"Temos festa hoje, aqui. Acaba o ano velho, começa o ano novo. Mas não vão imaginar que seja do ano novo de que rezam os nossos calendários, a comemoração; tal comemoração, aqui, no fim do mundo, no seio desta colónia nostálgica, passa insípida, quase sem alvoroços íntimos de família, limitada à troca banal - troca sem cedilha e com cedilha - de algumas dúzias de bilhetes de visita, com as competentes boas-festas escritas, da pragmática. Trata-se do ano lunar que finda, do ano lunar que principia, o ano chinês enfim, a ampulheta que marca para o povo amarelo as suas horas de existência; vamos entrar no ano XXII do reinado de sua majestade imperial celestial, Kuang-Su.
Temos festa hoje, aqui. A alma chinesa manifesta-se, evidencia-se, domina, hoje; ofusca, pela grande maioria dos rabichos, o pálido reflexo da civilização do Ocidente que logrou chegar a este Macau, a este exíguo penedo asiático, onde Portugal implantou a sua bandeira.
Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de além dos bazares, o ruído da bombardada amotinadora dos foguetes, e das mil e mil embarcações fundeadas no porto o clamor ovante das bátegas, vibradas pelas mãos rudes das companhas. Que irá lá por esses bazares, a esta horas, santo Deus!... Eu não me arredo do meu canto. Bem sei que a febre das massas sugestiona, contamina todos. Bem sei que não se dorme hoje; que não há chapéu de coco de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo chapelinho de pelúcia com laçarotes de cetim e o seu competente pássaro empalhado, de menina, que não vá correr as vielas, perder-se na onda, confundir-se com os rabichos, gozar com eles. Mas está tanto frio, e as bagas de água zurzem-me tão desapiadamente os vidros das janelas... E, pior do que isto, é o frio da alma, é a apatia enervante do meu espírito, é o sorriso amargo que me enruga os lábios, provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que aqui me retêm e me impedem de também ir galhofar.
Não, decididamente não serei da festa. Imagino-a daqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cabais negras ensopadas dos chuviscos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, acendendo nas poças, pelo reflexo... grandes labaredas efémeras, ziguezagueando. As lojas estão escancaradas ao público; frutos, flores, doces, carniças, bonecos, coisas santas, estendem-se pelos caminhos em prodigiosas teorias, em coloridos quase estonteantes; e é comprar, e comprar já, porque não tarda em romper o glorioso dia de descanso, o único na China em que o camponês, o artífice, o vendilhão, todos, cruzam os braços, não trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de fósforos, qualquer ínfimo objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, oferecem-se, tentam a onda; e até pelas ruas o tabuleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um acréscimo de pecúlio não esperado! O china adora o jogo - era preciso que ele adorasse alguma coisa! - mas hoje todos jogam, todos são chinas, e é isto um exemplo interessante da influência sugestiva das grandes maiorias; a mão mais circunspecta de funcionário, a mão mais mimosa de dama (de nhônha, em dialecto vulgar desta colónia) avançam sem pejo, arriscam à sorte vária umas pratinhas...
Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas adorações milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram papéis místicos, e se acederam pivetes odoríficos; quando em plena rua um brado de aleluia os ecos acordou; dirige-se então a onda humana para o lar, já mercas feitas, já bolsas esvaziadas; e vai surgir um grande dia votado inteiro ao descanso, votado à glorificação dos deuses, cuja magnânima assistência se exalta pelas graças concedidas e pelas graças que vão esperar-se!...(...)
Temos festa hoje, aqui. A alma chinesa manifesta-se, evidencia-se, domina, hoje; ofusca, pela grande maioria dos rabichos, o pálido reflexo da civilização do Ocidente que logrou chegar a este Macau, a este exíguo penedo asiático, onde Portugal implantou a sua bandeira.
Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de além dos bazares, o ruído da bombardada amotinadora dos foguetes, e das mil e mil embarcações fundeadas no porto o clamor ovante das bátegas, vibradas pelas mãos rudes das companhas. Que irá lá por esses bazares, a esta horas, santo Deus!... Eu não me arredo do meu canto. Bem sei que a febre das massas sugestiona, contamina todos. Bem sei que não se dorme hoje; que não há chapéu de coco de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo chapelinho de pelúcia com laçarotes de cetim e o seu competente pássaro empalhado, de menina, que não vá correr as vielas, perder-se na onda, confundir-se com os rabichos, gozar com eles. Mas está tanto frio, e as bagas de água zurzem-me tão desapiadamente os vidros das janelas... E, pior do que isto, é o frio da alma, é a apatia enervante do meu espírito, é o sorriso amargo que me enruga os lábios, provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que aqui me retêm e me impedem de também ir galhofar.
Não, decididamente não serei da festa. Imagino-a daqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cabais negras ensopadas dos chuviscos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, acendendo nas poças, pelo reflexo... grandes labaredas efémeras, ziguezagueando. As lojas estão escancaradas ao público; frutos, flores, doces, carniças, bonecos, coisas santas, estendem-se pelos caminhos em prodigiosas teorias, em coloridos quase estonteantes; e é comprar, e comprar já, porque não tarda em romper o glorioso dia de descanso, o único na China em que o camponês, o artífice, o vendilhão, todos, cruzam os braços, não trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de fósforos, qualquer ínfimo objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, oferecem-se, tentam a onda; e até pelas ruas o tabuleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um acréscimo de pecúlio não esperado! O china adora o jogo - era preciso que ele adorasse alguma coisa! - mas hoje todos jogam, todos são chinas, e é isto um exemplo interessante da influência sugestiva das grandes maiorias; a mão mais circunspecta de funcionário, a mão mais mimosa de dama (de nhônha, em dialecto vulgar desta colónia) avançam sem pejo, arriscam à sorte vária umas pratinhas...
Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas adorações milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram papéis místicos, e se acederam pivetes odoríficos; quando em plena rua um brado de aleluia os ecos acordou; dirige-se então a onda humana para o lar, já mercas feitas, já bolsas esvaziadas; e vai surgir um grande dia votado inteiro ao descanso, votado à glorificação dos deuses, cuja magnânima assistência se exalta pelas graças concedidas e pelas graças que vão esperar-se!...(...)
Capa da segunda edição: 1938 |
Para o ano novo, tudo se prepara com antecedência, em prodigiosa azáfama; é para todos uma ocupação incessante e desusada, durante as últimas semanas do ano que vai findar. Lavam-se os covis, lavam-se as pobres mobílias. É o pó de um ano que se sacode, é a lama de um ano que se deita fora, é o piolho e é a pulga de um ano que se afogam na onda das barrelas; porque, durante os labores de cada dia, nunca a ideia de limpeza preocupou os espíritos durante um só instante. (...)
Conceda-se pois, por excepção, a este bom povo celestial, o capricho de lavar uma vez cada ano o antro onde se abriga. Depois, é ver a faina de colar pelas paredes, pelas portas, pelas janelas, papéis de bela cor escarlate, com negras inscrições cabalísticas, que são votos de ventura e de riqueza, que são preces aos deuses. E chega a ocasião de se adornarem os altares, de se irem comprar junquilhos em flor, que se dispõem em vasos gentis com água e seixos alvos, e assim vão enfeitar os aposentos, levando o viço e o perfume, por um dia, aos negrumes das alcovas. No meio do complicado rito das usanças, algumas práticas enternecedoras, de ingenuidade primitiva, interessam o curioso. Reparem por exemplo nas enormes celhas expostas pelos mercados, onde enxames de pequeninos peixes negros, carpas barbudas, estrebucham na gota de água do improvisado cativeiro; o povo compra-as, e vai lançá-las em seguida nas ribeiras, gozando na acção do resgate, por certo grata aos deuses, e que redundará em benefícios."
"O Anno Novo", da autoria de Wenceslau de Moraes in Paisagens da China e do Japão. Lisboa, Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, 1906
Conceda-se pois, por excepção, a este bom povo celestial, o capricho de lavar uma vez cada ano o antro onde se abriga. Depois, é ver a faina de colar pelas paredes, pelas portas, pelas janelas, papéis de bela cor escarlate, com negras inscrições cabalísticas, que são votos de ventura e de riqueza, que são preces aos deuses. E chega a ocasião de se adornarem os altares, de se irem comprar junquilhos em flor, que se dispõem em vasos gentis com água e seixos alvos, e assim vão enfeitar os aposentos, levando o viço e o perfume, por um dia, aos negrumes das alcovas. No meio do complicado rito das usanças, algumas práticas enternecedoras, de ingenuidade primitiva, interessam o curioso. Reparem por exemplo nas enormes celhas expostas pelos mercados, onde enxames de pequeninos peixes negros, carpas barbudas, estrebucham na gota de água do improvisado cativeiro; o povo compra-as, e vai lançá-las em seguida nas ribeiras, gozando na acção do resgate, por certo grata aos deuses, e que redundará em benefícios."
"O Anno Novo", da autoria de Wenceslau de Moraes in Paisagens da China e do Japão. Lisboa, Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, 1906
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