quinta-feira, 16 de abril de 2015

Memórias de Silene Wong - 1ª parte

Silene tem 50 anos e vive actualmente no Brasil, um dos países onde o blogue Macau Antigo tem mais leitores. Foi de lá que partiu em 1971 para uma viagem que a levou a Macau por apenas dois anos mas que nunca mais esqueceu embora fosse uma criança com apenas 7 anos. Para relembrar esses tempos encontrou no blogue Macau Antigo uma referência, contactou-me e eu desafiei-a a passar para o papel as memórias da Macau que conheceu no início da década de 1970, há mais de 40 anos. O que se segue é esse testemunho, fruto de conversas que fomos mantendo via e-mail e acompanhado de imagens da época.
Brincando com o irmão e a irmã no jardim Luís de Camões.
"Minha avó paterna aparece em algumas fotos, ela morava em Cantão. Saiu de lá quando estávamos em Macau. Ficou um tempo com a gente e depois foi para Kowloon se encontrar com minha tia. Pouco tempo depois todos eles emigraram para os EUA."

"Só me dei conta que já se passaram mais de 40 anos que vivi em Macau quando comecei a escrever este texto, a convite do João Botas. De início acreditei que seria difícil, mas as imagens e as lembranças começaram a vir à tona em minha memória e o texto foi fluindo. Não são muitas as lembranças, o tempo acabou por levar boa parte delas, mas sei que ficaram as saudades e os aprendizados que adquiri nesta experiência.

Silene tirou esta foto aos pais, irmã e irmão em Macau
Sou brasileira, descendente de chineses da região de Cantão, família constituída de cinco membros. O Brasil vivia sob a Ditadura Militar imposto em 1964 e naquele início da década de 1970 meu pai tinha um comércio. Bem em frente funcionava o Departamento de Ordem Política e Social. Lá eram presos, torturados e mortos as pessoas que eram contra o regime militar. Já me disseram que talvez por ter visto situações de violência, meu pai tenha resolvido ir embora do Brasil. Mas são cogitações, não tenho como confirmar esta história. Certo é que ele resolveu que iríamos passar um período na China, as nossas origens, para que meus irmãos e eu aprendêssemos chinês. Largamos tudo aqui: casa, negócios, familiares por parte de mãe, vida estudantil, amigos e iniciamos a jornada rumo a um local desconhecido do outro lado planeta. Permanecemos em Macau praticamente dois anos, de Agosto de 1971 a Julho de 1973. 
Era uma criança com apenas sete anos sem a completa noção do que estava acontecendo. De repente vi-me em uma cidade completamente nova e diferente do que estava acostumada. Viajamos em julho de 71 e antes de chegarmos a Macau, passamos por Hong Kong 香港 e Kowloon 九龍. Residia lá uma tia, irmã do meu pai que não conhecíamos, e sua família. Destes locais apenas recordo das ruas apinhadas de gente, muito calor, apartamentos com várias famílias (cada uma em um quarto) e um parquinho próximo onde brincávamos de balanço.

Foto de grupo da primeira comunhão celebrada na igreja de Santo António
Em Macau meu pai abriu uma alfaiataria na Rua Sacadura Cabral e morávamos ali mesmo, ao lado. Da vizinhança, fizemos amizade com dois rapazes que pertenciam a uma família de mãe chinesa e pai português. Brincávamos com os dois mais novos, o Plácido e o Judas, por serem de idades próximas às nossas. Segundo minha mãe, misturávamos palavras em chinês, português de Portugal e português do Brasil. Lembro que uma vez nos desentendemos ao discriminar uma determinada cor. Eu dizia que era vermelho e eles, carmim. Riram, pois desconheciam a palavra...enfim, entendíamo-nos.
Na 1ª comunhão frente à igreja de Sto. António

A escola
Estudei no Yuet Wah College 粵華中學, mais precisamente no colégio para o nível fundamental, o 粵華小學. Fiz o 1º e 2º anos. Eu já tinha feito o 1º ano no Brasil. A escola era considerada uma das melhores da cidade, não sei hoje como está. Escola de disciplina rígida, com muito mais matérias comparativamente ao Brasil, quadro de professores exigentes e indisciplina corrigida com castigos. Lá me preparei para a primeira comunhão com aulas de catolicismo.
Eram as freiras que cuidavam da administração. Lembro-me de duas: uma era chinesa, mais rígida e que vivia chamando a atenção de nós, alunos, quando algo não estava de acordo e a outra, italiana, mais condescendente e por isso, abusávamos um pouco...coisa de criança que queria um pouco mais de liberdade nos intervalos entre aulas. Lembro que uma época em que eu e uns colegas resolvemos que iríamos descobrir o que elas guardavam nos bolsos dos hábitos que usavam. Até tentamos enfiar as mãos dentro, mas foram infrutíferas as tentativas...Os padres apareciam por lá apenas para realizar missas. Íamos para a unidade maior 粵華中學, onde estudavam os alunos do 5º ano em diante, quando havia algum evento.
As aulas eram em período integral de segunda a sábado (exceto quarta e sábado – meio período). Sim, havia tempo para brincar nos finais de tarde e domingo. Aprendi muitas brincadeiras na rua e “ importamo-las” para o Brasil depois. 
O Yuet Wah classificava os alunos a cada final de trimestre após as provas. No primeiro trimestre do 2º ano, eu fui a 6º colocada, num total de 53 alunos. Eu, na época, não tinha noção deste "feito", mas descobri aos poucos, pois meu pai me fez escrever ao meu avô e contá-lo. Uma das freiras (a chinesa) disse uma vez no intervalo a uma aluna: "Ela é estrangeira, não falava chinês e ficou em quinto lugar. Você precisa se esforçar mais." Na época e hoje, considero isso uma humilhação o que a freira fez... Recordo que no meu aniversário em 1972 e coincidindo com o meu bom desempenho escolar o meu pai me levou de visita à ilha da Taipa. Meu pai deve ter ficado realmente muito feliz porque, como a maioria dos chineses, ele também não era de demonstrar afeto."   Continua...

4 comentários:

  1. História muito bem contada! E as fotos nos convidam a viajar no tempo.

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  2. Adoro as histórias de migração de minha amiga Silene! Espero ansioso a segunda parte. AAAh, tente escrever algo sobre a história de migração de sua família materna para o Brasil! Essa é uma das mais interessantes que já ouvi. Beijos =)

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  3. Parte 2: http://macauantigo.blogspot.com.br/search?q=Silene+Wong+2%C2%AA+parte

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