudir aos pobres no tempo da fome do anno de 1648, dando todos os dias nos degraus da igreja a esmola a mil e quinhentas pessoas.
Os prégadores que saem do collegio em todo o decurso do anno para todas as igrejas da cidade são muitos; as doutrinas que nas tardes da quaresma se fazem nas freguezias que são umas praticas como se hão de confessar commungar etc e vem a ser como um catechismo são de grande fructo; nem fallo nas quarenta horas que se fazem no collegio com toda a magestade sumptuosidade e devoção que não teem inveja a nenhumas da Europa; deixo estas e outras cousas que são proprias das casas e collegios da Companhia porque todas se exercitam no collegio de Macau com grande pontualidade e perfeição.
Não posso porém deixar de fazer menção de um grande serviço que se faz todos os annos a Deus no collegio de Macau. Entrada a quaresma, são muitos os portuguezes que se recolhem, cada um em seu cubiculo do collegio, a fazer exercicios espirituaes de nosso patriarcha Santo Ignacio por espaço de oito dias: o confessor de cada um dos exercitantes os visita entre dia, dá-lhe os pontos das meditações que de ordinario são da primeira semana do fim para o qual o homem foi creado dos peccados da morte e mais novissimos etc. Fazem suas confissões geraes de toda a vida quem a não fez ou da ultima que fizeram sáem todos no cabo dos oito dias consolados melhorados e com grandes propositos de servir a Deus em seu santo temor no estado que tem com perfeição e guarda dos mandamentos da lei de Deus como são obrigados.
O padre pae dos christãos não só acode ás causas dos presos, aos titulos duvidosos dos captivos, aos pobres e miseraveis de toda a cidade, aos discordes para os pôr em paz e a todos os que o buscam em seus trabalhos mas tem a sua conta a casa dos catechumenos chinas dos quaes o menos que se baptisam cada anno são de trinta até quarenta pessoas. Para os chinas já feitos christãos mandou o padre André Palmeiro, visitador da provincia do Japão e vice da China no anno de 1634, levantar uma igreja capaz com invocação de Nossa Senhora da Protecção de esmolas que buscou pelos portuguezes; teve esta igreja grandes contradicções mas o animo constante do padre André Palmeiro venceu todas as difficuldades com grande gloria de Deus. Nesta igreja, que está detrás do collegio, fóra dos muros da cidade, e junto á casa dos catechumenos, diz missa o padre pae dos christãos todos os domingos e dias de festa aos chinas novamente convertidos; faz-lhes suas praticas para serem instruidos nos mysterios da nossa santa fé e juntamente celebram as festas principaes com sua commodidade.
Por respeito da fome que correu por toda a China foi muita a gente que entrou em Macau a buscar remedio, uns a servirem os portuguezes, outros a vender os filhos de pouca idade, quasi todos receberam o santo baptismo, muitos foram comprados pelos moradores de Macau só com o intuito de os baptisarem sabendo que pouco tempo podiam viver; a tudo acudia o padre pae dos christãos fazendo baptismos tanto a tempo que alguns no mesmo que recebiam a vida da alma acabaram a do corpo com grandes signaes de sua predestinação. (...)
in "Batalhas da Companhia de Jesus na sua gloriosa provincia do Japão pelo padre António Francisco Cardim da mesma Companhia, natural de Vianna do Alentejo, inédito destinado à X Sessão do Congresso Internacional dos Orientalistas por Luciano Cordeiro da S.S.G.L.", Lisboa, 1894.

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