domingo, 22 de julho de 2018

O Mundo que os Portugueses criaram

“O Mundo que os Portugueses criaram” é o título de um livro da autoria do jornalista e escritor Armando de Aguiar, editado pela Empresa Nacional de Publicidade em 1951.
Nas 648 páginas é dedicado um capítulo a Macau “Macau – Janela do Ocidente aberta sobre o Oriente”, com nove páginas profusamente ilustradas.
O livro contou com a revisão histórica de Caetano Beirão e teve várias edições ao longo dos anos.
A mais recente edição é de 1984 - J. M. Barbosa - com direcção gráfica de Alfredo Calderon Dinis e desenhos de Fernando Cruz, Luís Osório e José Figueiredo Sobral.
De seguida apresento alguns excertos do texto. As imagens são da época de 1950 mas não as que estão no livro.
Sobre esta edição Caetano Beirão escreveu:
"A ideia felicíssima de Aguiar, de percorrer todos os lugares do Mundo onde se encontram parcelas de portugueses em território português, núcleos de portugueses encravados em países estranhos, ou vestígios da passagem de portugueses ou do génio português gravados em monumentos, em civilização, em tradições e até na linguagem dos nativos; de nos dar conta dos seus conhecimentos, das suas impressões, da sua vibração ente a criação prodigiosa - ia a dizer milagrosa - da nossa Raça, através dos mares, através dos continentes, e através dos séculos, - é uma ideia tão grandiosa e patriótica que assegura o êxito deste volume e o reconhecimento de quantos vão ver nele uma síntese colorida, animada, e ao mesmo tempo sentida, da peregrinação assombrosa dos Portugueses por sobre a face da Terra. (...)”


“Macau, a mais longínqua e a menor das províncias do Império Português, é, proporcionalmente a qualquer das outras de além-mar, a mais complicada na sua estrutura política e social. Trata-se de uma cidade onde vivem para cima de 340.000 chineses e onde entram, diariamente, quer atravessando as históricas Portas do Cerco, quer desembarcando dos milhares de juncos, lorchas e sampans que navegam, airosamente, em volta de Macau, mais de 10.000, o que dá à Cidade do Santo Nome de Deus a categoria de terceira do Império Português. Antes estão Lisboa e Porto. De maneira que governar Macau é função difícil para cujo cargo se necessita de alguém que possua as indispensáveis qualidades de inteligência, cultura do meio chinês e, em especial, tacto diplomático. Lembremo-nos que tem de lidar com um povo subtil, de reacções demoradas por serem longamente pensadas e por traduzirem a inspiração transmitida pelos deuses budistas na silenciosa tranquilidade de um pagode. A acrescentar, ainda, que Macau tem sido sempre um excelente posto de observação para quem se queira debruçar sobre a China. (…)

Ao chegar a Macau fui agasalhado com inequívocas provas de simpatia e amizade pelo então governador, comandante Albano de Oliveira, que muito me sensibilizaram. A seu convite e na sua companhia realizei um longo passeio de automóvel pela cidade. E acentuo longo porque ao cabo de três horas, com paragens aqui e acolá, ainda não havíamos terminado de percorrer os 70 quilómetros de estradas, avenidas, ruas e caminhos que cortam Macau em todos os sentidos, sem referência, já se vê, às centenas de ruazinhas, ruelas, travessas e becos que formam um verdadeiro labirinto onde vive a numerosa população chinesa. Primeiro foi o alto da Guia que me deslumbrou com o cenário maravilhoso que dali se desfruta. Um farol, o primeiro que se ergueu no Oriente, continua na sua missão de paz. Ao lado, a histórica capelinha da Guia, lugar obrigatório de peregrinação de quantos homens iam para o mar. Em nossa volta desdobrava-se a minúscula Macau, formigueiro humano que nunca abandona as ruas, enquadrada por um panorama deslumbrante. Não ocultei a minha primeira exclamação de entusiasmo pelo encanto do cenário que se desdobrava em torno de mim. Macau é, realmente, uma cidade cheia de interesse e beleza. Visitei-a à vontade. Percorri-a de lés a lés. Entrei em contacto com o povo chinês e fui aos seus bairros. Verifiquei encontrar-me numa cidade de trabalho em que a política sem elevação foi de há muito posta de parte. O principal problema que ainda hoje continua a preocupar o actual governador, almirante Marques Esparteiro, é dar solução aos problemas pendentes, muitos dos quais foram profundamente alterados com a última grande guerra. O ritmo de trabalho que observei nos vários departamentos do Estado era uma garantia segura de que em Macau havia calma e confiança, e o nosso exemplo de serenidade – porque nada há que nos force a não sermos serenos – dá aos chineses a certeza de que podem continuar a realizar os seus negócios sem receio de qualquer crise que os obrigue a emigrar para outras paragens. (...)
É fácil de compreender a simpatia que o Chinês nos dedica. Em quatro séculos de permanência portuguesa em Macau, sempre lhe demos o nosso afecto cristão e nunca o tratámos como raça inferior. Antes pelo contrário. Quantos dos nossos missionários, comerciantes e militares não se sacrificaram pela China? A nossa obra de civilização no Oriente, que teve a sua origem em Macau, é digna da maior admiração e de Macau partiram preciosas ajudas para os governos de Pequim quando eles as solicitaram. Auxílios em homens de ciência e eficiência militar. Mesmo hoje, o chinês que sofre as contingências das oscilações políticas é em Macau que encontra o centro de refúgio, sabendo que ali uma bandeira – a portuguesa – o protege contra qualquer desacato.
Nesse meu primeiro contacto com Macau penetrei numa das mais concorridas artérias da cidade, a Avenida Almeida Ribeiro, repleta de comércio e onde uma multidão heterogénea fala, gesticula e oferece os seus produtos. Observei então que desde a primeira autoridade – o governador – ao mais simples cidadão qualquer indivíduo pode andar à vontade nas ruas da cidade sem o mais pequeno receio.
Há́ ordem e respeito e as nossas boas relações com os vizinhos permitem-nos trabalhar com calma, sem receio do futuro, que só́ a Deus pertence. O espírito da população é elevado porque conhece o meio em que vive e porque já́ passou pela pior das provações, quando do cerco que os japoneses fizeram a Macau, procurando impedir, por todos os meios ao seu alcance, a entrada dos géneros alimentícios de primeira necessidade. Foi nessa altura que os nossos amigos chineses deram uma das provas mais eloquentes da sua sincera amizade por Portugal, por quantos ali se encontravam, que, sem eles, morreriam à fome. Com risco da própria vida e ludibriando, o mais possível, a feroz vigilância das sentinelas japonesas, introduziam todas as noites, quase sempre atravessando os rios, tudo quanto Macau necessitava para dar de comer a cerca de 500.000 pessoas que se tinham abrigado sob a protecção da bandeira nacional.
Eu acredito na amizade dos chineses por Portugal. De quantos povos europeus têm procurado fixar-se na China, nós, portugueses, fomos os únicos que sempre respeitámos as suas nobres tradições e prontamente compreendemos o que é lidar com chineses.
Quando ali chegámos, no século XVI, fomos encontrar uma civilização adiantadíssima. Foi preciso haver da parte dos nossos antepassados muita diplomacia e muita firmeza de carácter para que o Chinês não sofresse de nós o que às vezes sentimos de certos indivíduos com quem tratamos: desilusão. Realmente foi essa a grande vitória do génio português no Extremo-Oriente: haver-se imposto como povo civilizado, a uma civilização que se bem que não estivesse no seu apogeu era, no entanto, ainda bem superior, em certos aspectos, à civilização ocidental, após o longo período da Idade Média. (...)
O automóvel levou-me depois até às famosas Portas do Cerco. Transpostas estas, uma barreira de arame farpado diz-nos ser ali que termina a fronteira mais avançada de Portugal, no Mundo. Alguns soldados de Angola e Moçambique procediam à limpeza do terreno enquanto outros trabalhavam na construção de novos fortins.
Dei em seguida uma volta pelos cais, ao longo de uma floresta de mastros e juncos, lorchas e sanpans, no meio de uma vozearia de pregões, tilintar de ferrinhos, gritos dos coolies que puxam típicos rickshaws, de toda aquela gente que vive do mar e no mar e vem a terra vender os seus produtos e comprar outros. Acabava de ser construída nessa altura uma elegante e enorme gare marítima de um chinês rico, o Sr. Fu Tak Iam, para os seus navios da carreira com Hong-Kong, e grandes armazéns, mais abaixo, estão a ser levantados. Qualquer das obras custa milhões de patacas, que o Chinês gasta sem receio, confiado, como está, na boa administração portuguesa.
Visitei mais tarde o liceu e duas ou três escolas primárias. Havia uma alegria saudável nos rostos daqueles rapazes, alguns filhos de europeus mas outros, na sua maioria, chinesinhos de olhos enviesados. O movimento escolar é grande. As escolas primárias, o liceu e ainda os colégios particulares entregues a religiosas e aos irmãos salesianos estão cheios. A instrução é a principal riqueza que naquelas bandas do Mundo e nesta época um pai pode e deve deixar aos filhos. (…)
Pode ainda dizer-se que em todas as circunstâncias graves para Macau, provenientes das periódicas crises chinesas, a Cidade do Santo Nome de Deus tem passado incólume e salvo sempre o prestígio de Portugal. Já́ isso aconteceu durante a dominação filipina, em que a bandeira nacional nunca deixou de estar hasteada na Fortaleza do Monte; já́ quando dos repetidos assaltos dos holandeses em 1601, 1603, 1604, 1607 e 1622; já ainda quando do cerco nipónico na última grande guerra, em que foram postas frente a frente, num jogo de inteligência, a diplomacia japonesa, representada por aqueles que haviam criado em Macau um movimentado consulado, e o patriotismo e a inteligência das nossas autoridades. Macau é o penhor mais valioso do prestígio e da honra portuguesa no Extremo-Oriente. Nunca até hoje, entre Chineses e Japoneses, Filipinos e Javaneses, Malaios e Siameses, Indo-chineses e Cambojanos; do Tibete a Pequim e da Formosa a Hanoi, se falou de Macau sem que prontamente não se lhe ligasse o nome de Portugal. (...)
Não podia deixar Macau sem realizar uma peregrinação histórica: visitar a célebre gruta onde a tradição afirma que Camões iniciou o seu imortal poema Os Lusíadas. Situada no meio de um jardim sempre florido e dominando um panorama deslumbrante sobre a cidade e o porto, a gruta do Épico constitui ou um milagre das forças da Natureza, que colocaram em forma trapezoidal três enormes lajes, duas laterais e uma horizontal a servir-lhe de tecto, ou representa o trabalho hercúleo de alguns homens que para ali carrearam aqueles três monólitos e os dispuseram com jeito de abrigo. A ser verdade ter Camões estado realmente em Macau como Provedor dos Defuntos e dos Ausentes, nada nos deve repugnar acreditar haver sido ali, com efeito, onde se recolhia nas horas de lazer para meditar, relembrar-se da Pátria distante, dos poucos entes queridos que cá deixou e das horas de desventura que sofreu quando sonhou com a epopeia épica do povo lusitano e lhe deu forma para maior glória de Portugal através d’‘Os Lusíadas’.
Inspirado nesta legenda pronunciei em véspera de deixar Macau, junto da gruta, algumas palavras sobre o Príncipe dos Poetas portugueses, defendendo o princípio de que era preferível deixar viver uma lenda já́ arreigada no sentimento do povo chinês, em como Camões havia vivido na Cidade do Santo Nome de Deus, do que destruí-la com a verdade histórica de jamais o imortal poeta haver sofrido e amado naquela terra secularmente portuguesa. Também por ali passou e ali versejou o insigne Manuel Maria Barbosa du Bocage, Elmano Sadino, cuja presença foi igualmente assinalada em Cantão, onde se rendeu de amores por uma chinesinha de olhos lânguidos e alma romântica. Que alguma coisa ficou em Macau da passagem espiritual desses dois génios da intelectualidade portuguesa prova-o o facto de ser intensa a actividade cultural na Cidade do Santo Nome de Deus, como me foi dado observar, e em que generosamente assumiu o invejável papel de Mecenas o brilhante intelectual e grande português Dr. Pedro Lobo, que à Pátria tem prestado, em ocasiões difíceis, os mais relevantes serviços.
Macau é ainda um alto padrão do velho prestígio português na Ásia, bastando citar as ruínas da igreja da Madre de Deus, vulgarmente conhecida por S. Paulo, de 1602, e destruída por um incêndio em 26 de Janeiro de 1835; os monumentos a Ferreira do Amaral, governador assassinado por chineses a 22 de Agosto de 1849, e ao tenente Vicente Nicolau Mesquita, o bravo conquistador do forte de Passaleão; e o monumento comemorativo da brilhante série de vitórias das armas portuguesas sobre os holandeses, coroada pela grande derrota que no dia 24 de Junho de 1622 a fraca guarnição de Macau infligiu ao almirante Willem Ysbrandsz Bontikoe, quando fez ir pelos ares o navio do seu comando, o Gromingen, abatendo para sempre a soberba do batavo.”
“Num dos navios do magnate macaense Sr. Fu Tak Iam fiz-me transportar a Hong-Kong. O braço amigo do Dr. Eduardo Brasão levou-me a visitar a cidade e os arredores, incluindo Kowloon, que em chinês quer dizer ‘nove dragões’, de Kow (nove) e Lung ou Loon (dragões). E levou-me também a transpor as páginas da história pátria no que diz respeito à presença de Portugal no ‘Porto Perfumado’. Numa das barulhentas e policromas ruas da cidade chamou-me a atenção uma casa revestida de azulejos de aspecto português. Dei- me à curiosidade de investigar a sua origem e apurei serem, realmente, de origem nacional, fabricados em Aveiro. O Clube de Recreio, em Kowloon, é uma afirmação do espírito social da comunidade portuguesa, assim como o Clube Lusitano, fundado em 1866, marca um lugar do mais alto relevo entre as instituições culturais que exaltam e prestigiam o nome de Portugal em países estrangeiros. Pois foi dentro das veneráveis paredes daquela patriótica instituição que o actual secretário nacional da Informação fundou, em Novembro de 1947, o douto Instituto Português de Hong-Kong, destinado à divulgação da nossa cultura naquela colónia britânica, onde, graças ao fecundo impulso que desde o início lhe foi dado por aquele brilhante diplomata, têm sido versados os principais problemas relacionados com a obra da inteligência em Portugal, no passado e no presente. O Instituto Português de Hong-Kong deve ser considerado o remate da obra de defesa da língua de Camões naquela colónia inglesa, onde vivem cerca de mil portugueses. O Instituto e a Escola de Camões, também patriótica iniciativa do Dr. Eduardo Brasão, constituem dois instrumentos onde vibra a alma de Portugal.”

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