Auguste-Nicolas Vaillant (1793-1858) foi um oficial da marinha francesa que passou por Macau em 1837 durante uma viagem à volta do mundo. Registou em diário esses dias e dois anos depois publicou as memórias na "Revue des Deux Mondes", em Paris.
É dessa publicação que retiro um excerto (traduzido) sobre uma visita que Vaillant fez ao templo de A-Ma também conhecido por outras designações: Ma Kok Miu, Templo de T'in Hau, etc...
"Um dos passeios mais agradáveis nos arredores de Macau é ao Pagode dos Rochedos. Acabo de passar lá várias horas. Aí encontramos uma amostra da arquitectura sagrada chinesa que entusiasmou frequentemente os viajantes estrangeiros e que não é desdenhada pelos mais finos conhecedores do Celeste Império. O objectivo a que se propõe a estética chinesa encontra-se aqui atingido com sucesso, já que a obra de arte se combina intimamente com os elementos naturais, pelo que rochas, árvores, pórticos, frisos e telhados esculpidos se enquadram como se fizessem parte da mesma construção. (...)
The Pagoda of the Rocks at Macao. Dore. ca. 1870 |
O Pagode dos Rochedos é consagrado à deusa Ma-Tsou-Po. Situa-se perto da povoação de Macau sobre uma das colinas da montanha em que termina o península. Cheguei lá através de um caminho que se encontra à saída da cidade e que conduz ao mar. Fica perto de uma aldeia de cabanas de bambu à borda de água. À minha direita, uma vintena de tancás*, paradas perto da margem, pressionam-se umas às outras e as tancareiras chamam à atenção de quem passa com gritos confusos e gestos animados. À minha esquerda, blocos de granito estão revestidos de caracteres gigantescos. Longas bandeiras flutuam nos mastros dos pavilhões. Entre duas rochas bizarras, um pórtico, de uma forma ligeira, desenha sobre um fundo de folhagens as curvas do seu telhado encimado por um junco de porcelana: é a entrada do pagode.
Entrei e fiquei logo espantado com aquele conjunto original de árvores, de rochas, de quiosques, de telhados sobre os quais a porcelana e o granito representam barcos, cornos de búfalos, caudas de dragões, encimados por globos de várias cores. Admirei as portas e as janelas abertas no meio dos jardins, feitas em muros esculpidos, umas ovais, outras redondas, como se fossem os caixilhos da paisagem.
Os edifícios do pagode estão construídos sobre a montanha no meio de figueiras, árvores seculares e rochas que se mantêm estranhamente de pé em difíceis equilíbrios. O edifício principal exibe uma grande sala com colunas esculpidas, painéis entalhados, pintados e revestidos de inscrições, lanternas suspensas e, sobre um altar, ao fundo, vê-se a deusa acompanhada de diversas figuras, umas furiosas, de sabre na mão e olhar terrível, outras de longas barbas que se estendem até aos ventres arredondados, sorriso nos lábios e expressão de uma pacífica bondade.
Diante do altar são vários os grandes vasos cheios de uma fina areia em que os fiéis colocam paus perfumados acesos semelhantes aos que utilizam para acender o tabaco dos cachimbos. (...) Tudo respira fantasia, delicadeza, elegância, mas nada mais. Nota-se nas cores, nas esculturas, nos ornamentos, um talento de detalhe e mesmo uma graça original. Os chineses que aqui chegam, sentem-se em casa. Eles sorriem, queimam bilhetes de papel, acendem as varetas perfumadas e tudo está dito. Trata-se, nesta vida regulada, de uma função cumprida como se estivessem a beber chá.
Passei, em seguida, a outra sala em que se encontrava uma grande mesa carregada de peixes cor de rosa, patos, bananas e doces: eram as oferendas dos fiéis aguardando a honra de serem comidas pelos bonzos. No pátio vêem-se vendedores de frutas e legumes, cozinhas suspensas em canas de bambu, numa das extremidades, a fornalha e a marmita, na outra, as provisões. Mais músicos tocando as suas flautas e cornetas ou crianças esfarrapadas a jogarem cartas pelo chão.
Não pude deixar de admirar o jardim e a paisagem à medida que subia a colina, passeando por entre as árvores e as rochas. Daqui vê-se a a entrada do porto interior, os juncos de guerra com os seus pavilhões coloridos e os juncos comerciais cuja proa tem a forma de cabeça de peixe com dois olhos pintados de cada lado. Mais ao longe, vislumbra-se o pico da Ilha Verde e os cumes graníticos da montanha da ilha de Tuy-Lien.
* tancar/tancá/sampana - pequena embarcação típica da Ásia, de fundo chato, sem quilha, de pouco calado, movida a um ou dois remos, geralmente tripulada por mulheres (tancareiras); para abrigo dos tripulantes a embarcação é parcialmente coberta por um toldo o que em conjunto com a forma da embarcação ganha um formato que se assemelha a um ovo; refira-se que em chinês os dois caracteres - 蜑家 - que formam a palavra significam isso mesmo: ovo-casa ou casa em forma de ovo.
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