Em Setembro do ano passado, nos 10 anos passados sobre a morte de Monsenhor Manuel Teixeira, a Revista Macau publicou um artigo da autoria de Inês Dias que a seguir se reproduz.
“O homem é pó, a fama é fumo e o fim é cinza (…) só os meus livros
permanecerão (…) e é essa é a minha consolação.” Em Setembro completa-se
uma década desde que Macau perdeu um padre, um historiador, um homem
das letras, um excêntrico. O padre Manuel Teixeira fez jus à sua célebre
frase deixando um valioso contributo para o estudo da documentação
histórica, religiosa e cultural de Macau. São mais de 130 livros, outras
centenas de cartas e estudos dedicados à história da presença dos
portugueses em Macau e no Oriente
Manuel Teixeira não se restringiu apenas ao papel de sacerdote. É
considerado uma verdadeira instituição da cidade e quem passar pela
história de Macau terá de passar obrigatoriamente pelas mais de 50 mil
páginas escritas pelo homem que dedicou uma vida à pesquisa, análise e
organização de dados. “Não criou muito mas investigou e publicou. Fez
muito o trabalho dos copistas da Idade Média, fazendo chegar até nós
dados valiosos”, refere a historiadora Beatriz Basto da Silva.
A imagem icónica de um homem de batina branca e longas barbas da
mesma cor a atravessar a Ponte Nobre de Carvalho – inaugurada em 1974, a
primeira ligação fixa entre a península e a ilha da Taipa – até pela
imprensa internacional foi imortalizada. Este trajecto diário
Macau-Taipa-Macau era cumprido religiosamente e servia de momento de
reflexão. Só uma trombose, sofrida na década de 1990, que o deixou
paralisado temporariamente, viria a por termo a esta travessia.
Homem ávido por caminhar e explorar o território, conhecia-o de ponta a ponta. A sua obra Toponímia de Macau
é prova disso. “Vem comigo passear por essas ruas que eu te contarei a
sua história como amável guia turístico” é o convite que o padre faz aos
leitores no seu prefácio.
Edição de 1982 |
A sua irmã Benvinda de Jesus Teixeira recorda o momento em que o
menino Manuel decidiu seguir a vida religiosa: “Um dia, passou junto da
loja um missionário que lhe perguntou se ele queria ir para Macau para
ser missionário. Abandonou o banquinho onde estava sentado e correu para
casa dizendo ao pai que queria ir para Macau para ser padre. O pai
duvidou logo daquela vocação repentina”.
Concluída a instrução primária na sua terra natal, lá partiu o menino
Manuel a 16 de Setembro de 1924 em direcção a um Oriente misterioso, a
bordo do D´Artagnan dos Messageries Maritimes, navio tão grande e
viagem tão longa – mais de 16 mil quilómetros percorridos em quase dois
meses – capaz de abarcar os sonhos e aventuras de qualquer rapaz de 12
anos. “Cheguei a Macau numa segunda-feira, 27 de Outubro de 1924, vindo
de Hong Kong no vapor Sui-Trai. Éramos cinco rapazes naturais de freixo
de Espada à Cinta”, recordava no artigo O Seminário do Meu Tempo,
no Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau. O Seminário de São José,
então a grande escola missionária de Portugal no Oriente, foi a sua casa
e a sua família durante os dez anos que se seguiram.
Foi uma década numa instituição que lhe providenciou protecção e
educação, mas ao mesmo tempo afastava-o da realidade de uma Macau que
só veio a conhecer depois de transpostos os muros da instituição. Apesar
do ambiente austero e da disciplina férrea, depressa se integrou,
adaptou e fez amigos, dada a sua conhecida capacidade natural de se
aproximar do outro. Era estudioso, interessado e com uma memória
prodigiosa. Como boas recordações guardava a amizade dos outros
seminaristas que consigo vieram de Freixo de Espada à Cinta e do seu
professor predilecto, Régis Gervaix. Professor de francês e de grego e
autor da Histoire Abregée de Macao, despertou no seminarista o gosto pela investigação histórica.
No dia 29 de Outubro de 1934, é ordenado sacerdote pelo bispo D. José
da Costa Nunes na Igreja do Seminário de São José. A 1 de Novembro
desse mesmo ano celebrou a sua primeira missa na igreja de São Domingos,
passando depois a ser pároco de São Lourenço até 1946.
Uma vida dedicada às letras
Com apenas 22 anos não só começa a caminhada do sacerdócio como
assume a direcção do Boletim Eclesiástico de Macau – cargo que ocupou
até 1947 -, publicação que se tornou internacionalmente conhecida graças
aos seus trabalhos e aos contributos de outras figuras como os
historiadores José M. Braga e Charles R. Boxer. Em 1942, fundou a revista mensal O Clarim.
ArquimínioRodrigues da Costa, bispo de Macau entre 1976 e 1988, refere que Manuel Teixeira “não fazia rodeios na sua escrita”. “Censor cáustico de costumes e atitudes, nunca poupou quem lhe merecesse reparos, fosse quem fosse. Mas sabia também enaltecer os méritos das pessoas”, relembra. O padre colaborava ainda com a imprensa local, onde escrevia colunas regulares, como aconteceu, na década de 1990, no Macau Hoje. As suas opiniões chegaram também a meios de comunicação do estrangeiro. Colaborou, por exemplo, com o italiano Observatore Romano, com o diário de Hong Kong South China Morning Post e com o português Mensageiro de Bragança.
ArquimínioRodrigues da Costa, bispo de Macau entre 1976 e 1988, refere que Manuel Teixeira “não fazia rodeios na sua escrita”. “Censor cáustico de costumes e atitudes, nunca poupou quem lhe merecesse reparos, fosse quem fosse. Mas sabia também enaltecer os méritos das pessoas”, relembra. O padre colaborava ainda com a imprensa local, onde escrevia colunas regulares, como aconteceu, na década de 1990, no Macau Hoje. As suas opiniões chegaram também a meios de comunicação do estrangeiro. Colaborou, por exemplo, com o italiano Observatore Romano, com o diário de Hong Kong South China Morning Post e com o português Mensageiro de Bragança.
Das suas investigações surge, em 1965, a obra A Imprensa Periódica no Extremo-Oriente, pretendendo, como refere na introdução, “preencher a lacuna” existente na história do jornalismo português em Macau.
O professor
A par das suas funções obrigatórias decorrentes do sacerdócio,
trabalhou ainda como professor no Seminário de São José (1932-46 e
1962-65), na Escola Comercial Pedro Nolasco (1962-64) e no Liceu Infante
D. Henrique (1942-45 e 1964-70). Luís de Castro Machado, seu antigo
aluno, recorda como era o contacto diário com o sacerdote. “Por graça
demos-lhe a alcunha de ‘Irmão Manuel da Pêra Branca’, que veio a adoptar
como pseudónimo para colaborações na imprensa escrita da época”, conta.
O antigo aluno recorda sobretudo as iniciativas de Manuel Teixeira de
promover visitas ao centro de leprosos de Ká Ho, em Coloane. “Na
altura, a vila piscatória de Ká Ho era a zona ‘fora-dos-limites’ para o
cidadão comum, mas isso não era factor impeditivo para que nós
apoiássemos os leprosos e seus familiares que lá viviam, muito
carenciados de tudo, especialmente de carinho humano.”
Professor de latim no Seminário de São José e no Liceu de Macau,
usava uma didáctica a que chamava “o método do desafio”: era uma espécie
de competição, em que interrogava dois estudantes e o que ganhasse
amealhava pontos que contavam para as classificações finais. O método
resultava e os alunos aprendiam com entusiasmo o latim.
A arte de ensinar e aprender também mereceu a sua atenção para uma detalhada investigação. O seu livro A Educação em Macau,
publicado em 1982, relata a história da educação portuguesa e
luso-chinesa e, segundo o historiador António Aresta, vem “retirar a
história da subalternidade de nota de rodapé”.
Vista sobre a Ilha Verde: década 1920 |
Defensor da História
O próprio reconhecia que só era feliz quando escrevia. O seu legado
escrito começou ainda nos anos de 1930, quando publicou os primeiros
artigos históricos no Boletim Eclesiástico. O facto de ter à sua
disponibilidade todos os arquivos da Diocese de Macau facilitou o seu
trabalho de investigação. Escreveu sobre a vida de cada padre que viveu
na cidade nos passados 400 anos, e para tal feito consultou os arquivos
de todas as paróquias e de cada igreja. Os 16 volumes de Macau e a Sua Diocese é, na opinião do
próprio, uma das suas obras mais importantes, “pois a história da Igreja
de Macau está intimamente ligada à história civil do território,
tornando-se difícil dissociar estas duas realidades”.
As obras Os Militares de Macau e Toponímia de Macau foram premiadas em 1981 e 1983, respectivamente, com o prémio História da Fundação Calouste Gulbenkian.
O amor que a história de Macau sempre lhe inspirara é sublinhado por
Eduardo Francisco Tavares, um antigo seu aluno, que recorda como o padre
salvou um valioso arquivo no auge dos acontecimentos do 123, em 1966.
“A 3 de Dezembro de 1966, desce o Padre Teixeira do 3.º andar do
seminário de São José numa atitude pouco usual. Perguntei-lhe onde se
dirigia tão apressadamente. Com voz preocupada respondeu-me: ‘Olha
rapaz, vou salvar Macau!’ Não eram almas que o padre queria salvar, mas
os documentos históricos que estavam a ser queimados no Largo do Senado
no episódio histórico do 123.”
O Monsenhor passou três dias e três noites consecutivas a resgatar os
documentos e conseguiu pôr a salvo outros tantos, impedindo que os
prejuízos fossem mais graves para a história de Macau.
Passagem por Singapura
Em 1948, Manuel Teixeira partiu para Singapura como superior e
vigário geral das Missões Portuguesas de Singapura e Malaca. Como pároco
da igreja de St. Joseph na cidade-estado tinha sobre a sua asa cerca de
mil “católicos de confissão”, como frisava.
Homem frontal e sem medos, não hesitou em confrontar o icónico
primeiro-ministro e fundador da República de Singapura Lee Kuan Yew,
durante uma homília em que Manuel Teixeira encorajava os fiéis a não
darem ouvidos à política de um filho único.
Em 1959, ainda em Singapura, celebra as suas Bodas de Prata mas
recusa o jantar que lhe é oferecido pelos seus paroquianos. Em vez
disso, sugere que com esse dinheiro se crie o Fundo dos Estudantes
Pobres (St. Joseph Church Book Fund) para “eles poderem comprar os livros e uniformes”.
Ao longo de 14 anos em Singapura (1948-1962) mostrou mais uma vez a sua vertente de escritor, ao fundar a revista Rally e o boletim paroquial Stop, Look and Go, ambos em Inglês. Regressou a Macau em 1962, já com 50 anos, deixando para trás a
cidade onde afirmava ter vivido dos “momentos mais felizes” da sua vida.
No mesmo ano passa a ser Capelão do Convento de Santa Clara, começa a
exercer funções docentes no Colégio de S. José (1962-65) e na Escola
Comercial Pedro Nolasco (1962-64). Entre 1964 e 1970 é professor de
Religião e Moral e de Latim no Liceu Nacional Infante D. Henrique. A par
das restantes responsabilidades, assume o cargo de director dos
Arquivos de Macau (1976-80) e do Boletim do Instituto Luís de Camões. Traz o hábito de beber o que chamava de “chá da Escócia”. A
historiadora Beatriz Basto recorda servir-lhe, nas muitas visitas de
Monsenhor a sua casa, a sua ementa preferida de bananas e uísque.
O regresso à terra
“Eu tinha resolvido não mais regressar à metrópole devido ao choque
violento que recebi no dia 25 de Abril com a chamada ‘exemplar
descolonização’”, confessou quando decidiu abrir uma excepção em 1988 e
regressar a Portugal para gozar licença graciosa, já que não tinha
férias desde 1972.
Em Janeiro de 1994, meses antes de completar 82 anos, Monsenhor
Manuel Teixeira deu entrada no hospital Conde de São Januário vítima de
uma trombose e subsequente paralisia facial periférica. Durante dez
meses mudou-se para o “melhor hotel de Macau”, como chamava ao hospital.
Apesar da sua saúde se encontrar fragilizada não deixava de celebrar
missa todos os dias, às sete da manhã, na igreja de Santa Clara, no
Colégio de Santa Rosa de Lima.
Finalmente foi forçado a regressar definitivamente a Portugal em
2001. A sua principal preocupação então era o seu espólio que não queria
abandonar. Reuniu-se com Beatriz Basto da Silva e Isabel Rasquinho e
entregou-lhes tudo quanto possuía. Todo o material foi parar ao Centro
Científico e Cultural de Macau em Lisboa, onde estão catalogados cerca
de 4000 manuscritos, monografias, livros, fotografias e cartas. Todas as
peças estão inventariadas e disponíveis para consulta através do
catálogo online da biblioteca do Centro.
Na Biblioteca Central de Macau, na Sala de Macau, podem ser
consultadas as monografias da sua autoria ali conservadas. São 133
títulos, editados entre 1937 e 1999, e mais as suas colaborações com as
publicações locais.
Durante os três anos em que esteve em Portugal continuou a escrever.
Fernando Vinhais Guedes encontrou-o no lar de Chaves, em Santa Marta,
instituição que ajudou a construir em 1980 com uma doação de 75 mil
contos (cerca de 3,75 milhões de patacas). O amigo lembrava-se da sua
“frontalidade às vezes grosseira” e do seu “sentido de humor”.
“Apareceu-me sentado numa cadeira de rodas, com ar combalido de quem
tinha sofrido um AVC. Perguntei-lhe: ‘Como vai o homem de Freixo de
Espada ao ombro?’, ao que Monsenhor respondeu comovido: ‘Você é daqui?
Ai meu Deus! Que bom! É trasmontano, é bom homem!’”
O “homem do desporto”, como o padre chamava ao amigo, passou a ir
visitá-lo diariamente. “Todos os dias o visitava para falarmos de Macau.
Esse era o assunto de eleição.” Recebia muitas visitas, incluindo as do
ex-governador de Macau Rocha Vieira e a da sua mulher, Leonor Rocha
Vieira, a quem Monsenhor chamava de “Santa Leonor”.
Pouco a pouco, Monsenhor e Vinhais Guedes começaram a fazer pequenas
caminhadas à volta do “Pentágono”, nome que deram ao jardim do lar.
Esses passeios passaram a ser complementados com cerca de dez minutos de
bicicleta estática, apesar da resistência de Monsenhor que se queixava:
“Não quero que me vejam! Agora anda aqui um velho a pedalar, a
pedalar, e não sai do sítio!” Durante os fins-de-semana iam para os
montes ver os pinheiros que o lembravam da sua terra natal “onde nunca
quis regressar”, apesar de Vinhais Guedes se ter oferecido para o levar.
Apesar da difícil adaptação inicial do Monsenhor, o amigo garante que
houve momentos “de grande satisfação”, especialmente durante a
homenagem que lhe foi prestada em que “parecia estar nas nuvens”. A 2 de
Março de 2002, numa iniciativa promovida pelo Semanário Transmontano,
Monsenhor Manuel Teixeira recebeu comovido a homenagem dos
transmontanos. Estiveram presentes governadores civis, os bispos de Vila
Real e de Bragança e ainda cerca de 20 Câmaras da região. As escolas
flavienses também participaram. A sua idade avançada não o impediu de
proferir a palestra “Os Padres Transmontanos no Oriente” durante a
cerimónia.
Durante o seu discurso, relembrou a importância dos padres
transmontanos no Oriente e classificou-os de “exemplos admiráveis”. A
lista era longa, mas teve de encurtar a homenagem porque, nas suas
palavras “se me referisse a todos, nunca mais me calava”. Escolheu como
exemplos o padre Coroado e o padre Francisco Teixeira, apelando ao
reconhecimento das sua obras e sugerindo a sua canonização.
No final da cerimónia, Monsenhor recebeu a Medalha de Perpétua
Homenagem (a primeira de uma edição limitada de 200 exemplares) com a
inscrição da conhecida frase do monsenhor: “O Homem é pó, a fama é fumo,
o fim é cinza. Só os meus livros permanecerão.”
Monsenhor Manuel Teixeira morreu a 15 de Setembro de 2003, aos 91 anos.
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