quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

"Um Conto de Natal" de Henrique de Senna Fernandes

Na edição de 23 de Dezembro de 1994 o jornal Ponto Final (Macau) publicou um Conto de Natal inédito da autoria de Henrique de Senna Fernandes em que o próprio explicava:
"O original deste conto não me pertence. Pertence à minha neta Laura, de oito anos, que o rabiscou, numa dúzia de linhas, para um exercício da escola. Enterneceram-me a imaginação revelada e a tocante ingenuidade da história e resolvi desenvolvê-la para que não se perdesse e a própria autora não a votasse ao esquecimento. Basicamente o enredo é dela, eu apenas fiz os acrescentamentos que julguei necessários."
"O garoto tem cinco para seis anos, anda descalço e só em em dias especiais usa umas sapatorras, grandes demais para os seus pezitos e muito gastas. Não sabe quem são os seus pais, nunca os viu, não tem irmãos, nem ninguém que se proclame seu parente. Foi trazido sabe-se lá como e quando, ao sítio, ao cuidado dum casal de velhos, com dois filhos, todos adultos, gente rude e hirsuta, de poucas falas, incapazes de ternura para uma criança. Os quatro moram numa casa sombria de pedra e trabalham no amanho de terra em volta. O garoto vive ao lado, num barraco, feito de tábuas de madeira já podre, que deixa penetrar pelas frinchas a chuva e o vento.
No verão, sofre um calor horrível e sufocante, mordido pelos bicharocos que infestam a palha a servir de cama. No inverno, o frio é como uma geleira e o garoto treme comos parcos agasalhos que o defendem.
Não se sabe qual o nome com que o baptizaram, e, porque todos lhe chama Garoto, acredita que esse é o seu verdadeiro nome. Não vai à escola, mas já moureja com os misteres que lhe dão, em conformidade com a sua idade. Ralhos e berros recebe-os muitos, safanões e carolos também, mas sevícias propriamente ditas, mais cruéis, não moem o seu corpo débil. O que mais lhe dói, é a indiferença geral.
Não tem entrada na casa de pedra, onde arde a lareira no inverno, fica à portas às horas da refeição para receber a sua ração que nunca é suficiente nem saborosa, sendo a fome a sua companheira diária. É ainda muito pequeno para perguntar a razão daquele tratamento e porque não pode juntar-se com aquela gente para o convívio familiar.
A solidão amadurece-o, fica a pensar que nunca teve um brinquedo e porque razão não é como as outras crianças que possuem pais, que brincam despreocupadas, correm, saltam, dão gargalhadas e se vestem bem, sem os farrapos que o cobrem. Todos certamente têm uma cama para dormir.
O seu lugar favorito é o bosque, não muito distante da casa. Conhece as árvores, o pio de cada passarinho, a toca do vivo lebréu. Do lugar pode espreitar a aldeia na curva do vale, com o seu movimento bucólico e repousante de pessoas, automóveis e carroças, um divertimento simples, mas sempre alvoroçante para ele. Conhece os sinos da igreja, muito branco no alto duma eminência e sente sempre o apelo de entrar nela. Os da casa visitam-na uma vez por semana, mas nunca o levam, como se tivessem vergonha dele.
Naquele inverno agreste, de frio cortante como nunca, o padre da igreja aprece, de repente, cheio de perguntas que não sabe responder porque não está habituado a falar com ninguém, com excepção dos passarinhos e animaizinhos do bosque, entre eles, o furtivo lebréu.
Assiste depois, uns passos afastado, ao interrogatório do padre aos adultos da casa. Todos gesticulam muito, as vozes erguem-se irritadas, estão a falar dele, porque aponta, muitas vezes o dedo na sua direcção. Palavras esparsas sobre uma filha do casal que abandonou o lar paterno atrás dum desvairado amor. Sobre essa filha, os quatro adultos têm expressões azedas de desdém e de fúria. Coisas que nada têm que ver com ele e não perceber porque o misturam com a memória da desconhecida.
A conversa sobre de tom, o padre, rubicundo de cólera, vira-lhe as costas, aproxima-se por fim dele, dá-lhe a imagem do Menino Jesus e diz-lhe: - Daqui a uns dias é Natal. Vai à igreja rezar pelo Menino Jesus, que nasceu neste dia. Pede-lhe qualquer coisa e vem depois dizer-me o que lhe pediste.
Nessa noite, os da casa dão-lhe mais agasalhos com que vestir e uma manta mais espessa. Mas continua à porta para as refeições. Não olvida as palavras do padre que lhe martelam a cabeça, no meio da solidão. Nas mãos conserva a imagem oferecida.
O dia de Consoada raia cinzento, com borrifos de chuvisco. O garoto está irrequieto, decido ou não decide em ir à igreja, hesita, mas uma força interior impele-o a cumprir a sugestão do padre. É pouco mais de meio-dia quando se interna no bosque.
Atravessa-o a correr e por uma vereda sinuosa, desce à estrada que o leva directamente à aldeia. Tem os pés calçados das sapatorras e como vai obcecado não se atemoriza com tanta gente que encontra no caminho. Sobe a bonita ladeira e penetra finalmente na igreja.
Defrontam-no a penumbra, os santos dos altares, o colorido dos vitrais simples. Mas os seus olhos fixam-se no presépio alumiado pela velas. Achega-se e instintivamente ajoelha-se diante do Menino deitado que sorri, mãos erguidas.
Baixinho pede. Pede que lhe dê um pai e uma mãe e comida para matar a fome. E mais timidamente, quase a medo, pede-lhe uma cama quentinha para dormir. Tem mais pedidos a fazer, mas não quer abusar. Tudo isto fervorosamente, atropelando as palavras.
Depois procura o padre, mas ele está ocupado nos preparativos para a festa natalícia, tem pessoas que o aguardam. Não tem tempo para o atender e ele regressa ao barraco, com a certeza de que os seus pedidos não chegarão aos ouvidos do Menino Deus.
Ninguém repara nas suas deambulações. Ao cair da tarde, o frio é intenso e o garoto encolhe-se na palha, cobrindo-se com a manta e quase chora escutando o assobio lúgubre do vento que ulula por entre as frinchas do madeirame podre.
Nisto, ouve bater a porta. Com dificuldade, os dentes a tremer, vai abri-la. Um homem e uma mulher, bem vestidos, ambos bonitos, sorriem para ele, com lágrimas nos olhos. ela, muito docemente, ao beijá-lo diz: 
- Não te assustes. Somos teus pais. Vimos buscar-te para levar para casa. Temos muitas guloseimas e brinquedos para ti. 
- E uma caminha quente também?
- Uma caminha quente e muito mais - disse o homem, abraçando-o.
Já não tem frio. Aperta no peito a imagem do Menino Jesus que traz no bolso da camisa. E sai para o relento, entre os pais, para longe da casa de pedra."

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