Em 1984 a Librairie Larousse, de Paris, publicou uma série de fascículos dedicados à China milenar, incluídos na sua colecção “Des Pays et des Hommes”. A Selecções do Reader’s Digest pegou nesse trabalho e em 1992 apresentou uma versão em língua portuguesa. Macau não foi esquecido. Teve 'direito' a três páginas e quatro fotografias (ruínas de S. Paulo e três de aspectos pitorescos da cidade). Eis alguns excertos do artigo intitulado “Macau: no estuário do Rio das Pérolas”.
Sobre as ruínas de S. Paulo
“Um punhado de garotos sobe a correr as majestosas escadarias da catedral de São Paulo. Têm a pele dourada, olhos amendoados e cabelos de um negro brilhante, mas, surpreendentemente, vestem meias e calções compridos, e ‘blazers’ azuis escuros com botões de metal. É o uniforme de um colégio católico português. Passam a gritar pelo grande portão, sem um olhar para a imponente fachada barroca - um enorme esqueleto de pedra cinzenta pesadamente trabalhada, o último resquício do edifício original. O histórico monumento bem pode ser a igreja mais fotografada de todo o Sueste Asiático; nada disso interessa a este bando de diabretes. De momento, estão completamente absortos na observação de dois adolescentes, que de ‘jeans’ e ‘t-shirts’, com o nome de uma universidade americana jogam ‘jai alai’, uma espécie de pelota basca trazida da Espanha, via Filipinas. A catedral foi desenhada por um jesuíta italiano e construída por japoneses cristãos no princípio do século XVII, para maior glória da sua religião adoptiva. Desde então, tem tido uma história agitada. O Marquês de Pombal, que expulsou os Jesuítas de todas as colónias portuguesas, destruindo-lhes o poder económico e político, transformou a basílica em quartel. Depois, o edifício foi consideravelmente danificado por um incêndio. Finalmente, em 1853, um tufão destruiu o resto. Agora, as ruínas são apenas um atractivo acessório para as máquinas fotográficas dos turistas.” (...)
Sobre o dia-a-dia na década de 1980 e as origens de Macau
“Macau é um lugar estranho. Não passa de um ponto no mapa da China, umas poucas linhas nos livros de História, alguns parágrafos no fim dos guias de viagens. Só lá se chega de barco, a partir de Hong Kong, e os turistas nunca ficam mais de algumas horas. Os visitantes regulares são na sua maioria cidadãos de Hong Kong, que aqui vêm nos fins-de-semana para escaparem à agitação frenética da sua própria cidade, visitar parentes ou jogar nos casinos. Ignorem-se as decorações chinesas e, por momentos, julgar-nos-emos num porto português, ou pelo menos em qualquer pequeno porto mediterrânico. Há o mesmo barulho, o mesmo lixo, as mesmas cores esbatidas, os mesmos cheiros a peixe seco e batatas fritas. A atmosfera é simultaneamente buliçosa e descontraída. Há aqui poucos contrastes, e muito poucos preconceitos raciais. Os rostos das pessoas revelam a velha estabilidade das relações entre as colónias portuguesa e chinesa. Macau é um casamento perfeito, uma coexistência natural, uma ligação social que dura há mais de quatro séculos. Por isso deve começar aqui a nossa viagem pela China insular.
Se Macau, Hong Kong e Taiwan alguma vez forem simples notas de rodapé na História da China, Macau terá ao menos sido a que durou mais tempo. A cidade foi a chave que abriu as portas da China aos ‘gweilo’ - os diabos estrangeiros. Na primeira metade do século XVI, quando os Portugueses chegaram aos mares da China, a dinastia Ming estava em declínio. A China fechava-se sobre si mesma, como uma flor ao crepúsculo. Os nómadas galopavam em direcção a Beijing, os piratas assolavam a costa, o imperador tentava isolar-se e fechar as portas às influências do exterior. A Europa, pelo contrário, estava no auge da sua expansão marítima. O papa Alexandre VI dividira o mundo pagão em duas metades, ao traçar no Atlântico uma linha situada 2800 km a oeste de Cabo Verde, dando o Oriente a Portugal e o resto à Espanha, duas grandes potências marítimas dedicadas a trocar os benefícios da civilização cristã pelo ouro do Eldorado. A Europa expandia-se enquanto a China se retraía; eram as imagens reflexas uma da outra. Os portugueses contactaram a China marítima, uma parte do país que pouca relação tinha com a China camponesa do Reino do Meio e as suas grandes planícies. O litoral imenso e rochoso que se estende da foz do Chang Jiang até Guangzhou, no Sul, é recortado por inúmeras baías e salpicado por centenas de ilhas, minúsculas quase todas, grandes duas delas: Hainan e Taiwan. Toda a sua economia assenta no mar, e os seus produtos sempre foram muito diferentes dos do resto da China. A população é cosmopolita, embora as gentes tenham conservado os seus dialectos e tradições especiais.” (...)
Vista sobre o Porto Interior na década de 1950 |
Como todos os outros bárbaros, os Portugueses não tinham o direito de estabelecer entrepostos comerciais na China. Os seus navios ancoraram pela primeira vez no estuário do Zhu Jian em 1513. Seguiram-se outras visitas em 1522, e o estabelecimento ilegal, em Macau, de uma base de que a administração central só teve conhecimento treze anos mais tarde. Passou-se muito tempo antes que os Chineses pudessem reconhecer esta afronta à sua dignidade sem ‘perderem a face’. A oportunidade só viria a surgir em 1554. Quando Leonel de Souza, comandante de uma frota de dezassete navios bem armados, entrou no estuário do Rio das Pérolas, uma enorme armada pirata ameaçava Guangzhou. Em desespero de causa, o governador da cidade pediu ajuda aos portugueses, seguindo o velho provérbio chinês que aconselha: ‘Para te livrares dos bárbaros, deves recorrer aos bárbaros’. Os portugueses eliminaram a oposição sem dificuldade e, em jeito de agradecimento, a sua presença na área foi reconhecida oficialmente, sendo-lhes concedida autorização para se instalarem numa pequena península a ocidente da foz do Rio das Pérolas. A Europa tinha a sua primeira testa-de-ponte na China. Macau transformou-se num trampolim para os Jesuítas, permitindo-lhes internarem-se no continente, e a cidade tornou-se também o centro do comércio português durante 100 anos.”
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